domingo, 20 de fevereiro de 2011

Emancipação, repressão, e quem sabe, a gota d'água


Com todo aparato repressivo e figura autoritária emblemática, Muammar Kadhafi em seu Reino do Silêncio, como a Líbia é chamada, mesmo recorrendo à força máxima está penando para guardar sua seara na impunidade.
Tudo começou em Trípoli com o baixo-assinado em que 213 personalidades de meios profissionais variados exigiam o fim de seus 41 anos de “reinado” e denunciavam os males que vem infligindo à sociedade. Enquanto isto no norte do país, em Benghazi, começava a passeata anual em memória de um assassinato de presos que marcou a cidade. Virou uma manifestação reprimida com a violência própria a Kadhafi.
Benghazi é longe de Trípoli e demorou uma semana para as ruas da capital se encherem de jovens gritando Kefaya! sendo recebidos a fogo pelo forte aparato policial que tinha sido dobrado. Mas desta vez condenou-se a violência, mas ninguém ousou falar em derrubar Kadhafi. Todos sabem do que ele é capaz. Kadhafi não é o fraco Ben Ali, nem o venal Mubarak, nem um sheik bilionário. Kadhafi conquistou o poder aos 27 anos liderando uma revolta militar. Com ele não é questão só de ambição financeira desmesurada ou sede de poder insaciável. Sua divisa é a dos Romanos: ordine; a ordem à qual se sacrifica tudo, começando pela liberdade de palavra. Quem conhece Kadhafi sabe que governa a Líbia como se fosse a sua casa. Age como um padrasto impiedoso que não recua diante de nada para proteger seus filhos em detrimento dos enteados e impor suas leis e suas vontades. E ninguém "paga" seu salário. Ninguém "patrocina" suas forças armadas. Kadhafi é autônomo. Tem certeza de que não precisa de ninguém nem de nada. Acima dele, só Allah. É por isto que se deu ao direito de atacar os manifestantes com todas as sua forças armadas. E assim começou a história de um massacre anunciado. Quanto tempo vai durar, só Allah sabe. Se Kadhafi vai conseguir sair ileso desta guerra contra seu povo, é pouco provável.

No Bahein, país de 750m² compostos de trinta ilhas vizinhas do Qatar, em resposta à morte de dois afiliados, o principal partido xiita al-Wefaq suspendeu sua participação no governo e em seguida as ruas de Manama foram invadidas de homens e mulheres (estas, de hijab preto) exigindo a renúncia do Sheik Khalifa Bin Salman al-Khalifa (tio do rei e primeiro ministro desde 1971), a libertação dos prisioneiros religiosos e uma nova constituição.
A ironia é ser justamente no Bahein, que tem o maior índice de liberdade política e social do Golfo, que a revolta mude de cara. Aqui ela tem a cara religiosa que a imprensa sensacionalista pintava (pinta?) das outras capitais. Os xiitas são maioria no país em que o milhão e trezentos mil habitantes são governados pelos Khalifa, a família real sunita que ocupa o trono há dois séculos.
A relação entre os xiitas e os sunitas lembra a discórdia sangrenta entre os protestantes e os católicos nos séculos XVI e XVII na Europa. Lutero x Papa. Alih x Abu-Bakr ou Abu-Bakr x Alih; conforme for o seu lado.
Eu disse que a cara é religiosa, mas é só um lado e nem este lado tem a feição do al-Qaida. Pode tirar o peso da alma. Esta face é a dos velhos, arcaica. Os jovens gritam Não aos xiitas! Não aos sunitas! Somos todos bareinitas! e mostram a outra face. A da emancipação laica.

Em Ramallah, os jovens também continuam a reivindicar a união do Fatah e do Hamas, e a demissão do presidente Mahmoud Abbas e do primeiro ministro Salam Fayadd. Desacreditados pelas revelações dos Palestine Papers e fragilizados pela relação que tinham com Hosni Mubarak.

No Yêmen, embora as ruas de Sana'a estejam menos cheias do que nos dias passados, após os tiros trocados, teme-se que o os chefes tribais aproveitem para invadir a capital com todo seu arsenal. Eu continuo achando (ou esperando) que não passa de ameaça. A não ser que tenham planejado um suicídio coletivo diante do palácio de Ali Abdullah Saleh para sensibilizá-lo.

. Os “novos” dirigentes da Tunísia, do Egito e dos países que seguirão seus passos, terão de lidar com posições internacionais impopulares tomadas pelo antigo regime ditadas por interesses estrangeiros. A primeira é o bloqueio da Faixa de Gaza; a segunda é a situação do Iraque, a terceira é a hostilidade bélica dirigida ao Irã, e a última, ligada à primeira, à mediação desacreditada do conflito Israelo-palestino.
Estas quatro reclamações são ouvidas em todos os países árabes, já ou ainda não inflamados.

Onda de Liberdade x Rede de repressão armadaNão é por nada que na Tunísia as potências ocidentais repudiaram Ben Ali de imediato e muitos hesitaram a abandonar o fiel aliado Hosni Mubarak. É pela posição estratégica do Egito entre a África e a Ásia e por ser o farol sócio-político da Liga Árabe. Como o Brasil em nossas paragens.
No século XVIII exerceu profunda influência social, política e cultural na modernização da região e entre 1952 e 1970 se destacou dos vizinhos graças ao seu carismático presidente Gamal Abdel Nasser cuja personalidade forte e inteligência aguçada valeram ao país uma independência pragmática e liderança incontestável. Após a morte de Nasser o Egito perdeu a aura visionária, mas conservou bastante influência durante a gestão de Anuar Sadat e mais tarde, com Hosni Mubarak, apesar do enfraquecimento pessoal deste devido à subserviência aos EUA.
Até 2010 foi um exemplo de autoritarismo e de repressão disfarçada, como no Brasil dos militares. Sua transformação em democracia liberal como a da Turquia, teria (terá?) portanto graves consequências sócio-políticas, pois o quadro é mais ou menos o mesmo na região por todos os lados.
O crescimento econômico razoável nos estados não-petroleiros não gerou empregos e sim desempregados, a administração e a corrupção ficaram incontroláveis, as famílias estão menos sólidas do que no passado, o sistema educativo se encontra em processo de decomposição rápida, a realização profissional virou um sonho dificilmente realizável, e sobretudo, o despotismo, agravado por um nepotismo declarado, tem ficado cada vez mais claro e insuportável.
Com a abertura no Egito, o efeito dominó é inevitável.
A revolta na Líbia mostra que nem figuras emblemáticas como o terrível Kadhafi estão imunes à emancipação popular. Neste caso, até eu fiquei surpreendida de ver estes líbios amáveis mas acostumados a andar de cabeça baixa, levantá-la.
Se, se, se conseguirem derrubar Kadhafi, nenhum outro ditador estará imune ao levante popular. Mas o que realça nestes movimentos de emancipação, além do espírito secular que retrata, é a uniformidade do sistema repressivo vigente nos regimes árabes.
Como por exemplo, a repetida armação dos “contra” nas ruas de Sana’a, Alger, Amman, Ramallah, Bahein a fim de facilitar a ação militar e “desaparecer” com as figuras mais destacadas, como aconteceu no Cairo. Isto porque, como a Operação Condor da CIA formou a rede de repressão e cavou porões na América do Sul começando no Brasil em 1964, os países árabes também têm uma rede de “Informação” coesa e implacável.
Faz anos que os Serviços Secretos trocam figurinhas sobre técnicas de tortura sofisticadas aprendidas com os colonizadores ocidentais “civilizados”. Foi em Alger, ou melhor, na Delegacia de Chateauneuf, como o DOI CODI local é chamado, que os egípcios aprenderam a usar eletricidade nos órgãos genitais dos presos políticos. Aliás, quando falei de tortura semanas atrás, não mencionei a maneira dos argelinos desvirtuarem o ouro azul – são especialistas em uma tortura que consiste em encher o torturado de água até ele rebentar.
Em 1994, os argelinos foram à Síria saber como o então presidente Hafez El-Assad tinha lidado com o levante muçulmano de 1982 em Hama e aprenderam que bastou explodir a cidade e deixar os cadáveres de inocentes e culpados expostos na praça. Como os portugueses fizeram com Tiradentes durante a nossa Inconfidência de Minas Gerais.
Não há prescrição histórica para a barbárie?
Em dezembro foram os tunisianos que visitaram os argelinos para se atualizarem na arte de torturar. Ainda não se sabe se e quando serão praticadas no período “pós-revolucionário”.
Trocando em miúdos, o que está acontecendo nos países árabes foi o que aconteceu na América do Sul na década de 80 – aquela corrente de Basta! contra a Operação Condor e os milhares de desaparecidos e torturados nas masmorras dos nossos regimes militares.
Até ontem, até agora, nestes países em que os jovens estão dizendo Kefaya!, os dirigentes também recebiam ordens do Pentágono e os sádicos nacionais, também formados por “especialistas” ocidentais, se esqueciam dos princípios humanos básicos como no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai...
Como no nosso Cone Sul, o Oriente Médio cansou de apanhar, ser derrubado e ficar deitado. Deixou o medo de lado e resolveu se levantar.
Como no nosso Cone Sul, Washington está demorando a desencarnar. Sua reação de apoio imediato só foi dirigida ao Irã, aos jovens que saíram às ruas de Teheran e foram matracados... E repete os erros do passado intervindo justamente onde atrapalha.
Mudam-se os tempos, mas os EUA não mudam suas vontades imediatas.

Na ONU, o veto altamente inflamávelNa sequência de imobilidade geopolítica, os EUA vetaram na ONU a moção que condena a construção de novas colônias israelenses na Cisjordânia peitando os outros 14 membros do Conselho de Segurança. Nesta questão internacional também a Casa Branca continua isolada.
O argumento usado é em si um ultraje: Embora concordemos com os demais no tocante à ilegitimidade do prosseguimento das colônias, achamos desaconselhável que o Conselho tente resolver questões de fundo que dividem israelenses e palestinos.
(Vale lembrar que conforme as leis internacionais as colônias existentes já são ilegais. O que para Israel tanto faz. Assim como as 34 resoluções da ONU que desrespeita na impunidade. Se a Organização das Nações Unidas não tiver poder para fazer cumprir suas próprias leis, quem terá? Para que ela existe, de fato?)
Os delegados dos demais países membros permanentes ou transitórios do Conselho ficaram estupefatos. Alguns exprimiram sua incompreensão e raiva. Outros engoliram em seco e devem ter ido rezar para que esta servidão cega a Israel, criticada com veemência até pelas ONGs de Direitos Humanos de Tel Aviv, embora faça Benyamin Netanyahu e Avigdor Lieberman rirem e esfregarem as mãos, não termine em mais lágrimas amargas.
Pois esta nova “vitória” do lobby israelense (1) não deixa de ser uma derrota, já que terminou de converter Israel em um passivo perigoso para os EUA. Com o veto desta semana a uma posição mais moral e legal do que efetiva, Barak Obama deu as costas ao mundo, admitiu sua autonomia fictícia e arruinou grande parte do capital de simpatia internacional que ainda tinha.
Que Netanyahu e Lieberman não se iludam. Este novo sucesso lobístico é um golpe no processo de paz. Só conseguiram devolver os Estados Unidos ao isolamento em que a ocupação do Iraque os havia levado. W. Bush deve estar rolando de rir de seu sucessor que fez tantas promessas pacíficas antes de assumir o cargo carregado de compromissos intricados.
É claro que Barack Obama e Hillary Clinton estão cientes que dando carta branca a Israel para prosseguir sua ocupação ilegal da Cisjordânia provocam um desastre político e humanitário (2) que inviabiliza qualquer passo da Autoridade Palestina em direção à mesa de negociação.
É claro que Obama e Clinton sabem que sua relação com os países árabes desmoronou na hora que apoiaram Israel em um assunto inapoiável.
Mas por incrível que pareça o veto foi pensado, calculado, e Obama mais uma vez pesou errado os seus interesses político-partidários. E antes de votar, teve a ousadia de ligar para Ramallah na véspera para forçar Mahmoud Abbas a impedir que a Resolução fosse votada. A pressão telefônica durou 50 minutos. Surrealista ou amoral?
A ONG israelense de Direitos Humanos Gush Shalom já declarou que a AIPAC (3) não é um lobby israelense, mas sim um lobby anti-israelense “que acumula um poder desmesurado que impede que Israel corrija seus graves erros políticos e leva nosso país a uma política auto-destrutiva que compromete nosso futuro ao negar a Israel a menor chance de alcançar a paz com os vizinhos e ao empurrar o país em direção ao abismo da ocupação, colonização e do racismo.”
Gush Shalom e as outras ONGs de Direitos Humanos têm razão. A notícia pode inflamar as passeatas que se multiplicam nos países árabes e teme-se que daqui a pouco bandeiras estadunidenses voltem a ser queimadas.
O argumento usado pelos EUA de que o assunto da Palestina não é da alçada do Conselho de Segurança da ONU é o mesmo que usam sempre para bloquear sistematicamente qualquer ação internacional na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
Vale lembrar que o Conselho de Segurança é composto de cinco membros permanentes – China, Inglaterra, França, EUA e Rússia – e dez com mandatos anuais. A ONU só pode agir quando a decisão é aprovada por unanimidade.
Faz anos que o Brasil pleiteia um assento permanente no Conselho, mas a porta é bloqueada. Em 2011, o Brasil faz parte dos dez membros não-permanentes que têm a oportunidade de tentar mudar algo.
Já que o nosso país teve a coragem política e a ética de reconhecer o Estado da Palestina com as fronteiras de 1967, por que não aproveitar 2011 para apresentar ao Conselho uma proposta de admissão da Palestina na ONU como Estado?
Pode até não dar em nada. Mas vai mostrar que ao contrário dos EUA e dos outros quatro membros do BRIC “candidatos” à hegemonia político-econômica mundial, o Brasil tem visão internacional a curto, médio e longo prazo. E de lambuja, sabe liderar.

The Israeli Lobby

Global BDS Movement

BDS Flash Mob
Global BDS Movement: http://www.bdsmovement.net/

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