domingo, 27 de novembro de 2011

Bandeira dos Direitos Humanos a meio mastro, Danielle



Na semana passada a vida perdeu uma aliada, Danielle Mitterrand, uma mulher que assumia a responsabilidade de ser humana.
Danielle foi íntegra, combativa, defensora dos fragilizados, militante assídua dos Direitos Humanos e do Direito de todo cidadão de desfrutar de liberdade e de água potável.
Foi a primeira pessoa influente no mundo a visitar Nelson Mandela na prisão, na África do Sul do apartheid, e convenceu o marido, então presidente François Mitterrand, a receber o Dalai Lama na França, a fim de testemunhar publicamente sua solidariedade.
Diziam que Danielle era a consciência humanista, humana, do marido conhecido pelo brilho de sua inteligência, de sua cultura e de seu maquiavelismo. Foi um grande estadista, mas ela foi mais do que isto. Danielle foi a formiga trabalhadeira, incansável na defesa da gente humilde, sem voz, transparente, que ela fez visível e falante.
Danielle tinha uma simplicidade sincera e sua espontaneidade desconcertava os que medem as palavras e os gestos que melhoram as condições de vida dos que têm pouco ou nada.
Conheci Danielle na minha chegada na França, na militância contra as ditaduras da nossa América Latina -Argentina, Brasil, Chile, El Salvador, Uruguai... enfim, países presos na tarrafa da Operação Condor, gringa.
Recém-chegada e entusiasmada com a vitória Sandinista na Nicarágua contra Anastasio Somoza, ditador durante 45 anos (nenhum dos déspotas árabes o rivaliza) eu achava que tudo era possível; inclusive o Brasil ficar livre dos generais que, na reta final, ainda nos oprimiam e maltratavam.
Danielle foi uma inspiração desde o início. Para mim e para muitos jovens a quem adultos conformados diziam que ideologia de igualdade, idealismo, eram sentimentos juvenis, bens espirituais não duráveis, e que acreditar o contrário era uma ingenuidade risível.
Danielle era a prova vivaz de como é falsa esta mantra que os quarentões repetem entre si para justificarem o materialismo pragmático que cultivaram para levar vantagem.
Eu entrando nos vinte, ela nos cinquenta e algo, tínhamos a mesma vivacidade na peleja pela liberdade, por direitos democráticos e entendi ali, com aquela mulher formidável, que as convicções sólidas não arrefecem e sim se fortalecem com a vivência e a idade.
Homenageando Danielle homenageio todas as pessoas, com mais ou menos idade, vivas e mortas, que não se conformam, que tentam corrigir o que está errado, que não se restringem aos interesses próprios, que amam o próximo de verdade.
Danielle foi um exemplo de insubmissão ao status quo vigente da complacência, do ímpeto de generosidade efêmera, do comodismo do deixar como é que está pra ver como é que fica.
Sempre senti uma grande afinidade com ela, tinha o sentimento de ter saído da mesma forma ética, obstinada, guerreira, movida pela indignação contra o oportunismo e a falta de oportunidade dos amordaçados e sem visibilidade por terem nascido em lugar e hora errados.
Ela não tinha paciência para conversa fiada e nem para promessas vagas. Era movida pelo motor de princípios morais exacerbados ao ponto de às vezes parecer áspera.
Não era.
Sua sensibilidade era quase palpável.
Seus olhos eram atentos, atenciosos; seu olhar era alerta e suas palavras alertavam; ela era toda ouvidos às dolências de seu semelhante; o respeito e a compaixão estavam sempre presentes em sua interação com as outras pessoas, pois o mal do outro nunca era alheio, era próprio.
O marido de Danielle, o François, como ela dizia simplesmente, é um marco na política francesa com a abolição da pena de morte, sua biblioteca, grandes obras arquitetônicas e culturais; ela era a mulher maior ainda que estava ao seu lado, toda sinceridade, sem alarde nem floreado.
Ela era aquela luz potente, tão forte que iluminava com sua energia o caminho de quem olhava pra frente, pro lado e para os maltratos.
Sei que ela preferiria que eu e todos os que tiveram o privilégio de desfrutar, pouco ou muito, de sua influência benéfica, falássemos sobre os problemas da água, das causas pelas quais ela batalhava sem folga e sem falha... mas meu coração está sem vontade de brigar, intelectualizar, gritar como gritou todos os domingos do ano passado a partir do dia 21 de julho em que inaugurei este blog, com uma entrevista dela.
Todos os artigos de 2010, sobre hidropolítica, foram para ela. Os títulos óbvios de todos viraram Danielle.
O mundo solidário, que partilha o sofrimento alheio solidário e se compromete a mitigá-lo, perdeu este ano três pessoas preciosas sem as quais a Terra ficou mais pobre, mais acanhada.
Embora fossem profundamente laicos foram cristãos de verdade. 
Danielle, vocês não se conheceram aqui embaixo, mas tenho certeza que estão na mesma morada; quando se encontrarem aí no alto, dê um abraço no Juliano e um beijo na face esquerda do Vittorio.
Aos três, obrigada.



E para honrar a memória de Danielle com uma nota hídrica,
eis o mapa dos aquíferos na Cisjordânia e o link do blog que aborda este assunto: http://mariangelaberquo.blogspot.com/2010/11/arma-da-sede-na-ocupacao-da-palestina.html.






"Israel must end its discriminatory policies, immediately lift all the restrictions it imposes on Palestinians' acces to water."
Donatella Rovera, Anistia Internacional

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