sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Água de verão



Dizem que no verão ninguém tem vontade de ler coisas sérias porque pensar também dá trabalho. Eu não concordo com esta teoria, mas não deixo de respeitar os que nesta época do ano só querem consumir cultura e informação descartáveis, até um certo ponto.
A matéria de hoje é para lembrar estes e os demais (que precisam de alimento cerebral quotidiano) algo bem simples para fechar o ciclo hídrico.
Podemos comer o que quisermos, podemos ler ou estudar o que conseguirmos, mas o corpo e o cérebro só assimilarão a comida e o conhecimento se dispuserem de água suficiente para transportar uma e outro e fixá-los nas nossas células locomotivas.
Portanto, sem água para irrigar o cérebro, pensar é mesmo cansativo.
Talvez você já saiba que nasceu com 90% de água no corpo e na idade adulta a proporção diminuiu a imperiosos setenta por cento. Sem esta água nada em nós funcionaria já que os olhos são compostos de 95%, o cérebro 75%, o coração 75%, os pulmões 86%, o sangue 83%, os ossos 22%, os rins 82%, o fígado 70%, os músculos 76%, a pele 70%, os tecidos 60% e a gordura 20%. Morremos com apenas cinquenta por cento de água no organismo.
Vamos nos desidratando paulatinamente entre o nascimento e o último suspiro. Daí a maciez da pele das crianças e a aspereza da de um centenário.
A água é o mais importante dos seis nutrientes básicos que necessitamos para que o corpo e o cérebro estejam em harmonia com as exigências do dia a dia. Ela é responsável pelo nosso bem estar em todos os sentidos porque ajuda a digestão e a distribuição de oxigênio, remove as toxinas, transporta os nutrientes e aumenta sua absorção, lubrifica as juntas, regula a temperatura do corpo, gera energia celular e melhora o sistema imunitário.

Segundo os especialistas, quem é disciplinado e pode se dar ao luxo de tomar regularmente nove copos de água (dois litros) diários tem mais energia do que só quem toma a metade. A irrigação física quotidiana também aguça as faculdades mentais e físicas, leva à perda de peso, reduz o estress, a ansiedade, a depressão, dores de cabeça e tonturas, previne infarto e premeia a pessoa disciplinada com menos rugas e uma pele mais macia.
Eles dizem também que mesmo sem uma transpiração visível, quase a metade da perda de água ocorre durante as operações regulares dos pulmões e da pele. Precisamos de um copázio d’água diário só para conseguir respirar, e um corpo bem hidratado facilita o efeito de medicamentos.
Quando o corpo não está hidratado o suficiente, responde levando água para os órgãos vitais e é aí que aparece a sensação de sede. Quem não tem como saciá-la vai perdendo energia e os órgãos vão falhando até perder a vida. O prazo para o coração parar de bater é de três a sete dias.
E para quem tem filho e quer expô-lo ao sol, lembre-se antes que refrigerante diminui o ritmo de absorção da água do estômago. Daí a sensação de que “só água mata a sede”. Guaraná é bom, mas para evitar desidratação é melhor uma latinha de guaraná e muita água.
Outra coisa, pode comprar águas minerais caríssimas se puder e fizer questão de consumi-las, mas saiba que elas não lhe darão nenhum complemento nutricional além dos que saem da torneira. Aliás, se as garrafas forem transportadas debaixo de sol causticante, durante longo tempo e em viagem chacoalhada, a água pode até chocar, já que é constituída de matéria viva.
Procurei saber disto tudo porque eu mesma tenho muita dificuldade em tomar água antes de ficar com sede, embora as repetidas conversas com especialistas já tenham me convencido que é isto que me mantém viva, com vitalidade e capacidade intelectual mínima.
Espero que além de entender que manter um nível de hidratação adequado é essencial para a regulação das suas funções mentais e fisiológicas normais, você tenha a disciplina de no verão aumentar seu consumo de água. Dois copos por dia a mais bastam para regular o organismo. E como a água não contém gordura, proteína nem carboidratos, ela não tem nenhuma caloria.
A água é mesmo uma maravilha. Nela tudo é lucro. Sem desperdício.
Feliz 2011! com saúde, amor, prosperidade e harmonia.


segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Punição natalina

Hoje eu tencionava escrever algo leve, mas como uma parte do mundo continuou a viver em um rítmo defasado da harmonia à que o Natal nos leva, sou obrigada a solidarizar-me com as vítimas e adiar as boas-vindas ao verão que chegou no nosso Brasil pacífico.
O Natal na Palestina é um paradoxo vivo. Enquanto os turistas estrangeiros são bem-vindos a Belém para as cerimônias natalinas, os cristãos locais, ou seja, os milhares de palestinos, são bloqueados nos check points e encurralados em suas cidades limítrofes sitiadas por soldados israelenses devidamente armados e alheios ao espírito de paz natalino.
Além deste estado que perdura há anos (o próprio Yasser Arafat foi impedido por Ariel Sharon de participar da missa natalina), parece que Israel deseja continuar uma outra tradição de comemoração militar do Natal bombardeando Gaza. Uns dizem que é uma vontade dos sionistas integristas de desafiar a América e a Europa e mandar a mensagem de que não estão nem aí para o nascimento do tal Jesus Cristo. Outros dizem que a decisão é política, de fazer com que explosões de túneis que alimentam os gazauís famintos, assassinatos de militantes políticos (que se estivessem na França ocupada pelos nazistas seriam chamados de resistentes em vez de terroristas), e a ameaça de prisão do compatriota Jonathan Pollak passarem em brancas nuvens. Apesar do título e do lead, vou falar mesmo é sobre este rapaz de 28 anos apoiado por muitos e elogiado publicamente pelo compatriota Ayed Morrar – internacionalmente conhecido pelo seu premiado documentário em que relata a vitória desarmada de ativistas israelenses que levou à queda do muro na cidade palestina de Budrus.
Apesar de jovem, Jonathan já é veterano deste tipo de batalha contra barreiras, muros de separação, colonização judaica na Cisjordânia. Há anos que vem protestando junto com os nativos e compartilhando com eles os mesmos riscos físicos nos confrontos com as forças militares israelenses que chegam a usar munição real contra as pedras lançadas pelos jovens palestinos quando a situação se endurece.
Mas não é por esta militância atrás do muro da vergonha que sitia a Cisjordânia e confisca terra e água palestina que ele corre risco de prisão, mas sim por ativismo em seu próprio país democrático e livre e na cidade liberal e viva que é Tel Aviv.
O protesto foi pacífico. Um tipo de passeata, ciclista, com outros trinta companheiros pelas ruas de Tel Aviv contra o bombardeio e o sítio de Gaza em 2008. Este tipo de passeata ciclista é até comum em Tel Aviv contra a poluição motorizada e outras causas ecologistas. Ele foi o único do grupo a ser preso e desde então a questão virou política e foi abraçada pelas ligas de direitos humanos e pelos liberais e democratas de uma forma geral.
Por que Jonathan e não um dos outros trinta? Talvez por ser filho de Yossi, conhecidíssimo por ser um dos maiores boicotadores da colônia de Ariel, na Cisjordânia, e por ser neto de Nimrod Eshel, preso várias vezes por sua liderança na greve dos pescadores na década de 50.
Jonathan “milita” desde bebê, quando desfilou pelas ruas de Tel Aviv nos braços da mãe junto com milhares de compatriotas que condenavam o ataque ao Líbano em 1982. A diferença dele com seus companheiros de passeata poupados foi que, em suas próprias palavras, foi mais longe e transformou as passeatas de protesto em ação.
Para Jonathan, racismo, chauvinismo, sexismo, especismo saem do mesmo lugar de diminuir o outro e todos estes “ismos” o indignam. Seu ‘pedigree’ e sua própria militância que começou aos 15 anos, lhe valeram uma despensa pragmática do exército, e acabou não tendo de ser objetor de consciência como dezenas de jovens israelenses que anualmente recusam o serviço militar e vão parar atrás das grades para forçar a barra de suas consciências.
Foi para a Holanda, dois anos mais tarde foi deportado para Israel justamente durante a Intifada do início do milênio e logo juntou-se ao primeiro protesto ante-barreira em Jayyus, na Cisjordânia.
Em sua defesa de Jonatham, Ayev Morrar diz que o jovem tenta provar duas coisas. A primeira é que quem acredita na ocupação não pode se dizer humanitário ou civilizado. A segunda é que resistir à ocupação não significa ser terrorista ou assassino.
Pois é, Danielle Mitterrand, resistente francesa contra a ocupação nazista, já me alertou em entrevista para o perigo de confundir resistência com terrorismo.
Terrorismo é um ato selvagem e covarde feito para aterrorizar e destruir aleatoriamente gregos e troianos, como os ataques que vimos nesta década a Nova Iorque, Londres, Madri, Roma...
Resistência, é um ato cidadão contra a ocupação física e militar ilegal de uma terra e de um povo que quer e tem o direito de existir, livre.
Em um mundo ideal, a resistência seria pacífica.
Não, em um mundo ideal, em que a ONU representasse seu papel de legislador e árbitro de todos os países de maneira igual e ativa, resistência seria inútil e a paz vigoraria.


domingo, 19 de dezembro de 2010

A Palestina e o Jornalismo 2


Hoje vou ser breve.
Uma simples introdução a outro documentário sobre a Palestina, inspirada pelas festas natalinas e a obrigação cristã de defender os fracos e oprimidos.
Desde 2000, quando Ariel Sharon destruiu o aeroporto que Yasser Arafat havia inaugurado dois anos antes, só existe uma entrada na Faixa de Gaza. É uma No-man’s-land do tipo da que separava Berlin Oriental da Ocidental, só que a guarda é apenas de um dos lados. O espaço árido é ocupado por guaritas e soldados israelenses armados controlando entradas e saídas dos palestinos que querem ir à Cisjordânia a passeio ou por necessidade. Mulheres e crianças esperam autorização de saída horas a fio por simples pirraça, segundo depoimento de reservistas – Breaking the silence http://www.shovrimshtika.org/index_e.asp).
A Faixa é cercada de muro ou arame farpado.
A saída alternativa são os famosos túneis sob o muro fronteiriço entre a Faixa de Gaza e o Egito que os gazauís cavam, Israel explode e os gazauís cavam outros em seguida porque sem essas passagens a população da Faixa não teria água, não teria comida, não teria nada e não sobreviveria aos anos de sítio.
Rue Abu Jamil, a última rua de Rafah que separa Gaza do Egito é francês, de Alexis Monchovet e Stéphane Marchetti.
Abu Jamil Street: In the heart of Gaza tunnels (trailer)
Integral com legenda em francês / en entier avec sous-titre en français:
  http://www.lcpan.fr/Rue-Abu-Jamil-03156.html#

domingo, 12 de dezembro de 2010

A Palestina e o Jornalismo



Nos últimos vinte anos têm me perguntado amiúde porque “defendo” a espinhosa causa palestina e tenho recebido vários emails com perguntas parecidas.
Na semana passada muitos demonstraram simpatia com a decisão do Brasil de reconhecer o Estado Palestino nas fronteiras anteriores a 1967. Ou seja, a que respeita a linha verde, derruba o muro da vergonha e liberta a Palestina das colônias e do exército israelense de ocupação.
Mais uma vez, tive orgulho de ser brasileira.
É claro que quem não entende a defesa dos palestinos e a decisão brasileira nunca esteve por aquelas terras santificadas e malditas.
Os que já estiveram e em vez de só subir e descer de ônibus nos lugares marcados sem deixar na Cisjordânia uma divisa ou um shekel sequer para os palestinos que cuidam dos sítios cristãos sagrados, jamais perguntaram nada parecido. Estes enxergam o que o Lula viu e que envergonha de Jimmy Carter, Henning Mankell, Desmond Tutu a nós jornalistas, aos militantes de direitos humanos, sobretudo os israelenses, e que embaraça cada dia mais os organismos internacionais que fazem as leis nas quais Israel pisa.
A resposta é simples. Fazer vista grossa e cruzar os braços é a antítese de estender a mão e de dar a outra face. O jornalismo que escolhi já na faculdade não é só o de chegar junto ou de enfocar a pontinha do iceberg, que na nossa profissão corresponde a “editar” press release sem destrinchá-lo.
Minha repulsão à barbárie começou aos 13 anos, na aula de história quando a dona Léa mostrou entre outras coisas os horrores do nazismo, de Hitler e dos campos de concentração em que homossexuais, comunistas, judeus, deficientes mentais e físicos e todos os opositores, eram tratados como lixo e depois gazeados e despejados em covas coletivas. (Com os ciganos nem se davam ao trabalho – eram fuzilados na hora. Isto ela não disse.)
Como foi possível?! Ela culpou a incipiente rede de comunicações, que se fosse como a presente isto jamais teria acontecido. Acho que nem ela acreditava no que dizia.
Até então eu ainda titubeava entre advocacia, psicologia e arqueologia. Foi aí que escolhi juntar as três matérias em uma e ser jornalista. A geopolítica veio com o estudo, o aprendizado das pessoas, dos fatos e a visão em macro da vida e do mundo.
Quanto mais conhecia a situação da Palestina, mais sabia que a questão religiosa era uma cortina de fumaça e que as gerações futuras julgariam a de agora, a nossa, e perguntariam onde estávamos quando os palestinos estavam sendo espoliados, sequestrados, torturados, ocupados, sitiados, concentrados e tratados como animais por um vizinho expansionista - como a nossa geração celebra os Justos e condena os nazistas e seus cúmplices ativos e passivos. No país abençoado por Deus, bonito por natureza e protegido pelo Cristo, tolerar ocupação e limpeza étnica é incabível.
Tenho amigos judeus e israelenses. Não sou pró-Israel e nem pró-Palestina. Sou contra a desinformação que prima e pró-informação cidadã do mundo em que vivo. E no caso da Palestina, são as leis internacionais que ditam o partido da Moral e do Direito, apesar de alguns sionistas integristas discursarem sobre o direito de Israel se proteger a qualquer preço.
Segundo as ONGs israelenses de Direitos Humanos, a melhor defesa de Israel é o respeito destas leis internacionais, o desmantelamento das colônias na Cisjordânia, a retirada do exército de ocupação e o fim dos check points nos quais os palestinos são humilhados e em que o acesso às escolas é bloqueado. Com estas medidas o país obteria a convivência pacífica com que sonha a grande maioria. Esta é a maior vantagem que levarão quando se renderem ao pragmatismo construtivo, dizem os pacifistas.
Eu não tenho mais as mesmas certezas maniqueístas da juventude. Tenho muitas dúvidas. São elas que me conduzem a cavar fundo e largo sem preconceito ou ideia pré-estabelecida e deixar o leitor tomar o seu partido. Neste blog tento informar com uma ótica humanitária e humanista em fase com a ética aprendida no curso de jornalismo, nos livros de filosofia e na convivência com seres humanos que me puxam para cima.
Por isto, antes de resolver traçar-lhes a história de Israel e da Palestina, resolvi presenteá-lo, presenteá-la, com uma pérola de reportagem.
Se puder, compre o DVD que garante remuneração ao imenso trabalho investigativo e tem legenda, que evita mal-entendido.
O documentário vem dos Estados Unidos e é considerado pelos profissionais o melhor que foi feito sobre o assunto. Não é exaustivo e nem abrange os últimos acontecimentos – bombardeio e invasão de Gaza em 2008/09 e ataque da Flotilha humanitária em maio, expansão das colônias e espoliação hídrica desenfreada, mas é o documento visual jornalístico mais completo que existe.
Occupation 101 foi feito por Sufyan Omeish e Abdallah Omeish em 2007. Ganhou vários prêmios internacionais, entre estes, da BBC, de melhor documentário.
A desinformação não é uma sina. Informar-se a fundo é importante antes de tomar partido.
Bom filme.

Site oficial de Occupation 101: http://www.occupation101.com/about.html
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domingo, 5 de dezembro de 2010

Desenvolvimento é compatível com biodiversidade?

Faz alguns meses que não vou à África Negra, mas a distância física não me fez esquecer o Okavango, o rio que jamais encontra o mar e que paradoxalmente foi protegido por uma guerra civil interminável em Angola, onde nasce perto de Nova Lisboa e atravessa correndo centenas de quilômetros de terreno minado para regar uma faixa da Namíbia até chegar ao Botsuana e se jogar em um delta raro, cujo ecossistema foi pouquissimamente tocado.
Vistos do alto, os igarapés trançados com ilhotas entremeadas parecem uma figueira carregada de frutos de verde a maduro de tamanhos variados. Por baixo também a beleza é de tirar o fôlego até de um citadino inveterado para quem uma arrebatadora paisagem biodiversa não representa nada.
O Okavango desemboca no deserto de Kalahari, que antes de absorver-lhe a água o deixa irrigar quinze mil metros quadrados de seu solo árido. É espetacular. Mas como valorizo mais a vida que a natureza alimenta e cria em vez do espetáculo, embora dez por cento do PIB do Botsuana venha desta atração turística* , o maior valor dessas águas é o de ser sua única fonte hídrica, assim como da Namíbia.
Politicamente, estes dois países são relativamente estáveis, mas a miséria de ambos é altíssima, além de um nível quase pandêmico de AIDS. A Namíbia tem 15% da população infectada e no Botsuana a média de vida nos últimos anos baixou de 65 a 35 anos.
Faz tempo que o Botsuana vem se desertificando. As chuvas esparsas que caem durante o ano só conseguem regar 5% do território e 75% da população dependem de aquíferos subterrâneos acanhados. Mas graças à sua estabilidade política regional rara, beneficia de fundos internacionais assíduos, com a condição sine qua non de preservar o ecossistema da foz do Okavango.
Sem estes incentivos o Botsuana já teria danificado o sítio tão defendido como a Namíbia, que com 50% da população na miséria, trabalho infantil banalizado e recordista mundial de tráfico de crianças, só pensa em construir açudes que melhorem suas condições de vida.
Apesar disto, logo após a independência da África do Sul em 1990, a Namíbia criou a OKAKOM (1), uma comissão permanente conjunta para a água (com o Botsuana para tratar da administração bilateral do rio. Quatro anos mais tarde a Angola, mãe da nascente e que detém 80% da água, passou a integrá-la.
A comissão tripartite gerencia a crescente demanda dos benefícios da bacia e toca projetos sustentáveis. Ela funciona até bem apesar dos bate-bocas esporádicos, e entre os dois primeiros, da disputa da ilha Kasikili/Sedudu (que quer mesmo é autonomia).
É aí, no apaziguamento e na busca de soluções viáveis, que entra a Cruz Verde Internacional(2), uma ONG presidida por Mikhail Gorbatchev desde 1993. Pouco conhecida, mas ativa na busca de soluções humanistas para conflitos potenciais ou declarados que envolvem ecologia e no “tratamento” do ecossistema planetário.
Este rio quase prístino que corre por um terreno extremamente subdesenvolvido e árido é um exemplo típico da escolha difícil que os países africanos têm de fazer entre desenvolvimento e preservação de sua biodiversidade.
A Cruz Verde nasceu da urgência ocidental de salvar o que for solvável, já que o patrimônio ecológico “excedível” dos europeus e dos norte-americanos foi dilapidado no processo de desenvolvimento em uma época em que Ecologia era uma palavra que só existia no dicionário.
O BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China), elite reduzida das potências emergentes da qual o nosso faz parte, abusa de água e vem mostrando as garras na corrida desenfreada para alcançá-los e ultrapassá-los. Com armas mais ou menos morais, conforme a letra e o caso.
Do outro lado os países atolados no subdesenvolvimento se encontram em um impasse complicado. Proteger a natureza ou explorá-la?

Alguns têm meios de não depredá-la, como é o caso de Angola com seus recursos naturais, suas minas de diamante e o petróleo que jorra e parece não acabar. Porém, na África a riqueza natural serve mais a senhores de guerra e a quem está nas rédeas do Estado e seus agregados do que ao crescimento nacional. (Talvez alguém saiba como sair deste círculo vicioso. Eu não sei de nada.)
Outros países têm clima desigual, recursos limitados, mas são banhados por rios que podem fornecer energia e irrigar culturas agrícolas, como é o caso dos membros da bacia do Nilo. Mas para isto precisam de barragens, hidrelétricas, irrigação, e na maioria das vezes o desenvolvimento que a população espera chega a um custo mais alto do que pode pagar.
No último vagão estão os desprovidos de riquezas naturais capitalizáveis, maltratados por uma seca interminável, com a população que morre jovem mas não para de aumentar, e que para sobreviver com fundos internacionais assinam tratados com órgãos como o Ramsar(3) – convenção que controla as terras úmidas do planeta desde 1971, com 160 países membros, 1899 sítios designados que cobrem uma área de 186 milhões 549 mil 794 hectares. Protege o planeta, mas de certa forma estagna nações como estas da África Austral.
Outro dia um amigo insistiu comigo que o patrimônio ecológico universal tem de ser protegido a qualquer preço. Eu também acho... quando estou em cidades em que abro a torneira e sai água potável e em países que beneficiam daquela chuvinha chata, mas que o agricultor agradece porque é a que realmente irriga o solo e garante uma colheita farta. Porém, quando vejo terras que o sol racha todos os dias de manhã e de tarde queimando a vida de homens, mulheres e crianças que definham por falta de água, perco minhas certezas ocidentais bem alimentadas e hidratadas à vontade, com água potável.
Parafraseando livremente o escultor Alberto Giacometti, entre salvar um homem e uma árvore, acho que salvaria o meu semelhante. Digo isto sem saber muito bem onde, em certos casos, está a moral. O que sei é que a Cruz Verde e os demais organismos internacionais têm de encontrar um equilíbrio entre o tudo ou nada que permita a estes países um desenvolvimento sustentável que os salve.
Por enquanto, por onde ando, só vejo um caminho imediato viável. O da cooperação em forma do sistema de troca que levou o Homo de Habilis, a Erectus a Sapiens. Eu não tenho frutas exóticas, matas, animais, acabei com a minha biodiversidade, mas tenho água ou a tecnologia de dessalinizá-la e saneá-la. Você me dá o que você tem e eu lhe dou água potável.
A equação é elementar.
O Brasil é privilegiado pela natureza e por sua maior riqueza – a herança tupiniquim da cordialidade e de outras qualidades humanas que valem à nação um capital de simpatia sem rival. O Pré-sal perto desta dádiva não é nada.
Sabe-se de projetos que o governo e ONGs nacionais vêm desenvolvendo no sertão há alguns anos. Esta tecnologia poderia ser exportada, a preço abordável, com a mensagem implícita que o Brasil quer chegar ao topo da escada sem esmagar ninguém na subida dos degraus.
Doze por cento da água do planeta circulam no nosso país. Além de protegê-la, podemos ajudar os que estão em falta sem perder nada e ainda obtendo algo. Assim tomaremos a frente do BRIC, para começar, no plano moral.
Os EUA já pagaram e vão pagar, até quando não se sabe, o preço de uma hegemonia adquirida com exploração e inimizade. A China, que sem o Tibete – dos “mil montes e dez mil fontes” – fica acuada, se exaure e para, está seguindo seus passos.
O Brasil tem outra história, uma índole solidária e recursos suficientes para manter a alma intacta. Com o reconhecimento do Estado Palestino já deu uma lição de lucidez e humanidade. Não há porquê manchá-la.
Ramsar
Biodiversidade
Okavango
2. Cruz Verde http://www.gci.ch/
3. Ramsar http://www.ramsar.org/cda/es/ramsar-ramsar-movie/main/ramsar
GCI Brasil: http://www.greencrossbrasil.org.br/

domingo, 28 de novembro de 2010

Os dois têm de querer para não ter briga

Por que certos países preferem brigar em vez de cooperar e todos terem os recursos que necessitam, sobretudo a água sem a qual ninguém sobrevive?
Para nós brasileiros que vivemos evitando atrito, parece mesmo difícil entender o porquê de outros preferirem a briga.
A resposta à pergunta dos dois leitores exige um grão de filosofia porque o conflito e a cooperação hídrica são processos sociais baseados em um emaranhado cultural intrincadíssimo. A sociedade é o produto de uma longa jornada evolutiva na qual mudanças e adaptações constantes foram possíveis graças às forças motoras da inteligência e da organização social que nos dão o poder mental de transcender o mundo tangível, de sobreviver em qualquer ambiente, de resolver problemas. Entre os quais, o de conviver com pessoas que não falam a mesma língua.
Apesar disto, tem sempre mais problemas para resolver em um ambiente social do que em ambientes naturais por causa das nossas emoções e mudanças de humor e de vontades que aproximam nossos semelhantes ou os ameaçam e agridem. E apesar da dinâmica pessoal, nossas percepções, sensibilidades, acabam resultando dos parâmetros da herança familiar, social, religiosa, e embora não sejamos marionetes passivas que repetem programas culturais tradicionais, também não somos totalmente livres.
Para sobreviver, conciliamos nossa realidade individual com a dos demais, mas mesmo assim, continuamos olhando mais ou menos os outros e o mundo com a ótica dos princípios morais que adquirimos. Portanto, o processo entre conflito e cooperação nunca se resume a um cálculo econômico, confrontações ideológicas ou disputas legais. E a cooperação está sempre ligada a noções de aceitação, respeito e reconhecimento mútuo de direitos e obrigações calcados na ética da justiça e da equidade.
Esta é a teoria básica. Na prática, cada lado está imbuído de noções éticas emotivas e uma visão estratégica, social e econômica egoísta. Desconfiança, pendências e inimizades são os maiores obstáculos à solução de um conflito. E quando ele dura, a solução às vezes chega pelo cansaço, mas para vingar ela tem de ser apresentada como uma vitória de ambas as partes.
Com raríssimas exceções, ninguém muda de opinião da noite para o dia em relação a decisões cruciais. Quando digo da noite para o dia, na dimensão de um conflito, quero dizer mês ou ano, dependendo da tradição e do “benefício” novo ao qual se adere por querer ou por ser obrigado.
O processo de mudança é gradual e cumulativo. Começa com a rejeição do antigo, passa para o ajustamento estrutural ao que é noviço até chegar à re-organização das idéias na qual se integra os novos conceitos até chegar a praticá-los em harmonia com o que se assimilou e nos modifica.
Em alguns casos as contingências sociais e históricas facilitam a difusão e assimilação de ideais chave e estas formam os alicerces das mudanças sociais. Mas na maioria das vezes o sofrimento e a humilhação a quem se pede (ou exige) uma adaptação inviabilizam qualquer disponibilidade individual de adesão.
Os países industrializados já impõem limites ao crescimento baseados em um sistema de ética e uma noção nacional de justiça. O problema é que quando lidam com outros países perdem de vista este prisma vital.
Uma tentativa de transformar situações de conflito declarado ou potencial é quase vã quando não é acompanhada de mudança social. O fim das hostilidades tem de chegar em ambiente que sustente uma cooperação real entre indivíduos, governos e grupos sociais.
Uma política hídrica coerente depende também de informação permanente sobre o valor da água. Saber que este valor é muito mais alto do que a conta mensal é que gera mudança de atitude e define a fronteira entre o desperdício, o uso responsável e a consciência da necessidade de compartilhá-la com os carentes deste elemento nutritivo básico.
Mas como a questão da água só está na pauta internacional há quarenta anos, faz pouco tempo que se fala no recurso finito e vulnerável da salubridade e do processamento e gestão participativos – do legislador ao planificador até o usuário que é a peça fundamental.
E o assunto é complicado porque atualmente as atividades geradoras de crescimento resultam quase sempre na contaminação dos rios e aquíferos em todos os lados. Se esta situação não mudar de maneira radical, a água disponível estará contaminada demais para ser consumida. O único jeito de reverter o processo é criando ações proativas locais e nacionais para combater a poluição hídrica e recuperar rios poluídos.
Nas cidades, uma rede de saneamento ampla e fiável é crucial para a estabilidade e a segurança urbana. Além de garantir a saúde do usuário, permite o funcionamento de hospitais e de indústrias. O fornecimento seguro e democrático de água é o alicerce de uma cidade realista e sustentável.
Lima, a maior capital situada em zona desértica (mais do que o Cairo), é um caso típico de defasagem entre o “econômetro” de certos organismos internacionais que a consideram uma boa praça de negócios e sua precariedade na distribuição de água, na qual seu “sociômetro” está bem baixo.
Quem já conhece a capital do Peru ou esteve lá de passagem para a Maravilha que é o Machu Picchu e conhece outras cidades altas, sabe que seu clima é mais ameno do que em outras partes. Em Lima chove mais ou menos dez minutos por ano. É um deserto úmido com 8,3 milhões de habitantes. Uma metrópole saturada em que a rede de saneamento é precária e serve os bairros ricos a um custo baixo em relação ao que os menos favorecidos pagam para obtê-la nos caminhões-tanques que chegam à periferia.
A dificuldade da metrópole em que vivem 30% da população peruana é justamente o fluxo migratório que não para. Centenas de pessoas chegam diariamente das montanhas em busca de trabalho e melhores condições de vida e se instalam nos pés das colinas em favelas sem eletricidade e sem água. Esta migração maciça espicha Lima, agrava diariamente o problema da salubridade e de repente a água potável virou um produto de luxo na capital de um país vizinho considerado “bancável”, mas frágil nas bases.
Por enquanto as classes média e alta estão despreocupadas, mas nenhum país está imune a conflitos quando a indigência gangrena a capital. Precisa mudar, mas mudanças importantes só são viáveis quando a causa é claramente identificada e o problema é reconhecido pela maioria das pessoas afetadas para que se encontre os meios de gerar e viabilizar soluções que as satisfaçam. Um caminho simples, em teoria, mas na prática é bem complicado porque o processo racional é paradoxalmente abstrato. No concreto, as idéias são mais ou menos pensadas e mais ou menos bem apresentadas, geradas e traduzidas em atos.
No tocante à água, a decisão pode vir de um ministério e transmitida à população como uma benfeitoria para a nação, ou seja, que amplifique vontades já manifestadas ou prometa um ganho pessoal, social e conômico substancial. E além do ministro responsável pelo saneamento, tem de envolver no processo seus colegas de comunicação, educação, cultura, professores universitários, instituições de pesquisa e ONGs para trabalharem juntos na mobilização, informação e provocar mudanças.
Lima é um exemplo nacional, mas procedente, já que os conflitos internacionais quase sempre nascem de insatisfações locais, nacionais, que atravessam fronteiras por necessidade ou que são maquiadas para fins eleitorais ou de simples popularidade e canalizadas para uma rixa externa que una a população a curto prazo. Depois fica difícil voltar atrás.
Quando as tentativas de apaziguamento se calcam apenas na história, no direito e nas obrigações legais, elas já começam mal. Não é justo, mas é a realidade. Para passar da primeira etapa ou da primeira hora de debate, os argumentos têm de se restringir às vantagens mútuas da cooperação e só depois passar ao direito e à moral.
Embora as mulheres sejam as principais usuárias de água, elas são quase sempre deixadas de lado nos processos de planejamento e decisório. Uma campanha hídrica eficiente seria a que as atingisse porque quer queira quer não, são elas que determinam os valores ensinados às próximas gerações. E é ensinando às crianças princípios morais baseados na partilha de valores humanos fundamentais de justiça e equidade que se construirá um mundo em que, entre todos os bens essenciais de consumo, a água ocupe lugar de destaque e, mais cedo do que tarde, sobrevivência e convivência pacífica e solidária.
Na maioria dos países que vivem em conflito, uma mulher com os pés na terra, com voz ativa, é quase uma utopia. O voto majoritário na Dilma mostrou que no nosso sabemos que é possível. A Marina em um Ministério do Meio-ambiente e Social, responsável pela proteção dos seres vivos de maneira geral mostraria que no campo feminino da política o bom senso predomina.
Mostraria também que a obra de Thomas Moore anunciava um sistema que de tão desenvolvido virou adjetivo, mas que o Brasil, pouco a pouco, com bom senso e olhando para o povo, abraçaria e conseguiria.

Machu Pichu

domingo, 21 de novembro de 2010

A arma da sede na ocupação da Palestina


Desde que comecei este blog não param de perguntar qual é o papel da água no conflito entre Israel e os Territórios palestinos Ocupados. A resposta é simples: a água tem tanta importância quanto a terra.
Já antes da criação de Israel, os sionistas (1) reivindicavam um Estado baseado em critérios religiosos e hídricos: o vale do Litani (no Líbano), o vale do Yarmuk (Jordânia, Síria, Palestina) e toda a margem direita do Jordão.
Em 1947 a ONU entregou ao Estado judeu dois terços da Palestina e recursos hídricos consideráveis, mas aquém do cobiçado. Inconformado, Israel, um ano mais tarde, começou a confiscar e estatizar terras e recursos naturais “liberados” pelos massacres (denunciados até por Einstein) que forçaram os palestinos à diáspora e às centenas de milhares de refugiados. Em seguida atacou o sul do Líbano e no final das disputas acabou ficando com a Galiléia e o Néguev, um deserto que viria a irrigar através de um aqueduto que leva a água de uma à outra área anexada.
Com o passar dos anos as tensões foram aumentando e culminaram na Guerra dos Seis Dias, resultante do bombardeio de instalações hidráulicas sírias no lago Hulé, de cujas águas Israel temia ser destituído. No sétimo dia o exército israelense tirou o Golan da Síria e realizou dois dos sonhos hídricos sionistas: apossou-se da maioria do vale do Yarmuk e de toda a margem direita do Jordão, privando a Cisjordânia da água que lhe cabia.
Assim, a partir de 1967 e da ocupação dos Territórios palestinos, a política de espoliação se estendeu à Cisjordânia e à faixa de Gaza. Em 1993, na assinatura dos acordos de Oslo, 82% das camadas freáticas da Cisjordânia foram parar nas mãos de Israel enquanto o mundo inteiro criticava a “má-vontade” de Yasser Arafat omitindo a armadilha em que havia sido colocado e o sapo com o qual ele engasgava.
A “guerra” hídrica israelense mais recente foi durante a Copa de 2006, quando para apoderar-se da bacia do rio Litani bombardeou o Líbano do sul a Beirute durante 34 dias. Acabou dando com os burros n’água, saindo de mãos vazias e fortalecendo o Hezbollah, cujas bases eram até então movediças.
O choque com o Líbano para em reticências... Passemos ao conflito do dia a dia na Palestina pela água, e mais ainda.
Em 2005, em uma operação mediatizada por Ariel Sharon como um gesto de boa vontade, Israel procedeu à evacuação das instalações militares e das 21 colônias judias em Gaza. Era uma estratégia de guerra (bombardeio e invasão três anos mais tarde) e por terem esgotado o potencial hídrico da Faixa. Na Cisjordânia as colônias israelenses não pararam de se multiplicar e visam, além da ocupação e expansão territorial, os recursos naturais palestinos. Sobretudo a água.
Há duas grandes camadas freáticas em Israel e na Cisjordânia. Esta detém a mais ampla e os dois compartilham três sistemas de água inter-relacionados.
O sistema de subsolo – o Aquífero da Montanha – atravessa a Linha Verde (delimitação da ONU da fronteira entre Israel e a Cisjordânia) e tem 130 quilômetros de comprimento, do monte Carmel ao Negev, e 35 km de largura, do vale do Jordão ao mar Mediterrâneo.
Ele é subdivido em três sub-aquíferos.
O Ocidental, de alta qualidade potável, está quase todo na Cisjordânia, embora Israel se reserve a estocagem completa e o uso de 95% desta água.
O segundo sistema, o Aquífero do Norte, é recarregado e estocado essencialmente na Cisjordânia, mas Israel extrai 70% para uso próprio.
E 37% da água do terceiro sistema, o Aquífero Oriental, inteiro na Cisjordânia, é consumida por Israel, majoritariamente pelos colonos instalados nos Territórios Ocupados.
A média de água que cabe aos palestinos na Cisjordânia é de 70 litros per capita, por dia. Cada colono das 121 colônias israelenses na Cisjordânia desfruta de 1.450 metros cúbicos.
Em apenas 16% das comunidades palestinas (100 de 708), o acesso à água excede 100 litros per capita diários – que é o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde para evitar epidemias. O preço da água fornecida por tanques privados que vendem aos palestinos a água tirada das fontes desviadas são exorbitantes (2).
Apenas 69 comunidades palestinas possuem rede de água potável. As demais contam com chuva, fontes, poços, e para os que conseguem pagar, com esta água cara. O acesso ao Jordão é negado aos palestinos em toda a sua extensão. Até o Mar Morto.
Em Gaza o problema atinge proporções dramáticas por causa de escassez e insalubridade: a média é de 140 litros diários para 1,5 milhões de habitantes (3).
As camadas freáticas acessíveis estão esgotadas e a única água disponível a grandes profundidades é turva ou salgada (4). Apenas 7% da água em Gaza correspondem aos critérios potáveis da OMS e os casos de cólera, disenteria, hepatite, febre amarela e outras doenças correlacionadas são crescentes, sobretudo entre as crianças, mais vulneráveis. Estima-se que dentro de 15 anos, caso não se tome providências imediatas, Gaza não tenha uma gota de água potável (5).

A Anistia Internacional fez um relato minucioso da espoliação progressiva (6) e até o Banco Mundial já comprovou e denunciou a injustiça. Mas ficou por isso (7).
Se as leis internacionais fossem aplicadas, esta expropriação hídrica seria impedida, sancionada e Israel seria obrigado a compensar a Palestina pelo desvio passado e presente de seus recursos hídricos e de suas perdas agrícolas.
Em vez disto, Israel continua negando aos palestinos o direito de cavar cisternas e confiscou muitas destas para seu uso exclusivo. Para outras, estabeleceu quotas para seus proprietários legítimos.
No verão a companhia israelense Mekorot (que assinou um contrato milionário com o governo português no ano passado para entrar na Europa de fininho achando que assim escapa da campanha de boicote dos cidadãos dos outros países mais bem informados) costuma cortar o fornecimento às cidades palestinas para que a seca não afete seus compatriotas em nada. É comum ver na Cisjordânia casas de colonos com piscinas cheias e com jardins sendo irrigados enquanto do lado famílias nativas não dispõem de água potável para suprir necessidades básicas.
E tem o muro, que é da vergonha mas também da água. Ele devora a Linha Verde, divide lavouras, separa os habitantes de seus recursos hídricos e cerca fontes para extraviar a água palestina para Israel e seus colonos nos Territórios Ocupados.
Algumas das maiores colônias israelenses, como Ariel e Qedumin, foram erguidas no Aquífero das montanhas ocidentais, em plena região agrícola da Cisjordânia – é onde o muro invadiu mais terra para anexar fontes vitais aos nativos.
25 postos hídricos e 35 mil metros de encanamento foram destruídos em sua construção. E ele destruiu ou isolou de seus proprietários cerca de 50 fontes e mais de 200 cisternas e tanques, dos quais mais de 120 mil pessoas dependem para uso doméstico e agrícola.
Este é um caso típico da água como arma de guerra e instrumento de subjugação. Porém as leis internacionais parecem não se aplicar à Palestina, um Estado não reconhecido pela ONU cuja população é apátrida em sua própria terra.
A importância da água é tanta nessa região, que os Acordos de Oslo de 1993 (que terminaram com o célebre aperto de mão entre Yasser Arafat e Itzhak Rabin) nasceram em Zurique em 1990 de uma série de encontros privados entre intelectuais israelenses e executivos da OLP organizados por responsáveis locais, do quê? Da água.
Hoje a situação e o problema estão muito mais graves, as colônias em vez de diminuírem multiplicaram, os palestinos vivem encurralados e o próprio ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, ocupa uma bela casa na Cisjordânia e é um racista declarado, com forte odor de fascismo, segundo o jornalista e escritor israelense Uri Avnery (8).
Boa sorte aos intermediários.

1- Partidários da teoria confeccionada por Theodor Herzl em livro publicado em 1895 “O Estado Judeu”, no qual prega o Sionismo, que aplicado ao pé da letra exclui a presença dos palestinos, razão pela qual, em 1975, uma moção da ONU estatuou ‘sionismo = racismo’, revista em 1995 por pressões político-sionistas.

2- Drying up Palestine

3- Procurando água em Gaza


4. http://www.youtube.com/watch?v=ug48wn0yhCg;

5- Aquíferos bloqueados para Gaza

6- Anistia Internacional: Ocupação hídrica  http://bit.ly/1rNuiN


sábado, 13 de novembro de 2010

A água que sufoca é a mesma que hidrata?


Soldados estadunidenses em ação no Iraque
Entre os leitores deste blog há dois fãs declarados das 24h que deram ao Kiefer um nome ao sobrenome famoso do grande Donald Sutherland.
Confesso que este seriado “que tem coragem de mostrar os bastidores da espionagem!”, “cujo realismo é de tirar o fôlego!” segundo os fãs citados, atraiu minha curiosidade na primeira temporada, mas me cansei depressa da novidade e nem vi o final. O horror à violência gratuita e à demência institucionalizada me afastou para longe e só voltei à carga na inauguração da sétima temporada. Assisti ao telefilme “Redenção” porque pensei que um ator como Robert Carlysle, frequente em filmes engajados como Carla’s Song do Ken Loach, não emprestasse seu talento a algo sem sentido social. Fiquei na vontade. Ele também deve ter ficado.
As defesas de Jack Bauer chegaram justamente em uma semana que começa com a liberdade da resistente birmanesa Suu Kyi. Por isto e pela campanha da Anistia Internacional, resolvi falar da tortura, prática que uma e outra também condenam e que é uma constante no programa acima mencionado.
A tortura é um crime abominável. Seja ela usada por criminosos reconhecidos ou institucionalizada.

Este crime está na moda desde 2001 e o ataque dos Estados Unidos pelo Al Qaeda. Mas a “guerra contra o terrorismo” não o desculpa em nada, embora nos cinco continentes seja praticado e esteja quase banalizado. Como se as leis internacionais não significassem realmente nada.
Que o fã de 24 não se iluda, a tortura não é usada para extrair informação, mas sim para estabelecer o terror, calar bocas, punir o torturado pela impotência e pela ignorância do que o verdugo quer saber e não sabe.
O torturador não é um herói televisivo, mas um covarde.
Nenhum fim justifica o recurso a este crime que equivale a assassinato e toda violência física e psicológica grave.

Um terrorista que é torturado para dizer onde pôs uma bomba prestes a explodir é um roteiro cinematográfico repetitivo e improvável. Isto nunca aconteceu na realidade e espero que nunca aconteça, pois se acontecesse o mais provável é que a bomba explodisse antes que o segredo fosse revelado. Está provado e comprovado que a violência física e psicológica faz o torturado revelar mais o que ignora do que o que sabe.
A tortura de um verdadeiro terrorista também faz parte da ficção, embora sirva para banalizar e justificar este crime injustificável. Na realidade, as vítimas da tortura são vítimas mesmo; suspeitos, marginais, prisioneiros comuns, oponentes políticos, intelectuais.

A idéia de que a tortura é eficiente para obter informações rápidas e vitais é uma miragem.
A idéia de que a tortura protege o mundo do terrorismo é tão inverossímil quanto Jack Bauer.
A idéia de que a tortura é praticada por verdugos bonzinhos contra terroristas malvados é uma falsidade ideológica lamentável.
O Brasil sabe disso. Durante 20 anos ela foi aplicada em resistentes à ditadura. Nossa presidente foi uma das que resistiu então e seria bom que ela tivesse o poder de fazer tudo para o Brasil sair da lista dos 61 países que recorrem a este vergonhoso exercício.
A lista inclui os Estados Unidos e Israel. Aliás, este último também já tortura desde o século passado. Até meninos. Não seus próprios cidadãos como no Brasil dos militares, mas dos vizinhos do lado.


A Anistia Internacional sempre disse que a tortura é a única forma de violência que um Estado negará exercer sem jamais ousar justificar.

Há algum tempo Eitan Felner, diretor da ONG israelense de direitos humanos B’TSELEM, desmentiu esta premissa declarando indignado e compungido que seu país era o único que admitia a tortura legal e verbalmente http://www.btselem.org/english/torture/interrogation_regime.asp.
Os depoimentos sobre tortura são raros. Bem aquém do quanto é aplicada. Talvez porque os torturadores não façam muita publicidade, porque levem o torturado à morte física, mental e emocional, ou porque o assunto repugne tanto o leitor quanto o jornalista que o trata.

Na Palestina, desde a ocupação em 1967, mais de 650.000 cidadãos foram detidos em Israel e embora os jornais lhes dêem pouco ou nenhum espaço, muitos dos torturados falam. O número de reclamações foi tão alto e as consequências tão graves que em 1999 a Alta Corte Internacional de Justiça foi obrigada a excluir publicamente quatro tipos de torturas usadas contra os palestinos sequestrados: o direito de “sacudir” uma pessoa, de conservá-la na posição de “shabach” (amarrada/algemada em uma cadeira pregada no chão) e de “quambaz” (de sapo) durante horas de interrogatório e privação de sono. São algumas das “técnicas” denunciadas pela B’TSELEM como correntes nos porões nacionais.

Em vez de banidas elas foram aperfeiçoadas e exportadas para os quatro cantos do planeta e continuam a ser usadas contra palestinos de todas as idades. Os relatos/relatórios mais terríveis são de meninos entre 13 e 18 anos, presos por jogarem pedras ou como um de 15 anos que foi detido durante seis meses por porte de “explosivo”, que no caso específico era um traque. Com a etiqueta de terroristas, os meninos sofrem tratamentos psicológicos e físicos desumanos, há denúncias até de estupros, até “confessarem” e serem levados a uma delegacia regular para repetirem a “confissão” e esta ser usada em tribunal.

Como a água é um dos nossos temas chave, heresia das heresias, a fonte de vida que irriga o cérebro do homo sapiens protagoniza uma tortura muito antiga que foi usada à vontade no Camboja pelos Kmers Vermelhos e que voltou à moda em 2005 quando os Estados Unidos passaram a usá-la no Iraque, em Guantánamo e alhures, disseminando a prática.
Está ilustrada acima e se chama water boarding.
Não vale a pena traduzir porque é sempre aplicada na íntegra, em versão original e acompanhada de humilhações verbais.
Embora provoque um estrago inimaginável, o water boarding é barato, só pede um capuz e um pouco d’água. A sensação é de um afogamento que não acaba, ou melhor, acaba quando se afoga, literalmente, em um balde d’água.
Na maioria das vezes a vítima é imobilizada, deitada, encapuzada, amordaçada e recebe água na cara. Mesmo sabendo que não está na água, a sensação de estar imerso e incapaz de subir à tona porque se está preso é nítida e incontrolável http://www.youtube.com/watch?v=4LPubUCJv58. Os torturadores apressados imobilizam a vítima, a encapuzam, amordaçam e jogam água na cara até o torturado pedir arrego ou desmaiar.
Como todas as torturas, suas sequelas são indeléveis. Sobretudo nos meninos e nos adolescentes, pois o objetivo da tortura é roubar a dignidade, destruir a coragem, fabricar covardes, párias da sociedade. Quando não um verdugo a mais.
Os homens têm uma imaginação às vezes fértil demais.
Vide Oppenheimer.
Conseguem transformar tudo em arma.
Até a água. 

 http://www.democracynow.org/2008/7/7/award_winning_palestinian_journalist_mohammed_omer
  

Democracy Now: A Debate on Torture
Legal Architect of CIA Secret Prisons, Renditions vs Human Rights Attorney.
I

II
III

domingo, 7 de novembro de 2010

O Mar Morto nos passos do Aral


Não é que não tenha gostado, mas por que cargas d’água falar sobre teatro em um blog especializado?!
Esta pergunta chegou por email ontem e me lembrou o que o "seu" Oscar (Niemeyer) me falou sobre a deficiência do sistema universitário que prepara profissionais cada vez mais especializados, porém, sem nenhuma cultura geral e achando que isto é normal.
Eu faço parte de uma minoria que acha a cultura necessária inclusive para enxergar o que não dá na vista e analisar o porquê de um semelhante nosso oprimir, torturar e esquartejar sem que a consciência pese.
Entre Jack Bauer e suas 24 horas de coreografia que legitima a tortura e a banaliza junto ao aficionado e aos GIs e mercenários, e os horrores do filme Saló de Pier Paolo Pasolini, em que mostra a face perserva e degradante do fascismo a fim de provocar o asco que esta ideologia representa, fico com a realidade do poeta italiano assassinado.
Aliás, Pasolini nos legou três frases que eu assinaria embaixo. A primeira é de ser cristã dos três primeiros séculos em que o cristianismo era praticado na íntegra com soldados jogando as armas fora, os abastados compartilhando víveres e os ofendidos dando a outra face. A segunda é que "o verdadeiro pecado não é fazer o mal, mas sim não fazer o bem ou não fazer nada". E o terceiro é que "a cultura é uma resistência à distração".
O caro leitor que se deu ao trabalho de me escrever (e os outros tantos não citados) agradeço pela assiduidade e explico que para conseguir entender melhor o mundo, a vida, a natureza dos conflitos, preciso ler não apenas livros especializadíssimos e encarar o mal in loco, mas também observar a vida e aproveitar a inteligência criativa do artista ou autor comprometido com o mundo em que vive. É em uma reflexão pluri-disciplinar e proativa que consigo enxergar melhor o mal sob todos os prismas e analisar com mais acuidade as pessoas que o fazem e o por quê disto.
A cultura é o motor da humanidade, no sentido próprio e figurado, e a hidropolítica e a geopolítica fazem parte deste meio cultural amplo e irrestrito. Todas as disciplinas estão interligadas e uma enriquece a outra e quem as põe em prática. Veja só o Mar Morto. Aparece na Bíblia, em guias turísticos, em livros de geopolítica e na hidropolítica. O mesmo sítio pode ser abordado sob quatro óticas à primeira vista distintas e se eu só pensasse e só soubesse de geopolítica e hidropolítica, minha abordagem seria manca e nesta crônica de uma morte anunciada faltaria a liga adequada.
No início de agosto falei sobre o mar Aral que conheci ainda com água e segui seu esgotamento rápido entre o Uzbequistão e o Kazaquistão até virar uma cratera desértica, contaminada e fétida. E embora o Aral esteja distante da nossa América, fiquei impressionada com o interesse demonstrado pela matéria que escrevi mais como um desabafo indignado.
O de hoje também é um desabafo que envolve o Oriente Médio, o rio Jordão e o Mar Morto (em árabe; em hebraico o nome é Mar Salgado). Caso o problema de exaustão de suas águas não seja remediado, dentro de quarenta anos estará seco como o Aral.
O Mar Morto se situa entre a Jordânia na margem oriental e na ocidental em Israel e na Cisjordânia. É alimentado pelo rio Jordão e está 422 metros abaixo do nível do mar, o que faz dele o ponto mais baixo do planeta. Na década de 60, estava a 395. A perda hídrica de um terço nos últimos cinquenta anos se deve um pouquinho às mudanças climáticas e muitíssimo aos desvios e à exploração desenfreada das águas para alimentar as indústrias e a agricultura de Síria, Jordânia e Israel – os dois últimos explorando a fundo a indústria turística com complexos hoteleiros imensos em suas margens. Quase totalmente privado de água, o Jordão virou também um esgoto das colônias israelenses ao longo de suas margens.
Em 1950, 1.3 bilhões de metros cúbicos de água corriam para o Mar Morto. Hoje em dia, apenas 300 milhões escapam até lá. A primeira vez que vi o Jordão, vi um rio, pequeno, mas um rio. Depois virou um riacho e hoje não passa de um córrego que perdeu 25 metros de superfície.
Noventa e cinco por cento do fluxo do rio Jordão são captados para fins agrícolas e industriais. A poluição do rio é tão grande que o peregrino cristão que quiser se banhar perto de Jericó, onde Jesus foi batizado, corre o risco de ser contaminado com o lixo industrial e o esgoto em que tem virado.
A Jordânia, preocupada com a morte da galinha de ovos de ouro e sob pressão de ONGs ecológicas, propôs a Israel e à Palestina a construção de um canal para levar água do Mar Vermelho ao Morto para recarregá-lo. Os três aprovaram, mas a Palestina está à míngua e além do mais, seus habitantes não desfrutam nem do Jordão nem das delícias flutuantes do mar de água tão pesada que só dá para boiar. Israel concordou, mas não quer pôr a mão no bolso e o projeto que já tinha sido batizado precipitadamente de Canal da Paz só está sendo bancado pela Jordânia. Por etapas.
Se for levado a cabo, o projeto ambicioso deve quebrar o equilíbrio do Mar Morto que embora viva, perderá suas propriedades e será outro mar. Os hebraicos terão de rebatizá-lo com o nome de Mar Doce, se for o caso. Mas como naquela região sempre aparece um fanático para envolver a religião onde ela não tem lugar e não é chamada, já ouvi até dizerem que está dito em algum escrito religioso que o mar salgado um dia ia adoçar...
Qualquer que seja o desfecho deste Mar faz anos que ele está morto e enterrado para os palestinos, embora detenham uma boa parte. Israel, além de ocupar militarmente o Jordão de cima embaixo, construiu colônias judias ao longo de sua margem na Cisjordânia e a entrada de palestinos é vedada, assim como o aproveitamento de seus recursos naturais.
Aliás, como falei em boicote cidadão e solidário duas semanas atrás, aproveito para passar às leitoras o lembrete de uma israelense militante da Coalizão das Mulheres pela Paz (http://coalitionofwomen.org/home/english). Ao comprar seus cosméticos faciais lembre-se que a empresa Ahava Mar Morto está instalada em uma destas colônias ilegais, portanto além de não ser nada ecológica, infringe as leis internacionais. Aliás, em Paris houve um protesto na loja Sephora dos Champs Elysées no ano passado contra a venda de produtos Ahava (http://vimeo.com/11985419). Cinquenta por cento das vendas desta linha de produtos são feitas em 25 países estrangeiros. Olhe bem a etiqueta no Brasil, antes de comprar. Como dizem as militantes do movimento feminino pela paz, Code Pink: Ahava = negócio enlameado, como mostra o vídeo abaixo.
Voltando ao Mar Morto, sua morte concreta seria um desastre turístico e quebraria o equilíbrio hídrico regional, o que levou organizações européias e norte-americanas a propor fundos a ONGs jordanianas para que tentem um diálogo com Israel. Mas aí veio à tona uma questão elementar: Quem vai representar os palestinos e quanta água lhes será deixada?
Os financiadores fugiram do assunto e as ONGs puseram na balança de um lado sobrevivência e do outro finanças. Não precisaram pensar muito. A sobrevivência hoje não envolve projetos com Israel que descarta toda possibilidade de evacuação das colônias judias que contaminam e desperdiçam a água à qual não têm direito legal. Portanto, o Canal da Paz está longe de merecer o nome com o qual foi batizado.
E se quiser flutuar nas águas do Mar Morto compre logo sua passagem para Amman e se hospede do lado da Jordânia. Assim você contribui ao financiamento das obras do canal e exerce seu direito de boicotar o que você já sabe.
Mar morto

Who profits from Israeli occupation of Palestine?

Salo, o le 120 giornarte di Sodoma (legendado)

domingo, 31 de outubro de 2010

Чeхов, em Teatro Ecológico de um Visionário

  
Tchekov e Tolstoi em Yalta, em 1900
Alguns dias atrás me perguntaram a quem este blog é destinado. A pessoa disse que embora não entendesse nada de hidropolítica, geopolítica ou algo que as valha, entendia o que eu contava e se sentia mais sabido no ponto final.
Na hora só respondi que também aprendo sem parar e o pouco que sei gosto de compartilhar.
Pelo meio eslavo em que tenho estado e por o curioso ser um amador de teatro, resolvi retornar à pergunta hoje, nesta página, dando um pulinho fora d’água para respondê-la lembrando os quilômetros de florestas russas há poucas semanas incendiadas.
Em vez de reportar dramas e política de reflorestamento, para ser fiel à alma e à erudição do povo atingido por esta tragédia ambiental, prefiro falar em um filho da terra que inaugurou a ecologia no teatro: Антoн Пaвлович Чeхов, conhecido entre nós por Anton Tchekhov - o visionário que criou uma personagem preocupada com o meio-ambiente duzentos anos antes do assunto ser banalizado.
Tchekhov é mais conhecido pela Gaivota, em que questiona o estatuto do artista e sua vaidade; pelas Três Irmãs, em que mostra o tempo passar e a inércia atropelar sonhos e vidas cheias apenas de expectativa vaga; por Platonov e o cinismo que corrói o seu melhor lado; por Ivanov e a pequenez da burguesia sedentária; pela Cerejeira, este jardim secreto das boas lembranças que protegemos a um custo às vezes mais alto do que valem; pelo Tio Vânia, onde as ilusões financeiras e afetivas são destroçadas em silêncios e diálogos cruzados em que os desejos de uns e outros se perdem de maneira irreconciliável até a célebre frase final: My otdokhniom – Nós descansaremos, que inspirou o belo concerto homônimo de seu compatriota Sergei Rachmaninof.
Nenhum destes dramas bem orquestrados, em que as personagens são coadjuvantes e protagonistas sem maior ou menor realce e vilões mais pela irremediável humanidade que Tchekhov destrincha sem condescendência ou piedade, faz parte das suas obras que mais me agradam.
Uma destas é Sakhalina, uma série de cartas redigidas durante sua temporada engajada contra a prisão e sua desumanidade. Nela se sente uma urgência emocional e narrativa em que Tchekhov mostra realmente a cara.
Mas a pergunta que me fizeram só dá para ser respondida em uma peça que talvez seja a menos interpretada: Леший. O nome está em russo não pelo respeito linguístico com o dramaturgo e sua língua materna, mas por uma razão prática. O título Selvagem com o qual batizou o livro publicado em sua terra, foi traduzido em vários idiomas de maneiras variadas.
É conhecida também como o Gênio da Floresta, por causa da mensagem do Bem que realça.
É uma peça do tempo em que Tchekhov caminhava para a celebridade em sua alimentícia carreira literária. Sua filosofia existencial é exposta de peito aberto na figura do jovem médico idealista (como ele mesmo nessa idade) que atravessa os quatro atos tentando despertar os demais para o que realmente conta na vida e para a natureza e suas vantagens.
O Selvagem foi escrita em 1888, representada em dezembro do ano seguinte e tirada de cartaz no sexto dia. Um fiasco. Pior do que o de Ivanov, também rejeitada por causa da crítica acerba à burguesia – a versão atual é a modificada e ovacionada em 1889, após ter sido enxugada dos diálogos que incomodavam.
O desastre de crítica e de público levou Tchekhov a fazer no Selvagem, sete anos mais tarde, mudanças que deformaram sua exuberância idealista ao ponto de torná-la irreconhecível e o título ser mudado para Tio Vânia, celebríssimo em todos os teatros. A partir daí o Selvagem ou o Gênio da Floresta foi engavetado.
Sem querer denegri-la, Tio Vânia, apesar da maturidade dramatúrgica que a caracteriza, é uma cópia pálida e pessimista da vivacidade filosófica da peça da qual deriva. No Selvagem o entusiasmo sopra um humor quase desesperado na mensagem ecológica e premonitória da indiferença humana ao bem não material, aquele que não parece logo rentável.
O gênio Selvagem é Mikhail Krutchev, médico jovem de origem modesta, trabalhador e dedicado a uma filantropia ecológica surpreendentemente contemporânea na qual se lê uma metáfora entre a floresta e a humanidade. O Selvagem luta contra a tendência auto-destrutora do homem que derruba árvores que lhe são vitais. Ele usa a força da floresta para salvá-la e plantar e plantar sem recuar diante das dificuldades. Segue a luz que o leva até o cume onde vê o amor que “é a recompensa de quem trabalha, luta e sofre” até alcançá-lo.
No Selvagem Tchekhov já mostra a burguesia interiorana com sua hipocrisia, mesquinhez, baixeza e monotonia. Ele a expõe sem condená-la com discursos moralistas. Em vez disso escolhe o riso para disfarçar a realidade que denuncia. A moral da estória é que embora a maioria dos homens se autodestrua por inércia e covardia, todos têm a oportunidade de mudar ou pelo menos esforçar-se para conseguir.
É nessa busca do ideal que reside a grandeza humana e na qual o Gênio se destaca e sacode o Selvagem: Tem um selvagem em mim, mesquinho... Não sou um herói? Sê-lo-ei! Farei crescer em meu âmago asas de águia. Se as florestas queimarem plantarei mais árvores. Se não me amarem amarei alguém mais...
No Tio Vânia, Tchekhov flagela seu humanismo e renega seu íntimo. Tira a influência do gênio sobre o selvagem e o que resulta deste vandalismo moral é Ástrov, um médico que também tenta salvar florestas, mas em um papel secundário. Embora continue lúcido, ele não se questiona mais para avançar, consola suas derrotas no álcool e se destrói paulatinamente dando certa incoerência à sua personagem ao repetir um dos discursos idealistas originais do Selvagem. Exaltar a beleza das florestas que inspiram e estão sendo arrasadas; falar sobre enchentes e secas que se multiplicam, reclamar de espécies animais sendo exterminadas e do clima que hostiliza o homem em seu habitat, perde o sentido nos lábios desse gato escaldado incapaz de lutar pelos ideais que no final das contas, quase abate em vez de elevar.
No Tio Vânia a alegria e a crença no homem e em seu potencial foram abolidas. Encená-la tanto e ocultar o Selvagem é dar uma idéia errada de Tchekhov e de sua filantropia literária. Ele não era nem cínico nem melancólico nem desencantado. Era um humanista sem a força do Selvagem e por isto acabou se dobrando à lei do mercado.
Apesar deste lapso, o Selvagem foi criado e mostra que no seio da floresta escura toda árvore cresce em direção ao céu para puxar o homem para cima, para o auge.
Enquanto o Selvagem mirava o alto visando à luz que o iluminava, Ástrov não consegue ver ninguém nem nada. Ástrov é o ébrio que vive a vida como um devaneio e acaba atolado na lama em que se desgarra.
O Selvagem é o operário da humanidade. Que pergunta o que não sabe, aprecia a diversidade em todas suas formas e caras, consome com discernimento e tenta acertar o errado.
É a quem se abre ao gênio que combate o selvagem em si que este blog é destinado.