A decisão da ONU de autorizar a exclusão aérea da Líbia, por unanimidade, em Paris, chegou tarde.
Em fevereiro teria soado justa para os líbios e para o mundo inteiro. Em março parece interesseira.
A resposta demagógica do ditador máximo veio por rádio: “Chegou a hora de abrir as lojas e armar a massa com todo tipo de artilharia para defender a independência, a unidade e a honra da Líbia!”
Kadhafi reivindicou em seguida seu direito de defesa, estipulado no artigo 51 da ONU, e liberou o caminho da emigração “clandestina” para a Europa. Sua arma secreta contra as Forças Internacionais que marcaram bem nos mapas os poços de petróleo para não serem alvos de nenhuma bomba extraviada. Têm de ser preservados para serem repartidos mais tarde.
As bombas ocidentais visam as defesas e as forças armadas do Coronel, os mercenários e não os soldados. Ingenuidade? Os EUA, que há anos usam esta mão-de-obra no Iraque pelas mesmas razões que Kadhafi (isenção de ética e fidelidade cega ao vil metal) sabem da dificuldade, quando não da impossibilidade, de distinguir quem é quem na hora do ataque, sobretudo quando este é feito do alto.
As bombas caem em pontos estratégicos, mas todos sabem que The End só vai aparecer na tela quando em Trípoli o bunker-palácio virar fumaça.
Por enquanto, o muro deste está com um escudo humano, só se vê na rua homens armados, bombas caem sem que a população apavorada saiba muito bem quem e o que é alvo, mulheres choram mortos enterrados e os que vão enterrar mais tarde, e um senhor idoso, que tem cara de quem passou por tudo que um homem pode passar, mas que apesar de tudo é calmo e amável, fez este comentário: "Até hoje nossos filhos e netos pisam e explodem com os milhões de minas deixadas pelos ocidentais. Se tirarem Kadhafi para voltarem a nos subjugar como fazem no Iraque, vou entregar a alma só depois de esvaziar minha arma."
Se o ataque aéreo não surtir o efeito desejado ter-se-á de ir mais longe e pôr tropas no solo... E aí, o que vai acontecer com os soldados ocidentais neste emaranhado tribal?
Parafraseando William Shakespeare, What's done is done. O que está feito está feito. Só resta torcer para que os danos materiais e humanos sejam limitados.
Neste ínterim,
. No Iraque, os cristãos continuam a ser caçados e o milhão que existia quando os EUA invadiram o país, entre mortos e emigrados, resta menos da metade, dos quais cem mil em Bagdá. Al Qaïda os chama de "alvo legítimo" e há meses abriu a temporada de caça. A Fraternidade Islâmica pediu para os iraquianos protegerem "seus irmãos cristãos".
Ainda tem desavisados que põem ambos no mesmo saco.
. Na Palestina, passeatas reuniram milhares de jovens em Ramallah (controlada pelo Fatah) e na cidade de Gaza (controlada pelo Hamas) para exigir a união dos dois partidos. Em Gaza, o primeiro ministro banido Ismail Haniyeh, do Hamas, declarou que está na hora do processo de reconciliação começar. Em Ramallah, o porta-voz do Fatah, Ahmed Assaf, rejeitou a proposta na terça-feira alegando falta de sinceridade.
Está passando da hora dos EUA tirarem as algemas de Mahmoud Abbas e deixá-lo estender a mão a Ismail Haniyeh para a vontade do povo ser respeitada. O único jeito de negociar uma paz viável e durável com Israel é o Hamas e o Fatah caminharem para a mesa de mãos dadas.
O jogo de dividir para reinar já foi longe demais.
A natureza provocou uma tragédia no Japão e em seguida a ameaça de contaminação nuclear apavorou japoneses e os países vizinhos. Todos se lembram do desastre em Tchernobyl 24 anos atrás, cujas consequências os ucranianos sofrem na pele até hoje.
Fora de lá...
No Egito, depois da agressão aos Coptas, cristãos e muçulmanos esclarecidos voltaram a desfilar ostentando a bandeira com a cruz e a lua crescente entrelaçadas. Quem dera o bom senso fosse geral.
Na sexta-feira a União Européia votou contra a exclusão aérea da Líbia, e Nicolas Sarkozy e James Cameron isolaram a França e a Inglaterra dos demais países encabeçados pela Alemanha, que votou conforme à jurisprudência internacional. Esta impõe três condições sine qua non para a exclusão solicitada. Primeiro, “a necessidade óbvia” tem de ser provada, ou seja, que a população está sob ameaça de ataque aéreo e de uso de armas químicas; segundo, tem de haver “base legal clara”, ou seja, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU ou uma condenação por crimes contra a humanidade oficializada pela Convenção de Genebra, contra Kadhafi; e “apoio regional” tem de estar assegurado, que, no caso da Líbia, é da União Africana e da Liga Árabe. Esta terceira condição é primordial. Sem o aval dos africanos e dos árabes, um envolvimento militar da OTAN seria, além dos riscos que a ingerência comporta, irresponsável. A União Africana ficou calada, mas a Liga Árabe concordou com a exclusão aérea. Talvez um pouco tarde.
As tropas de Kadhafi vêm ganhando terreno estratégico, inclusive recuperando Brega e o aeroporto que lhe proporciona abastecimento em víveres e armas, e abrindo caminho para Benghazi. O que não é surpresa, pois a divisão entre os rebeldes é tamanha, e as lideranças tão heterogêneas e sem tática, que mesmo armados de armas pesadas o recuo é diário. Na Cyrenaica alguns habitantes já balançam entre os lados, pois certos grupos também matam civis que não queiram cooperar.
É provável que os mortos sejam contados por milhares, mas as vontades dos grupos rebeldes (fora a de derrubar Kadhafi) são tão variadas ou indeterminadas, que armar essas tribos seria (está sendo?) um grande erro tático a médio e longo prazo. Em vez de baratear, talvez o petróleo saísse custando caro demais. Como no Iraque.
Na França, Nicolas Sarkozy acabou de dar um bom exemplo da necessidade de ter um diplomata de carreira na cabeça do Ministério das Relações Exteriores, para evitar que o presidente faça bobagem.
Seu país já reconheceu o Conselho Nacional Líbio, auto-nomeado em Benghazi, surpreendendo até os aliados com esta urgência em se desincompatibilizar de Kadhafi.
Ora, para o Conselho de Benghazi servir a democracia, tem de ser de transição ou seu poder também seria discricionário, já que não foi eleito por sufrágio universal. E a história contemporaneíssima do Afeganistão e do Iraque estampa em letras vermelhas garrafais o resultado de reconhecer governos que não contam com apoio popular.
Além do mais, esta validação estrangeira precipitada fornece munição verbal a Kadhafi em sua campanha para desacreditar a motivação nacionalista do movimento que quer derrubá-lo.
Os EUA, à procura de uma via torta para intervir e derrubar o Coronel odiado, fizeram apelo ao rei Abdullah, o ditador amigo, da Arábia Saudita (que desceu o cassetete nos súditos que saíram às ruas; mas aos aliados se perdoa tudo?).
Washington sabe do ódio de Abdullah por Kadhafi, que tentou assassiná-lo no ano passado, e recorreu ao rei para armar os rebeldes por tabela. Este “negócio” não seria (está sendo?) o primeiro entre os dois países. A família real saudita já protagonizou vários tráficos de armas para adversários dos EUA, e no final dá sempre errado.
No nosso continente, durante o governo de Ronald Reagan, eles armaram os Contra na Nicarágua; e depois na Ásia, intermediaram o armamento dos afegãos contra a União Soviética – armas leves e pesadas que acabaram nas mãos dos talibã e depois dos tchetchenos e seus aliados no Cáucaso.
Epílogo Tripolitano: Ouvi dizer que Kadhafi nem se preocupa mais com uma intervenção militar ocidental. Pois caso acontecesse, viraria mártir da pátria invadida pelos EUA.
Se facilitar, seu sonho será realizado e vai acabar o reino de terror como herói nacional, “canonizado” por seus piores adversários, na roda-viva da geopolítica do curto prazo.
E,
Em Nablus, na Cisjordânia, cada vez que alguma estrutura proibida é demolida (por policiais, para manter um suposto limite às invasões nos Territórios Ocupados) os colonos israelenses descontam na população local em operações corriqueiras que chamam de “etiqueta de preço” – há pouco jogaram uma bomba incendiária em uma casa em Huwarra que provocou a hospitalização dos filhos do casal por intoxicação. Cansados dos ataques constantes dos invasores que além das terras lhes confiscam a pouca água, há alguns dias os nablusianos saíram às ruas para reclamar das agressões e a passeata pacífica foi reprimida a bala pelos soldados israelenses que feriram dez participantes.
A tensão foi aumentando e neste fim-de-semana, um casal e três filhos que viviam na colônia de Itamar, próxima de Nablus, foram esfaqueados, provocando uma operação militar israelense violenta na cidade: invasões de casas e tudo o que acontece quando o exército ocupante procede a este tipo de razzia.
Para completar, em “represália”, Binyamin Netanyahu informou, Barak Obama por telefone e o resto do mundo em um comunicado, que construirá mais 500 casas lá.
O assassinato da família Fogel é hediondo. Quaisquer que fossem as razões do assassino – asfixia econômica e moral, vida de animal abusado e encurralado – nenhuma é válida, e as autoridades palestinas já estão à busca do culpado.
Crimes de colonos contra os ocupados são mais comuns, inclusive de um bebê de três meses. Quando é um colono que mata um palestino, é tratado como preso comum, julgado em Tel Aviv e chamado de militante extremista.
Por que o assassino desta família está sendo chamado de terrorista?
É um criminoso que tem de ser punido, mas pela Autoridade Palestina. Se não o sentimento de impotência da população ocupada vai aumentar e a tensão mais ainda.
Os palestinos condenam o crime, mas não conseguem entender porquê os bombardeios de civis de todas as idades em Gaza, noturnos e calculados, são chamados de operação militar e os criminosos desfrutam de impunidade enquanto que um assassinato isolado e raro é chamado de ato terrorista e a comunidade toda paga o pato.
O temor que a punição já anunciada não satisfaça a sede de sangue da Linha dura israelense está tirando o sono de adultos e crianças em Nablus e no resto da Cisjordânia.
Na semana passada falei sobre a manutenção do Congresso estadunidense da ajuda militar de três bilhões de dólares a Israel em detrimento de projetos cruciais na área nacional de saúde e educação. Como ganância pouca é bobagem, Ehud Barak, Ministro da Defesa israelense, anunciou há pouco que vai pedir a Washington mais U$20 bilhões para mais aviões de combate, mísseis, submarinos, etc.
(Para se proteger das pedras que os jovens jogam contra os check-points que os impedem de ir à escola? Ou dos adultos desarmados que manifestam diariamente em B’lim contra o muro que devora suas plantações e quintais?)
O primeiro ministro Binyamin Netanyahu posou então ao lado de soldadas, como fazia Muammar Kadhafi quando se pavoneava, e reiterou que seu exército jamais se retirará do Vale do Jordão, que pertence à Cisjordânia. Voltou a desafiar a ONU publicamente completando que esta faixa é de segurança vital para Israel e coisa e tal. Uma ladainha tão antiga quanto a ocupação que também dura 41 anos. A mais longa da história mundial.
E no dia 8, no Knesset, os parlamentares aprovaram uma lei que proíbe seus concidadãos de protestar contra a ocupação da Cisjordânia. A “Lei anti-boicote” foi condenada massivamente pelas 53 ONGs israelenses de Direitos Humanos. Na carta que enviaram ao Knesset condenando a decisão dos parlamentares, reafirmaram que “o boicote é uma maneira de expressão cívica, não-violenta e legítima de exprimir a opinião e promover mudança social e política”. Esta lei anti-boicote não foi a única lei antidemocrática votada em plenário, mas foi a que provocou reações mais indignadas.
Falando nisto, eis o site do Global BDS, movimento que cresce em Tel Aviv e nos países ocidentais, apesar da vontade da Linha dura do Knesset de erradicá-lo: http://www.bdsmovement.net/.
A semana foi marcada por uma ameaça de intervenção da OTAN na Líbia, condenada por Muammar Kadhafi a uma guerra civil de duração imprevisível.
Na semana passada Trípoli parecia perdida, hoje Benghazi retomou a vida normal e a cidade está à deriva administrativa. A população foi pega de surpresa pelo movimento revolucionário e não estava preparada para assumir a gestão e por enquanto nem o trânsito está sendo regulado.
Navios de guerra estadunidenses estão a postos no mar Mediterrâneo, batalhões ingleses idem, e o coronel Kadhafi, que nunca chegou e jamais chegará a general, conseguiu aliados graças à ameaça de intervenção ocidental.
Aviso aos invasores potenciais, tem uma coisa que os líbios detestam mais do que Kadhafi: estrangeiros em suas fronteiras cantando de galo.
A ONU intervir com funcionários para mediar conflito entre duas nações ou com soldados para fazer respeitar as leis internacionais, é perfeitamente justificável, já que um de seus propósitos é manter o equilíbrio mundial entre os Estados.
Porém, ingerência externa em um país para resolver conflito doméstico é um disparate. Por melhor que seja a intenção, a história mostra que o resultado é sempre um desastre. Vide a Indochina, o Vietnam e o Iraque.
Na primeira guerra do golfo em 1991, para “salvar” o Kweite da invasão do Iraque para recuperar terras que o invadido havia ocupado (uma questão de água), George Bush que odiava Saddam Hussein por querelas pessoais, fez sua “Tempestade do deserto” e condenou o Iraque a um boicote draconiano – em teoria, para alienar a população de Saddam Hussein para que ele caísse sem maiores trabalhos... Na prática o tiro saiu pela culatra. O povo se sentiu visado e a carência de gêneros de primeira necessidade o levou a apoiar o presidente em desgraça, em vez de rejeitá-lo.
O resultado foi o bombardeio do Iraque dez anos mais tarde, com a aquiescência até de alguns democratas liberais que acreditaram na mentira das armas de destruição em massa e acharam que embora tivessem deixado Augusto Pinochet aterrorizar o Chile durante anos, Saddam Hussein tinha de ser aniquilado.
Na época insisti que era um erro não apenas por a invasão ser contrária ao parecer da ONU, mas também porque as divisões étnicas e religiosas no país eram ancestrais e só não pareciam graves porque Saddam Hussein mantinha a ordem (à sua maneira drástica). E por outro lado, o país não estava pronto para assumir a liberdade. A fome de liberdade é um processo que pode ser rápido, mas muitas vezes é lento e tem de ser vivido em todas as etapas, pois são elas que levam ao amadurecimento da sociedade.
A sociedade iraquiana não estava preparada para o pós-Saddam Hussein e deu no que tinha de dar. Esta é outra história que abordarei mais tarde.
De uma forma geral, os países árabes atingiram este grau de maturidade e estão lutando pela liberdade sem nenhum “patrocínio” desconfiável. Esta é sua autenticidade e é daí que vem o entusiasmo com um futuro que estão querendo construir com liberdade.
Sei que vou desagradar, mas na Líbia não se sente a mesma unanimidade da Tunísia e do Egito. Não que é que o povo esteja satisfeito com Kadhafi, longe disso! Mas o país é tribal, as tribos são diferentes e não vêm o país e a vida com os mesmos olhos, e o processo revolucionário aconteceu por acaso; por causa da repressão a uma passeata por razões diferentes, em Benghazi e não na capital. Na Tripolitana o movimento ainda não é de massa, embora a população esteja com vontade de avançar, sem o jugo do coronel Kadhafi.
Os rebeldes estão ganhando terreno, estão armados , mas o Coronel dispõe de artilharia pesada e disse que vai lutar até o último homem. Quem duvida? Mas por mais que a perda de vidas seja deplorável, o conflito é nacional. Se Kadhafi sair vitorioso será porque a vontade de derrubá-lo não era majoritária e a determinação não era suficiente para derrubar o palácio. E armar os rebeldes, como cogita Washington depois de Londres, só é uma boa solução para os negociantes de armas.
Estou sendo lúcida, e não advogada do diabo.
Gelar a fortuna dos Kadhafi nos bancos ocidentais? É legítimo. Mais ainda se este dinheiro fosse restituído aos cofres da Nação desfalcada. Mas na real-política isto é só vontade.
Gelar a venda de armas para Kadhafi e policiar o tráfico? É necessário. Que se saiba, seu arsenal não é inesgotável.
Mas atacar Trípoli para botar as mãos na maior reserva de petróleo da África? Aí a estória fica macabra.
Será que não aprenderam a lição do Iraque?
E esta estória de bombardeio “cirúrgico” é uma fábula. No Iraque, dezenas de famílias morreram “por acaso” e vilarejos inteiros foram tirados do mapa. Em Trípoli, não há como bombardear o palácio sem matar homens, mulheres e crianças inocentes. E dizem que o bunker de Kadhafi é à prova de morteiros; de bomba então, nem falar!
Sem contar que combater selvageria com selvageria é o pior recurso para alcançar a paz. A cicatriz ficaria aberta por décadas. E Kadhafi sabe disto. Tanto ele quanto seus compatriotas lembram de pai para filho o período colonial quando eram obrigados a caminhar na sarjeta para deixar a calçada para o italiano passar.
Nenhuma ocupação é desejada e nem justificável.
Líbios exilados pedem intervenção - os iraquianos na mesma situação também pediam - e algumas tribos rebeldes solicitam armas e o bombardeio ocidental de pontos estratégicos, mas eles não representam todas as tribos, e a vondade é pontual.
O certo na Líbia é que os jornalistas não têm acesso a toda informação porque a circulação é restrita. Há duas versões distintas dos acontecimentos e ninguém pode garantir certeza absoluta. A única coisa visível é que o país está dividido. Ninguém pode afirmar com certeza o que querem os líbios. E na dúvida, é melhor eles serem deixados tranquilos.
Uma revolução bem sucedida é a que é feita pelo povo, unido, que consegue a adesão de todos, inclusive das forças armadas.
O então candidato Barack Obama criticou seus adversários políticos por estes terem colocado os EUA do “lado errado da história”. Chegou a hora do presidente de agora ser coerente pelo menos nisso e se colocar do lado certo, sem estória.
O processo revolucionário é árabe ou não será. Neste processo, o resto do mundo só pode ser testemunha, nada mais.
Neste ínterim... . No Iraque, as ruas de Bagdá também encheram de gente reivindicando reformas. A passeata pacífica foi reprimida com violência e 29 pessoas foram mortas. Tem 50.000 soldados estadunidenses lá, em princípio, para velar pela instituição de um “regime democrático”. Onde estavam quando o presidente fiel aos EUA mandou bater e atirar em civis desarmados?
. Na noite de sábado, os aviões israelenses bombardearam a cidade de Gaza, o norte da Faixa e um túnel na fronteira com o Egito. Três bombas visavam as bases da brigada de Izzedine al-Qassam, o braço armado do Hamas. Israel repetiu que o bombardeio, noturno, foi retaliativo, por causa de um foguete ter atingido o deserto de Negev de manhã. A chefia política do Hamas voltou a insistir no respeito à trégua.
Aliás, parece até que o lançamento destes foguetes inócuos visa mesmo é dar desculpa a Israel para usar sua artilharia pesada. São foguetinhos que raramente causam perdas humanos, às vezes, materiais, e a retaliação é sempre desproporcional. Além de tirar o sono dos habitantes da Faixa, provoca graves danos emocionais e materiais, quando não de ferimentos graves ou mortais. Está passando da hora do Hamas pôr as mãos nos culpados que servem mais Israel do que a paz.
. Nos EUA, o Congresso aprovou cortes no orçamento para programas vitais de utilidade pública no setor de emprego, educação e saúde, porém, os U$3 bilhões de dólares de ajuda militar a Israel nem entraram na pauta. Este é um dos assuntos em que democratas e republicanos, de uma forma geral, concordam sem pestanejar, graças à força de persuasão lobística da APAIC. É normal que o país ajude um aliado, mas poderia condicionar esta ajuda ao gelo das colônias e ao respeito dos tratados internacionais. Mas isto é uma miragem.
Vou aproveitar a "âncora" para responder uma das várias perguntas que me fazem e que pus de lado desde o início das revoltas árabes.
Como os Estados Unidos conseguem manter duas guerras – Iraque e Afeganistão – sem aumentar os impostos para financiá-las?Porque os EUA as estão financiando com débito. Ou seja, com grande parte dos cerca de U$14.19 trilhões de dinheiro estrangeiro emprestado, o que o coloca em 12° lugar entre os países mais endividados do planeta (o PIB é de U$14.66 trilhões).
Os dez maiores credores dos EUA em bilhões são, China (1160.1), Japão (882.3), Inglaterra (272.1), países da OPEP (211.9), Brasil (186.1), bancos caribenhos (168.6), Hong Kong (134.2), Suiça (107), Taiwan (155.1) e Rússia (151).
Os novos empréstimos previstos para os próximos anos levam a uma projeção de aumento do débito público a U$26 trilhões em 2021. Os especialistas prevêem que neste ritmo, entre 2030 e 2040 gastos obrigatórios, como seguridade social mínima e assistência médica básica, somados aos juros da dívida, vão suplantar o imposto de renda. O que significa que terão de endividar-se mais ainda para gastos com coisas essenciais como educação, defesa e polícia.
Como disse no início do milênio, os EUA estão em um tobogã que só tem um destino. O império está falindo mais depressa do que muitos pensavam. O que os segura na cabeça é o armamento pesado que, paradoxalmente, é um dos grandes responsáveis pelo gasto excessivo e o declínio inevitável. Neste ritmo, daqui a 50 anos o mundo terá um, dois ou quatro novos líderes de direito e de fato.
Este líder vai certamente sair do BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China) a quem os EUA dão um exemplo implícito: Se quiser harmonia social doméstica e hegemonia mundial promissora, segura e duradoura, é melhor não fazer inimigos fora de casa, e dentro, investir em educação, saúde e emprego, em vez de fabricar armas que terão de ser vendidas e cedo ou tarde, usadas.
Encontro de ditadores. Na primeira fila, Saleh (Yêmen), Gaddafi (Líbia), Mubarak (Egito)
“Bombardeiem o palácio, ele e seus soldados! Matem-no, se precisar. Mas não o deixem mais no poder. Basta. Eu pagarei a reconstrução.”
Esta mensagem foi enviada à ONU por Muammar Gaddafi.
Falava do presidente da Costa do Marfim Laurent Gbaggo, na semana em que os estudantes egípcios ocuparam a Praça Tahrir exigindo Liberdade. O homem que se considera Zaim – um líder guru – e realmente acredita ser o Rei dos Reis da África tinha confiança absoluta no regime de terror que praticava. Tanta, que jogou esta chuva de pedras em telhado alheio pensando que o seu fosse indestrutível e sua fortaleza inexpugnável.
Comecei o mês traçando um paralelo entre o Egito, Hosni Mubarak e três obras máximas do grande Gabriel Garcia Márquez. Por isto vou terminá-lo na mesma linha, mas com a Líbia e Muammar Gaddafi no bunker-Palácio que lembra o livro Das Schloss do tcheco germanófono Franz Kafka.
Das Schloss, traduzido como O Castelo significa também Tranca, trava. O Castelo governa uma cidade e o Palácio governa uma nação tribal da qual é alienado. O Castelo representa uma burocracia, o Palácio uma tirania que também faz incursões esporádicas às ruas mas sem interagir com vivalma, a não ser para explorá-la, na ficção literária, e na realidade Tripolitana, para subjugá-la. Os labirintos do Castelo representam a confusão mental dos homens; as tramas do Palácio, de um só homem desvairado. A verdade do Castelo é impenetrável e fora dele o povoado calcula e especula sobre o que não sabe. A verdade do Palácio é fabricada e fora dele o país teme em massa, pai desconfia de filho e todos servem o déspota do ignorantismo, até há pouco, calados.
Gaddafi, confinado em seu bunker-Palácio, acabou de perder o contato com a realidade.
Trípoli por sua vez lembra Броненосец Потёмкин, O Encouraçado Potemkin. A obra prima cinematográfica do mestre dos mestres Serguei Eisenstein. Neste filme precursor da Revolução de 1917, o cineasta russo reproduz na tripulação do encouraçado os seguimentos da sociedade que se rebela com determinação e coragem. A sequência marcante é a do massacre nos degraus da escada monumental de Odessa, que os soldados descem de maneira ritmada (pela composição de Dimitri Chostakovitch) empurrando a multidão em um frenesi que culmina com a célebre cena do carrinho de bebê que escapa escada abaixo em uma dramaticidade rara.
Gaddafi transformou Trípoli na Odessa do século passado com violência dobrada, pois além de soldados, a região está cheia de mercenários sem nenhuma consideração pela vida humana, apenas por quem os paga. E quem paga é um homem que sabe que está no fim da linha e antes do trem despejá-lo quer esmagar o máximo de pessoas que ousaram desafiá-lo.
Em janeiro esta cena era inimaginável. Não a da matança, mas a da insurreição contra o tirano máximo.
Até janeiro era difícil imaginar que o terror em que os líbios viviam como uma fatalidade à qual tinham se acomodado, desaparecesse da noite para o dia. Pois a brutalidade do Coronel, quase palpável quando estava na mesma sala, fragmentou sua família e a população durante quatro décadas e toda oposição foi, literalmente, esmagada ou exilada.
Os líbios só podiam participar de estruturas organizadas e controladas por Gaddafi, incluindo um comitê que reunia as trinta e duas tribos principais, usado para aplicar a “justiça revolucionária”. Kadhafi conquistou o poder com três tribos (Qadhadhfa, Maghraha, Warfalla) cujos membros dirigiam os comitês e os serviços de segurança que ainda não o abandonaram. Seus inimigos velados eram os Sa’adi, tribos de Cyrenaica, resistentes ferrenhos contra a ocupação italiana entre 1911 e 1927.
Vale lembrar que a Líbia, como o Yêmen, é uma sociedade tribal, diferente do Egito, mas semelhantes a outros países árabes.
O colapso do regime foi acelerado porque grande parte do milhão 759 mil km² das terras que compõem a Líbia é desértica – há regiões em que não chove desde 1998 – e o desenvolvimento econômico proporcionado pelo petróleo somado à aridez do país, fez com que os seis milhões de habitantes se concentrassem na planície de Jefara, ao redor de Trípoli, na região chamada Tripolitana e em Jabal al-Akhdar, atrás de Benghazi na Cyrenaica.
Portanto, a queda de Benghazi, por o Ministro da Justiça, Mustafá Mohamed Abdel Jalil, e o Ministro do Interior, general Abdel Fattah Younes al-Abidi, terem mudado de lado, foi mais do que a queda de uma cidade. Foi a perda concreta de seus dois “funcionários” mais preciosos e da metade do país, a Cyrenaica.
Younes al-Abidi já aconselhou Kadhafi a não usar os aviões de combate e Abdel Jalil já formou um governo provisório.
A deserção é fiável, pois todos sabem que para reinar sem rival, Gaddafi chegou ao ponto de dividir os filhos para que nenhum tivesse força suficiente para substituí-lo sem seu aval. Como os “súditos” e os “amigos”, até sua família vivia em um ambiente de desconfiança, suspeita constante, e de medo do progenitor que os tiranizou até os últimos instantes.
Apesar de tudo que disse acima, para a Líbia e para o mundo, a queda de Gaddafi será um desastre.
Não conseguindo liderar a Liga Árabe, em 1997 Gaddafi resolveu assumir a liderança dos países mais frágeis. Foi aí que se autodenominou Rei dos Reis da África se distanciando dos antigos aliados para rodear-se de novos manipuláveis. E para adquirir poder de barganha com a Europa, abriu as portas às populações subsaarianas provocando graves tensões domésticas, mas atingindo o objetivo principal de pressionar a União Européia com o perigo da imigração clandestina africana a partir de suas águas, para a Itália. Foi no mesmo período que constituiu a 32ª Brigada, a milícia usada na repressão e com a qual conta para terminar seu “reinado” em um banho de sangue memorável que puna os líbios por “não entenderem sua visão política”.
O Palácio é protegido por esta Brigada, apesar da região Tripolitana já acusar vários focos de resistência e de algumas cidades já terem sido liberadas. No exterior, muitas embaixadas já mudaram de lado e a dissensão nas Forças Armadas não se resume mais à região de Benghazi – soldados e oficiais ainda ressentem os insultos de Gaddafi quando foram forçados a se retirar do Tchad em 1987 de cabeça baixa.
E o pós-Gaddafi?
Gaddafi vivo, é uma salva-guarda contra o terrorismo em toda essa região da África.
A defecção da eminência civil e da eminência militar: Younes al-Abidi e Abdel Jalil em uma hora crucial, prometendo assegurar um processo transitório de três meses antes de eleições presidenciais, dá esperanças - apenas aos incautos - de calma após a tempestade. Fora do círculo de Gaddafi, não há quadros, pelo menos visíveis em Trípoli e Benghazi. Há exilados políticos, mas sem nenhuma influência aparente sobre o processo revolucionário. Dentro do país tem a Fraternidade Islâmica e alguns grupos extremistas, mas estes até agora não manifestaram religiosidade no movimento de libertação nacional. E primeiro teriam de se entender antes de pleitearem uma liderança respeitada. Mas a Líbia tem vários executivos laicos preparados para governar. Trabalharam para Gaddafi..., mas atire a primeira pedra quem não tiver sido cúmplice compulsório de seu “reinado”.
Se tivesse de prever o futuro de Gaddafi nestas páginas, se ele for coerente com a personagem que representava, vai seguir os passos de Hitler e suicidar-se.
Se não, será executado sumariamente pelos "rebeldes" com a bênção dos EUA.
Curtas. Na segunda-feira a Inglaterra cancelou um carregamento de armas para a Líbia para não ser acusada de cumplicidade no massacre. Só nos últimos meses de 2010 vendeu para Muammuar Kadhafi seis milhões de dólares de equipamento, inclusive fuzis de precisão para os “caçadores” e a munição de controle de multidão que está sendo usada. A Inglaterra não é o único camelô nesta área. Quem vende este tipo de munição a alguém como Kadhafi sabe para quê será usada. Quem comercializa a morte pode dar lição de moral a um tirano deste naipe?
. O crescimento do interesse econômico estrangeiro pela Líbia a partir de 1999 foi concomitante ao da corrupção dos sete filhos de Gaddafi e da filha, excluindo o povo da receita petroleira. O povo quer substituir seu regime pela charia, disse Gaddafi apelando sem vergonha parao medo ocidental da Lei islâmica. Se deixarem os cofres vazios – os bilhões do petróleo estão em Dubai, na Itália (Berlusconi e Gaddafi são íntimos), e em outros países – pode ser mesmo que os sobreviventes da chacina procurem Allah. Em que forma? Como disse, na Líbia há várias. Tantas quantas tribos adversárias.
. Quando perdeu Benghazi, justamente Benghazi onde começou sua ascensão meteórica, Gaddafi recebeu um tapa na cara e um aviso que Trípoli estava a dois passos. Em alguns prédios da capital, grafites o retratam como O Macaco dos Macacos da África. O aeroporto é o espelho do caos da cidade paralisada - fome e insalubridade.
Os funcionários estrangeiros abandonaram o navio dos negócios milionários, o Egito e a Tunísia começaram a ser inundados de refugiados, e Beirute e Malta já negaram várias autorizações de pouso a jatos privados com passageiros não identificados.
Nesta altura do campeonato, talvez nem Berlusconi acolha seus amigos da “família real” em desgraça.
. Com a recusa dos policiais a aumentar o número de mortos a milhares, o coronel Gaddafi só está protegido pelos “comitês populares” que são de fato as milícias dirigidas por membros de suas tribos. Um dos encargos da milícia era vigiar os oficiais militares... Com exceção do bunker-Palácio, Trípoli está cada vez mais próxima de Benghazi.
As horas de Gaddafi estão contadas.
No Egito, Amr Moussa, atual presidente da Liga Árabe e ex-ministro do Exterior de Mubarak, anunciou sua candidatura às próximas eleições presidenciais. Passeou com dois parlamentares estadunidenses, John McCain e Joseph Lieberman, na praça Tahrir e enquanto isto, dezenas de manifestantes exigiam, diante do palácio, a demissão de Ahmad Shafiq, o primeiro ministro recentemente nomeado por Mubarak, e algumas greves eclodiram em cidades industriais.
A cúpula do Exército está em linha direta com o Pentágono que formou seus oficiais e quer assegurar a “paz fria” do país com Israel. Além disso, se o processo revolucionário prosseguir em uma linha democrática, os EUA querem conservar a regalia de aceder às reservas petrolíferas do Golfo a baixo custo, continuar a “cooperação” militar e incrementar o neoliberalismo que levou o país à revolta. Longe do que as passeatas reivindicavam.
Com o futuro político incerto e a economia em situação crítica, será que não é hora de dar uma mãozinha em vez de espremer o povo esgotado?
Na Jordânia as passeatas não visam à mudança do regime. A lealdade ao rei Abdullah e a estima pela rainha Rania são incontestáveis e não são contestadas. Mas os jordanianos querem mais do que a cabeça de um primeiro ministro. Abdullah vai ter de lhes dar algo mais; mas o quê? Onde buscar recursos que o país não dá? A repressão policial foi condenada em palácio e o novo primeiro ministro Marouf Makhit ordenou um inquérito. Abdullah sabe que não pode dar nem um passo em falso.
No Bahrein, o sheik Khalifa Bin Salman al-Khalifa liberou os cassetetes antes de se retratar e em seguida libertar vários presos políticos. Os militares foram (temporariamente?) retirados da rua e os manifestantes prometem continuar até que suas reivindicações sejam atendidas: nova constituição, verdadeira democracia e retorno dos “desaparecidos”. Os Khalifa prometeram mudanças concretas rápidas, mas não deram data.
No Yêmen, na terceira semana de protestos que começaram no dia 17, a trégua da repressão foi efêmera. A Anistia Internacional já anuncia 27 mortos, os chefes de Hashid e Baqil, as duas principais tribos, aderiram à revolta e mais cidades contestam a decisão de Alih Abdallah Saleh de continuar na presidência até 2013. Na Universidade de Sanaa os estudantes rebatizaram a praça em que acampam al-Huriya, a Liberdade. Perderam dois colegas e o protesto dobrou de intensidade.
Na Síria, o rei Bashar aumentou o salário do funcionalismo púbico, e "está mantendo" a calma. Será mantida, se os Estados Unidos e Israel não armarem a oposição.
No Sudão, o rei Bashir declarou que não vai se recandidatar à presidência.
Na Argélia, o rei Bouteflika acabou com o Estado de emergência em que o país vivia.
Na Arábia Saudita, o rei Abdullah prometeu U$36 bilhões para os súditos ficarem quietos.
Em Oman, no sábado, jovens manifestantes saíram às ruas de Sohar fazendo reivindicações econômicas, sociais e políticas. Nenhuma repressão foi armada e o sultão Qabos bin Said deu as caras anunciando a demissão de seis ministros, aumento de verba para as universidades e reformas socio-econômicas imediatas. A partir de fevereiro, o salário mínimo já ganha mais 43%, passando a U$520 mensais. Atos institucionais que nem a Tunísia, nem o Egito, nem o Yêmen, nem o Bahein fizeram, até agora. Mas no domingo a polícia atacou os manifestantes que se aproximavam da central de polícia da cidade. Qabos governa Oman desde que tomou o poder do pai em 1970, "para acabar com o isolamento do país e usar a renda do petróleo para modernisá-lo."
Esta revolta em Oman, país relativamente calmo e com um padrão de vida razoável, mostra que as reivindicações socio-econômicas nas passeatas são uma fachada. Os árabes estão com fome mesmo é de Tahrir, Liberdade.
Neste ínterim, no Paquistão, após a condenação à morte em novembro de uma cristã por “insulto ao Islã”, apesar das pressões, o governo continua decidido a manter a Lei da Blasfêmia. O assassinato recente do governador do Punjab Salman Taseer (o “heroísmo” do assassino foi aclamado) por criticar a lei em público, mostra que ela é um instrumento perigoso de Caça às Bruxas das minorias religiosas, mas também dos políticos liberais.
Com todo aparato repressivo e figura autoritária emblemática, Muammar Kadhafi em seu Reino do Silêncio, como a Líbia é chamada, mesmo recorrendo à força máxima está penando para guardar sua seara na impunidade.
Tudo começou em Trípoli com o baixo-assinado em que 213 personalidades de meios profissionais variados exigiam o fim de seus 41 anos de “reinado” e denunciavam os males que vem infligindo à sociedade. Enquanto isto no norte do país, em Benghazi, começava a passeata anual em memória de um assassinato de presos que marcou a cidade. Virou uma manifestação reprimida com a violência própria a Kadhafi.
Benghazi é longe de Trípoli e demorou uma semana para as ruas da capital se encherem de jovens gritando Kefaya! sendo recebidos a fogo pelo forte aparato policial que tinha sido dobrado. Mas desta vez condenou-se a violência, mas ninguém ousou falar em derrubar Kadhafi. Todos sabem do que ele é capaz. Kadhafi não é o fraco Ben Ali, nem o venal Mubarak, nem um sheik bilionário. Kadhafi conquistou o poder aos 27 anos liderando uma revolta militar. Com ele não é questão só de ambição financeira desmesurada ou sede de poder insaciável. Sua divisa é a dos Romanos: ordine; a ordem à qual se sacrifica tudo, começando pela liberdade de palavra. Quem conhece Kadhafi sabe que governa a Líbia como se fosse a sua casa. Age como um padrasto impiedoso que não recua diante de nada para proteger seus filhos em detrimento dos enteados e impor suas leis e suas vontades. E ninguém "paga" seu salário. Ninguém "patrocina" suas forças armadas. Kadhafi é autônomo. Tem certeza de que não precisa de ninguém nem de nada. Acima dele, só Allah. É por isto que se deu ao direito de atacar os manifestantes com todas as sua forças armadas. E assim começou a história de um massacre anunciado. Quanto tempo vai durar, só Allah sabe. Se Kadhafi vai conseguir sair ileso desta guerra contra seu povo, é pouco provável.
No Bahein, país de 750m² compostos de trinta ilhas vizinhas do Qatar, em resposta à morte de dois afiliados, o principal partido xiita al-Wefaq suspendeu sua participação no governo e em seguida as ruas de Manama foram invadidas de homens e mulheres (estas, de hijab preto) exigindo a renúncia do Sheik Khalifa Bin Salman al-Khalifa (tio do rei e primeiro ministro desde 1971), a libertação dos prisioneiros religiosos e uma nova constituição.
A ironia é ser justamente no Bahein, que tem o maior índice de liberdade política e social do Golfo, que a revolta mude de cara. Aqui ela tem a cara religiosa que a imprensa sensacionalista pintava (pinta?) das outras capitais. Os xiitas são maioria no país em que o milhão e trezentos mil habitantes são governados pelos Khalifa, a família real sunita que ocupa o trono há dois séculos.
A relação entre os xiitas e os sunitas lembra a discórdia sangrenta entre os protestantes e os católicos nos séculos XVI e XVII na Europa. Lutero x Papa. Alih x Abu-Bakr ou Abu-Bakr x Alih; conforme for o seu lado.
Eu disse que a cara é religiosa, mas é só um lado e nem este lado tem a feição do al-Qaida. Pode tirar o peso da alma. Esta face é a dos velhos, arcaica. Os jovens gritam Não aos xiitas! Não aos sunitas! Somos todos bareinitas! e mostram a outra face. A da emancipação laica.
Em Ramallah, os jovens também continuam a reivindicar a união do Fatah e do Hamas, e a demissão do presidente Mahmoud Abbas e do primeiro ministro Salam Fayadd. Desacreditados pelas revelações dos Palestine Papers e fragilizados pela relação que tinham com Hosni Mubarak.
No Yêmen, embora as ruas de Sana'a estejam menos cheias do que nos dias passados, após os tiros trocados, teme-se que o os chefes tribais aproveitem para invadir a capital com todo seu arsenal. Eu continuo achando (ou esperando) que não passa de ameaça. A não ser que tenham planejado um suicídio coletivo diante do palácio de Ali Abdullah Saleh para sensibilizá-lo.
. Os “novos” dirigentes da Tunísia, do Egito e dos países que seguirão seus passos, terão de lidar com posições internacionais impopulares tomadas pelo antigo regime ditadas por interesses estrangeiros. A primeira é o bloqueio da Faixa de Gaza; a segunda é a situação do Iraque, a terceira é a hostilidade bélica dirigida ao Irã, e a última, ligada à primeira, à mediação desacreditada do conflito Israelo-palestino.
Estas quatro reclamações são ouvidas em todos os países árabes, já ou ainda não inflamados.
Onda de Liberdade x Rede de repressão armadaNão é por nada que na Tunísia as potências ocidentais repudiaram Ben Ali de imediato e muitos hesitaram a abandonar o fiel aliado Hosni Mubarak. É pela posição estratégica do Egito entre a África e a Ásia e por ser o farol sócio-político da Liga Árabe. Como o Brasil em nossas paragens.
No século XVIII exerceu profunda influência social, política e cultural na modernização da região e entre 1952 e 1970 se destacou dos vizinhos graças ao seu carismático presidente Gamal Abdel Nasser cuja personalidade forte e inteligência aguçada valeram ao país uma independência pragmática e liderança incontestável. Após a morte de Nasser o Egito perdeu a aura visionária, mas conservou bastante influência durante a gestão de Anuar Sadat e mais tarde, com Hosni Mubarak, apesar do enfraquecimento pessoal deste devido à subserviência aos EUA.
Até 2010 foi um exemplo de autoritarismo e de repressão disfarçada, como no Brasil dos militares. Sua transformação em democracia liberal como a da Turquia, teria (terá?) portanto graves consequências sócio-políticas, pois o quadro é mais ou menos o mesmo na região por todos os lados.
O crescimento econômico razoável nos estados não-petroleiros não gerou empregos e sim desempregados, a administração e a corrupção ficaram incontroláveis, as famílias estão menos sólidas do que no passado, o sistema educativo se encontra em processo de decomposição rápida, a realização profissional virou um sonho dificilmente realizável, e sobretudo, o despotismo, agravado por um nepotismo declarado, tem ficado cada vez mais claro e insuportável.
Com a abertura no Egito, o efeito dominó é inevitável.
A revolta na Líbia mostra que nem figuras emblemáticas como o terrível Kadhafi estão imunes à emancipação popular. Neste caso, até eu fiquei surpreendida de ver estes líbios amáveis mas acostumados a andar de cabeça baixa, levantá-la.
Se, se, se conseguirem derrubar Kadhafi, nenhum outro ditador estará imune ao levante popular. Mas o que realça nestes movimentos de emancipação, além do espírito secular que retrata, é a uniformidade do sistema repressivo vigente nos regimes árabes.
Como por exemplo, a repetida armação dos “contra” nas ruas de Sana’a, Alger, Amman, Ramallah, Bahein a fim de facilitar a ação militar e “desaparecer” com as figuras mais destacadas, como aconteceu no Cairo. Isto porque, como a Operação Condor da CIA formou a rede de repressão e cavou porões na América do Sul começando no Brasil em 1964, os países árabes também têm uma rede de “Informação” coesa e implacável.
Faz anos que os Serviços Secretos trocam figurinhas sobre técnicas de tortura sofisticadas aprendidas com os colonizadores ocidentais “civilizados”. Foi em Alger, ou melhor, na Delegacia de Chateauneuf, como o DOI CODI local é chamado, que os egípcios aprenderam a usar eletricidade nos órgãos genitais dos presos políticos. Aliás, quando falei de tortura semanas atrás, não mencionei a maneira dos argelinos desvirtuarem o ouro azul – são especialistas em uma tortura que consiste em encher o torturado de água até ele rebentar.
Em 1994, os argelinos foram à Síria saber como o então presidente Hafez El-Assad tinha lidado com o levante muçulmano de 1982 em Hama e aprenderam que bastou explodir a cidade e deixar os cadáveres de inocentes e culpados expostos na praça. Como os portugueses fizeram com Tiradentes durante a nossa Inconfidência de Minas Gerais.
Não há prescrição histórica para a barbárie?
Em dezembro foram os tunisianos que visitaram os argelinos para se atualizarem na arte de torturar. Ainda não se sabe se e quando serão praticadas no período “pós-revolucionário”.
Trocando em miúdos, o que está acontecendo nos países árabes foi o que aconteceu na América do Sul na década de 80 – aquela corrente de Basta! contra a Operação Condor e os milhares de desaparecidos e torturados nas masmorras dos nossos regimes militares.
Até ontem, até agora, nestes países em que os jovens estão dizendo Kefaya!, os dirigentes também recebiam ordens do Pentágono e os sádicos nacionais, também formados por “especialistas” ocidentais, se esqueciam dos princípios humanos básicos como no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai...
Como no nosso Cone Sul, o Oriente Médio cansou de apanhar, ser derrubado e ficar deitado. Deixou o medo de lado e resolveu se levantar.
Como no nosso Cone Sul, Washington está demorando a desencarnar. Sua reação de apoio imediato só foi dirigida ao Irã, aos jovens que saíram às ruas de Teheran e foram matracados... E repete os erros do passado intervindo justamente onde atrapalha.
Mudam-se os tempos, mas os EUA não mudam suas vontades imediatas.
Na ONU, o veto altamente inflamávelNa sequência de imobilidade geopolítica, os EUA vetaram na ONU a moção que condena a construção de novas colônias israelenses na Cisjordânia peitando os outros 14 membros do Conselho de Segurança. Nesta questão internacional também a Casa Branca continua isolada.
O argumento usado é em si um ultraje: Embora concordemos com os demais no tocante à ilegitimidade do prosseguimento das colônias, achamos desaconselhável que o Conselho tente resolver questões de fundo que dividem israelenses e palestinos.
(Vale lembrar que conforme as leis internacionais as colônias existentes já são ilegais. O que para Israel tanto faz. Assim como as 34 resoluções da ONU que desrespeita na impunidade. Se a Organização das Nações Unidas não tiver poder para fazer cumprir suas próprias leis, quem terá? Para que ela existe, de fato?)
Os delegados dos demais países membros permanentes ou transitórios do Conselho ficaram estupefatos. Alguns exprimiram sua incompreensão e raiva. Outros engoliram em seco e devem ter ido rezar para que esta servidão cega a Israel, criticada com veemência até pelas ONGs de Direitos Humanos de Tel Aviv, embora faça Benyamin Netanyahu e Avigdor Lieberman rirem e esfregarem as mãos, não termine em mais lágrimas amargas.
Pois esta nova “vitória” do lobby israelense (1) não deixa de ser uma derrota, já que terminou de converter Israel em um passivo perigoso para os EUA. Com o veto desta semana a uma posição mais moral e legal do que efetiva, Barak Obama deu as costas ao mundo, admitiu sua autonomia fictícia e arruinou grande parte do capital de simpatia internacional que ainda tinha.
Que Netanyahu e Lieberman não se iludam. Este novo sucesso lobístico é um golpe no processo de paz. Só conseguiram devolver os Estados Unidos ao isolamento em que a ocupação do Iraque os havia levado. W. Bush deve estar rolando de rir de seu sucessor que fez tantas promessas pacíficas antes de assumir o cargo carregado de compromissos intricados.
É claro que Barack Obama e Hillary Clinton estão cientes que dando carta branca a Israel para prosseguir sua ocupação ilegal da Cisjordânia provocam um desastre político e humanitário (2) que inviabiliza qualquer passo da Autoridade Palestina em direção à mesa de negociação.
É claro que Obama e Clinton sabem que sua relação com os países árabes desmoronou na hora que apoiaram Israel em um assunto inapoiável.
Mas por incrível que pareça o veto foi pensado, calculado, e Obama mais uma vez pesou errado os seus interesses político-partidários. E antes de votar, teve a ousadia de ligar para Ramallah na véspera para forçar Mahmoud Abbas a impedir que a Resolução fosse votada. A pressão telefônica durou 50 minutos. Surrealista ou amoral?
A ONG israelense de Direitos Humanos Gush Shalom já declarou que a AIPAC (3) não é um lobby israelense, mas sim um lobby anti-israelense “que acumula um poder desmesurado que impede que Israel corrija seus graves erros políticos e leva nosso país a uma política auto-destrutiva que compromete nosso futuro ao negar a Israel a menor chance de alcançar a paz com os vizinhos e ao empurrar o país em direção ao abismo da ocupação, colonização e do racismo.”
Gush Shalom e as outras ONGs de Direitos Humanos têm razão. A notícia pode inflamar as passeatas que se multiplicam nos países árabes e teme-se que daqui a pouco bandeiras estadunidenses voltem a ser queimadas.
O argumento usado pelos EUA de que o assunto da Palestina não é da alçada do Conselho de Segurança da ONU é o mesmo que usam sempre para bloquear sistematicamente qualquer ação internacional na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
Vale lembrar que o Conselho de Segurança é composto de cinco membros permanentes – China, Inglaterra, França, EUA e Rússia – e dez com mandatos anuais. A ONU só pode agir quando a decisão é aprovada por unanimidade.
Faz anos que o Brasil pleiteia um assento permanente no Conselho, mas a porta é bloqueada. Em 2011, o Brasil faz parte dos dez membros não-permanentes que têm a oportunidade de tentar mudar algo.
Já que o nosso país teve a coragem política e a ética de reconhecer o Estado da Palestina com as fronteiras de 1967, por que não aproveitar 2011 para apresentar ao Conselho uma proposta de admissão da Palestina na ONU como Estado?
Pode até não dar em nada. Mas vai mostrar que ao contrário dos EUA e dos outros quatro membros do BRIC “candidatos” à hegemonia político-econômica mundial, o Brasil tem visão internacional a curto, médio e longo prazo. E de lambuja, sabe liderar.
... E dezoito dias depois, Barack Obama resolve convencer Hosni Mubarak a deixar o cargo. Uma vez mais o presidente dos EUA seguiu, em vez de liderar. Agora tem de pressionar o Exército egípcio, que quase depende dele para o salário, a assegurar a transição democrática.
Como disse na semana passada, o Patriarca caiu em desgraça, foi para sua mansão à margem do Mar Vermelho, mas deixou a cabeça e os dois braços armados a postos no Cairo. Omar Suleiman e o general Tantawi continuam lá. Mas terão de escutar. O Egito não é mais o mesmo. Os egípcios acordaram e não estão dispostos a deixar a conquista resvalar. Prometem continuar a vigília de casa, do trabalho, da universidade, e através de uma imprensa livre para denunciar.
A festa na rua foi bonita, o otimismo e a alegria continuam, porém... hoje é difícil cantar vitória. No final das contas, vai depender de quão grande é a dissensão no Exército e de quão potentes são os oficiais democratas. Hoje os soldados são chamados de irmãos, mas soldado é peão. Peão não se desloca, é deslocado e só de casa em casa, para frente ou para trás, e neste tabuleiro de xadrez a rainha é Tantawi e o rei é Suleiman. Enquanto ambos não forem transformados em torres, bispos ou tirados do jogo, vai ser preciso vigilância constante para que as reformas vinguem e para que haja eleições livres, sem corrupção.
Dito isto sobre o Egito, um balanço provisório se impõe na região.
Desde que al-Qaeda protagonizou as explosões das torres gêmeas de Nova York, Ben Laden foi transformado NO Bicho Papão e o Islamismo foi estigmatizado como uma religião que fabrica terroristas em massa.
No século III o persa Mani inventou esta teoria do Universo ser dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis do oito ou oitenta, do Bem e do Mal absolutos, mas a vida e o mundo já provaram n vezes que o maniqueísmo é desumano e falho.
Nenhuma religião fabrica terrorista, nenhuma fabrica vítima e nenhuma fabrica tolerância e liberalismo. Se religião influenciasse alguém e algo, o capitalismo não teria tido nenhuma chance de triunfar entre os cristãos, o “nosso” mundo teria vivido dezessete séculos de paz e o Ocidente seria uma imensa Shangri-La.
O que diferencia as pessoas pode ser a visão.
Por exemplo, a pessoa cuja visão econômica se estende da Teoria de Sentimentos Morais do escocês Adam Smith ao Das Kapital de Karl Marx entende melhor o cerne da revolta nos países árabes do que os “Chicago boys” adeptos de Milton Friedman e sua teoria do choque (http://www.youtube.com/watch?v=aSF0e6oO_tw).
Ben Laden é uma ameaça, mas é uma ameaça ínfima comparada com a dos khobzistes (desempregados do Magreb). Os efeitos colaterais dos regimes autoritários que permitem as vidas de nababo dos clãs dos dirigentes dos países árabes – a concentração da riqueza atinge um grau inimaginável enquanto ao resto do país falta o básico – já eram claros, mas negligenciados.
Um exemplo. Na Tunísia, os Trabelsi, a família de Leila, esposa do presidente escorraçado – irmãos, primos, cunhados, parentes próximos e distantes – controlam todos os setores importantes da economia, segundo se ouve, de maneira insaciável. Aliás, uma das piadas que corria sobre Ben Ali é que, parado por um policial por excesso de velocidade, ele argumenta que é o presidente Ben Ali e o policial responde “Nunca ouvi falar” e o leva para a delegacia onde o delegado olha sua carteira de identidade e diz “Tudo bem. Ele é parente dos Trabelsis”. A anedota retrata o que, apesar da calma, não sai da cabeça dos tunisianos: comparado com a rede de poder, de força e de controle que os Trabelsi exercem sobre a Tunísia, Ben Ali não é nada. A rede continua armada.
No Yêmen, sociedade tradicionalmente tribal, os manifestantes que enchem as ruas da capital, Sana’a, pedem, além de comida e trabalho, que o presidente demita do serviço público todos os familiares. No país mais bonito dos mares Vermelho e da Arábia – embora seja um dos mais inaccessíveis ao turismo internacional por ter “herdado” as bases da fronteira do Paquistão/Afeganistão do al-Qa’ida (palavra que significa justamente Base), as passeatas populares nas ruas da capital cultural árabe – 2.500 anos e com muito da beleza arquitetural histórica intacta – mostra justamente a fragilidade do maniqueísmo e dos dogmas ocidentais. O governo de Ali Abdullah Saleh também completou 30 anos (quarto mandato de sete anos) e com al-Qaida ou não nas paragens, as manifestações também, por enquanto, têm sido laicas. Com a miséria atingindo cinquenta por cento da população, a reserva de petróleo (70% do PIB) esgotando sem que a população tenha se beneficiado, rebeliões no Norte e um movimento secessionista no Sul difícil de parar, Saleh está conseguindo acalmar o povo prometendo não se recandidatar em 2013, baixar os impostos, aumentar os salários do funcionalismo público, e dos militares que guardam suas costas. Aliás, em um país em que os homens saem à rua com kalashnikov debaixo do braço, um afrontamento acarretaria milhares de mortos de ambas as partes. A calma também prova que ao contrário do que alguns acham, todo mundo prefere viver em paz.
Na década de 60, no mundo árabe, os regimes subsidiavam gêneros de primeira necessidade para assegurar a passividade. Na década de 80, trocaram o pão pelo voto e na Argélia a troca ocasionou uma revolta religiosa de proporções enormes em 1988 e na Jordânia um processo de liberalização salutar.
São águas passadas. Em 2011, as marchas em Tunis, Amman, Sana’a, Argel, Ramallah, Alexandria, Suez, Cairo... são um reflexo de sobrevivência de quem está morrendo sufocado.
Apesar da falta de conhecimento e/ou de assunto levar uma certa mídia a apavorar o leitor incauto, o movimento popular árabe é de emancipação. Mas se o Ocidente se esforçar, pode até conseguir empurrá-los para o extremismo religioso e em vez de democracia tudo acabe em sharia.
PS1. Falando em Lei islâmica, no Irã, o Aiatolá supremo Khamenei tentou ligar o processo revolucionário do Egito ao movimento que destituiu o xá Rheza Pahlavi (governou de 1941-79) e acabou na revolução que instituiu a República Islâmica no país. Porém, em comum os dois países só têm o xá, a quem Anuar el-Sadat deu asilo no Cairo. Até o ex-presidente Aiatolá Rafsanjani contradiz o rival: “É provável que o Irã acabe importando a revolução egípcia... o povo quer que más elites sejam sentenciadas e más ideias política removidas... o povo quer democracia.” Sem contar que nas ruas de Teheran em 1979 viam-se tantas faixas com slogans islâmicos quanto políticos, as passeatas foram feitas durante um feriado religioso e eram as vozes do Aiatolá Khomeini e outros líderes religiosos que comandavam os participantes nas ruas à oração. Hoje, como já disse, os Imãs estão ausentes das capitais “revoltadas” e apesar do peso político da Fraternidade Islâmica, a organização não liderou nada, muito pelo contrário, ficou de fora até ser chamada à mesa para negociar. Enquanto isto, a voz que é ouvida e aclamada no Egito é a de Wael Ghonim http://www.youtube.com/watch?v=4OgnO3fILno. O jovem executivo da Google cujo Facebook foi um dos principais motores da revolta. “Desaparecido” no dia 27 de janeiro e interrogado de olhos tapados durante 11 dias, onde, não sabe, de volta às ruas na segunda-feira passada com toda força e vontade, sua entrevista levou o país inteiro às lágrimas, reanimou os jovens ativistas e animou seus pais e os operários. Toda revolução tem um mártir. A do Egito tem um herói que chegou na hora exata. Quando tudo parecia perdido e acabado Wael reenergizou os ânimos e lembrou o porquê de estarem lá, sujos, afônicos, cansados, mas redispostos a lutar.
Enquanto o Egito desperta vigorosamente de uma letargia que parecia interminável, do Irã chegam notícias que desmentem tanto o Aiatolá supremo quanto os enviados de Washington: os gritos das ruas de Alexandria e do Cairo chegaram até a دانشگاه مادر Universidade Mãe, em Teheran, e os dedos-duros que pululam nas salas de aula como pululavam nas nossas até 1984, estão pondo as forças armadas em alerta. آزادی Azadi, é como os persas clamam Liberdade.
PS2. O xá Rezah Pahlavi usou em 1979 o mesmo argumento que Mubarak usou até a semana passada para manter sua ditadura nepotista no Egito. O persa apelou para o pavor dos Estados Unidos de seu inimigo máximo na época – o comunismo – para justificar seu regime autoritário e para torturar ativistas democratas com a bênção dos mesmos aliados que protegeram Mubarak até não poderem mais. O árabe recorreu até o fim à ameaça do Islã fundamentalista como se o sonho dos muçulmanos fosse só deixar crescer a barba e hijab.
Não é. Querem mais. As mesmas coisas que querem os jovens ocidentais: estudo, respeito, trabalho e liberdade.
PS3. O Oriente Médio pegando fogo, o povo assumindo o controle, exigindo seus direitos cívicos, dignidade, respeito aos valores nacionais e nacionalistas, e o primeiro ministro de Israel Benjamin Netanyahu, em vez de ficar quieto, cutuca Washington para só olhar o seu lado e provoca os palestinos com discursos belicosos.
Durante a semana Israel voltou a bombardear Gaza ferindo oito pessoas e destruindo um posto de saúde no norte da Faixa. Foi mais uma “retaliação” noturna aos foguetes arcaicos. Até hoje nós jornalistas ainda não conseguimos entender se os bombardeios são executados à noite por covardia ou pelo prazer mórbido de fazer as famílias viverem em sobressalto.
Comecei esta matéria no Egito e acabei na Palestina... O problema com o Oriente Médio é que, onde quer que seja o incêndio o vento o alimenta sempre com as cinzas que Israel mantém vivas nos Territórios Ocupados; e da Cisjordânia e de Gaza as flamas se alastram. Só quem ainda não entendeu isto foi Washington. Faz anos que os defensores da paz e de Israel aconselham os governos sucessivos a negociar enquanto podem e a resposta é sempre a mesma: Israel é forte e os árabes são fracos; paz só nos termos sionistas ideais. Hoje, estas vozes solidárias a Israel soam mais preocupadas. A elas juntam-se as dos que querem que justiça se faça sem que mais sangue seja derramado. Israel tem de sentar-se à mesa de negociação com o Fatah, e o Hamas, sem tardar. Agora não tem mais como se auto-congratularem que os israelenses são intrinsecamente potentes e os palestinos intrinsecamente frágeis. Uma quimera. Tem intelectuais palestinos por toda parte – apesar dos check points que visam dificultar o acesso às escolas, noventa por cento dos jovens palestinos cristãos e muçulmanos chegam à universidade. E agora está claro que com poder financeiro e/ou bélico externo guardando suas costas, são os dirigentes que são débeis e venais, e não os árabes.
Aliás, em Ramallah, os jovens também saíram às ruas para protestar. Na Cisjordânia exigiram, exigem, o fim da divisão que Israel alimentou para reinar. Os gritos chamam à união do Fatah e do Hamas em uma frente única e solidária para negociar seus direitos de existir e a paz.
Em vez de desfiar o rosário de manifestantes de Alexandria, do Cairo, do punhal de cameleiros, de reviravolta nos palácios, de mortos e feridos cujas imagens indignaram, como as informações são múltiplas, variadas, estão todos cansados, e cultura geral e geopolítica são para mim indissociáveis, resolvi poupá-los de uma grande análise dominical apelando mais uma vez para um ás literário.
O grande Gabriel García Márquez, inspirado, entre outros, nos ditadores Francisco Franco da Espanha, Rafael Trujillo da República Dominicana, Anastazio Somoza da Nicarágua e no venezuelano então recém-deposto Juan Vicente Gómez, publicou em 1975 uma fábula despontuada memorável sobre os efeitos desastrosos da concentração do poder em um único homem e a solidão que este poder proporciona. Revoltado contra o assassinato do presidente chileno Salvador Allende no dia 09 de setembro de 1973 (o 11/9 que abalou a América Latina) o escritor colombiano mudou-se com a família de Bogotá para o México e disse que só voltaria a escrever depois que o Chile se libertasse da ditadura sanguinária de Augusto Pinochet.
Ainda bem que não cumpriu a promessa e empunhou de novo a pena para atacar a ignorância com sua melhor arma. Em 1981, ano anterior ao seu Prêmio Nobel, publicou a Crônica de uma Morte Anunciada, em que relata o assassinato de um homem por dois outros, mas que só é possível por causa da cumplicidade da cidade que segue toda a armação calada.
Mas antes destas duas obras primas García Márquez escreveu A Má Hora (precursora de Cem anos de solidão) em que mostra a tensão política e a opressão em um povoado cujos habitantes aspiram à liberdade e à justiça, sem resultado.
O Egito viveu e vive uma mistura destas três obras.
Em um paralelo com a Crónica de una muerte anunciada, Hosni Mubárak fez o que faz todo ditador bem assessorado: imprensa censurada, eleições fraudadas, ministros desintelectualisados, promessas falsas. O povo infantilizado era deixado em paz e o que pensava ia para trás das grades sob indiferença geral.
Ninguém via nada. Nem ele? Quem quiser acredite quando Mubárak e os aliados ocidentais dizem que ele não sabia de nada.
Em um paralelo com El otoño del patriarca, Hosni Mubárak viu seu partido decompor-se como um castelo de cartas. O último a abandonar o barco foi o “príncipe herdeiro” Gamal Mubárak, a peça principal de seus sonhos dinásticos. Os Estados Unidos passaram o comando a Omar Suleiman, o Golbery do Couto e Silva de Mubárak, que até a semana passada era um dos homens mais poderosos e temidos do país, próximo dos EUA a ponto das celas Mukhabarat (uma Guantánamo árabe) ter sido um dos destinos preferidos da CIA para levar suspeitos de terrorismo capturados no que se chama “Rendition”. De novo, Suleiman só tem o cargo. As risadas da semana passada viraram risos amargos.
Em um paralelo com La mala hora, cujo título privado foi Este pueblo de mierda, na quarta-feira Mubárak usou do artifício dos “contra” (que a CIA usou na Nicarágua) para desacreditar o movimento democrático e pôr o Exército na rua para “estabelecer calma”. Para completar, seu fiel general Tantawi apareceu na praça Tahrir para dar uma impressão aos manifestantes que eles obteriam o que o nome da praça simbolizava: Liberdade. Enquanto isto, alguns dos jovens que se destacaram e que voltaram em casa para uma higiene básica desapareceram e fala-se que nos porões da ditadura, em vez de inaugurarem uma era de justiça, estão experimentando uma antiga barbárie.
Para não dizer que não falei das flores, como todo ser civilizado da Terra, gostaria que Mubárak se retirasse, mas não sozinho, com Suleiman e Tantawi na bagagem. Que os três deixassem o “comitê de sábios” (1) escolhido pelos Twitters assegurar a transição democrática, que os jovens egípcios conseguissem continuar uma vigília cada vez mais acesa até obterem a democracia almejada, e que se 90% do desejado dessem errado e Omar Suleiman dirigisse o Egito até setembro, alguém o tocasse com uma varinha mágica que o transformasse em nacionalista, democrata, justo, ou no mínimo, leal ao povo que diz representar... e em setembro proporcionasse eleições honestas, que Gamal Mubárak estivesse realmente se afastando do pai de quem fosse realmente diferente e “se” "fosse" “eleito” à presidência daqui a alguns meses, optasse pela auto-determinação e tomasse o lado do povo, do Egito, e não o do autoritarismo, da corrupção e das influências periféricas.
O fato é que em duas semanas a economia do país passou de mal a pior e quem pegar o governo agora vai ter de avisar que é inviável cumprir qualquer programa incompatível com uma política econômica de austeridade.
Após treze dias intensos, apesar de promessas de um lado, e do outro, entusiasmo, não se tem certeza de nada. Os manifestantes pro-democracia estão cansados, mas continuam na praça seguros de que venceram e achando que estão dando as cartas. Será?
O que parece nos palácios – da White House em Washington ao Kasr al-Ittihadiya em Heliópolis, no Cairo – é que apesar do “Comitê de sábios” e a recente agregação da Fraternidade Islâmica (2) ao diálogo, o máximo que se obterá a curto prazo é que Mubárak seja sacrificado para que só se mude as caras e a liberdade continue apenas no nome da praça em que os sonhos de centenas de milhares de jovens começaram.
Mas como disse no início, isto não é uma análise, é um tecido de palavras inspiradas no grande mestre da pena político-literária.
Mas para concluir com otimismo, se não houver mudanças reais, imediatas, após os jovens terem provado o sabor da liberdade democrática que criaram através das passeatas, é bem provável que a tahrir, de direito e de fato, só seja adiada. E quando votarem, elejam um presidente laico, democrata.
(1) A lista formulada na sexta-feira incluía Amr Moussa, secretário geral da Liga Árabe; o prêmio Nobel Ahmed Zuwail, conselheiro pontual de Obama; Mohamed Selim Al-Awa, professor de estudos islamitas próximo da Fraternidade Islâmica; o presidente do partido Wafd, Said AL-Badawi; o empresário Nagib Suez, ligado ao sistema de telefonia cortado na semana passada; Nabil AL-Arabi, um delegado na ONU, o cirurgião cardíaco Magdi Yacoub, e outras personalidades.
(2) A Fraternidade Islâmica é a associação islamita mais organizada no mundo. Presente em mais de quatorze países, foi fundada no Egito em 1928 por Hassan AL-Banna e tem influenciado movimentos muçulmanos, não extremistas em vários países. Mistura ativismo político com trabalho caritativo, é banida de atividades políticas públicas, rejeita violência, apóia princípios democráticos, mas almeja a criação de Estado governado pela lei Islamita. Seu slogan é: o islã é a solução. Seu líder atual é o professor de veterinária Mohamed Badi’e.