... E dezoito dias depois, Barack Obama resolve convencer Hosni Mubarak a deixar o cargo. Uma vez mais o presidente dos EUA seguiu, em vez de liderar. Agora tem de pressionar o Exército egípcio, que quase depende dele para o salário, a assegurar a transição democrática.
Como disse na semana passada, o Patriarca caiu em desgraça, foi para sua mansão à margem do Mar Vermelho, mas deixou a cabeça e os dois braços armados a postos no Cairo. Omar Suleiman e o general Tantawi continuam lá. Mas terão de escutar. O Egito não é mais o mesmo. Os egípcios acordaram e não estão dispostos a deixar a conquista resvalar. Prometem continuar a vigília de casa, do trabalho, da universidade, e através de uma imprensa livre para denunciar.
A festa na rua foi bonita, o otimismo e a alegria continuam, porém... hoje é difícil cantar vitória. No final das contas, vai depender de quão grande é a dissensão no Exército e de quão potentes são os oficiais democratas. Hoje os soldados são chamados de irmãos, mas soldado é peão. Peão não se desloca, é deslocado e só de casa em casa, para frente ou para trás, e neste tabuleiro de xadrez a rainha é Tantawi e o rei é Suleiman. Enquanto ambos não forem transformados em torres, bispos ou tirados do jogo, vai ser preciso vigilância constante para que as reformas vinguem e para que haja eleições livres, sem corrupção.
Dito isto sobre o Egito, um balanço provisório se impõe na região.
Desde que al-Qaeda protagonizou as explosões das torres gêmeas de Nova York, Ben Laden foi transformado NO Bicho Papão e o Islamismo foi estigmatizado como uma religião que fabrica terroristas em massa.
No século III o persa Mani inventou esta teoria do Universo ser dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis do oito ou oitenta, do Bem e do Mal absolutos, mas a vida e o mundo já provaram n vezes que o maniqueísmo é desumano e falho.
Nenhuma religião fabrica terrorista, nenhuma fabrica vítima e nenhuma fabrica tolerância e liberalismo. Se religião influenciasse alguém e algo, o capitalismo não teria tido nenhuma chance de triunfar entre os cristãos, o “nosso” mundo teria vivido dezessete séculos de paz e o Ocidente seria uma imensa Shangri-La.
O que diferencia as pessoas pode ser a visão.
Por exemplo, a pessoa cuja visão econômica se estende da Teoria de Sentimentos Morais do escocês Adam Smith ao Das Kapital de Karl Marx entende melhor o cerne da revolta nos países árabes do que os “Chicago boys” adeptos de Milton Friedman e sua teoria do choque (http://www.youtube.com/watch?v=aSF0e6oO_tw).
Ben Laden é uma ameaça, mas é uma ameaça ínfima comparada com a dos khobzistes (desempregados do Magreb). Os efeitos colaterais dos regimes autoritários que permitem as vidas de nababo dos clãs dos dirigentes dos países árabes – a concentração da riqueza atinge um grau inimaginável enquanto ao resto do país falta o básico – já eram claros, mas negligenciados.
Um exemplo. Na Tunísia, os Trabelsi, a família de Leila, esposa do presidente escorraçado – irmãos, primos, cunhados, parentes próximos e distantes – controlam todos os setores importantes da economia, segundo se ouve, de maneira insaciável. Aliás, uma das piadas que corria sobre Ben Ali é que, parado por um policial por excesso de velocidade, ele argumenta que é o presidente Ben Ali e o policial responde “Nunca ouvi falar” e o leva para a delegacia onde o delegado olha sua carteira de identidade e diz “Tudo bem. Ele é parente dos Trabelsis”. A anedota retrata o que, apesar da calma, não sai da cabeça dos tunisianos: comparado com a rede de poder, de força e de controle que os Trabelsi exercem sobre a Tunísia, Ben Ali não é nada. A rede continua armada.
No Yêmen, sociedade tradicionalmente tribal, os manifestantes que enchem as ruas da capital, Sana’a, pedem, além de comida e trabalho, que o presidente demita do serviço público todos os familiares. No país mais bonito dos mares Vermelho e da Arábia – embora seja um dos mais inaccessíveis ao turismo internacional por ter “herdado” as bases da fronteira do Paquistão/Afeganistão do al-Qa’ida (palavra que significa justamente Base), as passeatas populares nas ruas da capital cultural árabe – 2.500 anos e com muito da beleza arquitetural histórica intacta – mostra justamente a fragilidade do maniqueísmo e dos dogmas ocidentais. O governo de Ali Abdullah Saleh também completou 30 anos (quarto mandato de sete anos) e com al-Qaida ou não nas paragens, as manifestações também, por enquanto, têm sido laicas. Com a miséria atingindo cinquenta por cento da população, a reserva de petróleo (70% do PIB) esgotando sem que a população tenha se beneficiado, rebeliões no Norte e um movimento secessionista no Sul difícil de parar, Saleh está conseguindo acalmar o povo prometendo não se recandidatar em 2013, baixar os impostos, aumentar os salários do funcionalismo público, e dos militares que guardam suas costas. Aliás, em um país em que os homens saem à rua com kalashnikov debaixo do braço, um afrontamento acarretaria milhares de mortos de ambas as partes. A calma também prova que ao contrário do que alguns acham, todo mundo prefere viver em paz.
Na década de 60, no mundo árabe, os regimes subsidiavam gêneros de primeira necessidade para assegurar a passividade. Na década de 80, trocaram o pão pelo voto e na Argélia a troca ocasionou uma revolta religiosa de proporções enormes em 1988 e na Jordânia um processo de liberalização salutar.
São águas passadas. Em 2011, as marchas em Tunis, Amman, Sana’a, Argel, Ramallah, Alexandria, Suez, Cairo... são um reflexo de sobrevivência de quem está morrendo sufocado.
Apesar da falta de conhecimento e/ou de assunto levar uma certa mídia a apavorar o leitor incauto, o movimento popular árabe é de emancipação. Mas se o Ocidente se esforçar, pode até conseguir empurrá-los para o extremismo religioso e em vez de democracia tudo acabe em sharia.
PS1. Falando em Lei islâmica, no Irã, o Aiatolá supremo Khamenei tentou ligar o processo revolucionário do Egito ao movimento que destituiu o xá Rheza Pahlavi (governou de 1941-79) e acabou na revolução que instituiu a República Islâmica no país. Porém, em comum os dois países só têm o xá, a quem Anuar el-Sadat deu asilo no Cairo. Até o ex-presidente Aiatolá Rafsanjani contradiz o rival: “É provável que o Irã acabe importando a revolução egípcia... o povo quer que más elites sejam sentenciadas e más ideias política removidas... o povo quer democracia.” Sem contar que nas ruas de Teheran em 1979 viam-se tantas faixas com slogans islâmicos quanto políticos, as passeatas foram feitas durante um feriado religioso e eram as vozes do Aiatolá Khomeini e outros líderes religiosos que comandavam os participantes nas ruas à oração. Hoje, como já disse, os Imãs estão ausentes das capitais “revoltadas” e apesar do peso político da Fraternidade Islâmica, a organização não liderou nada, muito pelo contrário, ficou de fora até ser chamada à mesa para negociar. Enquanto isto, a voz que é ouvida e aclamada no Egito é a de Wael Ghonim http://www.youtube.com/watch?v=4OgnO3fILno. O jovem executivo da Google cujo Facebook foi um dos principais motores da revolta. “Desaparecido” no dia 27 de janeiro e interrogado de olhos tapados durante 11 dias, onde, não sabe, de volta às ruas na segunda-feira passada com toda força e vontade, sua entrevista levou o país inteiro às lágrimas, reanimou os jovens ativistas e animou seus pais e os operários. Toda revolução tem um mártir. A do Egito tem um herói que chegou na hora exata. Quando tudo parecia perdido e acabado Wael reenergizou os ânimos e lembrou o porquê de estarem lá, sujos, afônicos, cansados, mas redispostos a lutar.
Enquanto o Egito desperta vigorosamente de uma letargia que parecia interminável, do Irã chegam notícias que desmentem tanto o Aiatolá supremo quanto os enviados de Washington: os gritos das ruas de Alexandria e do Cairo chegaram até a دانشگاه مادر Universidade Mãe, em Teheran, e os dedos-duros que pululam nas salas de aula como pululavam nas nossas até 1984, estão pondo as forças armadas em alerta. آزادی Azadi, é como os persas clamam Liberdade.
PS2. O xá Rezah Pahlavi usou em 1979 o mesmo argumento que Mubarak usou até a semana passada para manter sua ditadura nepotista no Egito. O persa apelou para o pavor dos Estados Unidos de seu inimigo máximo na época – o comunismo – para justificar seu regime autoritário e para torturar ativistas democratas com a bênção dos mesmos aliados que protegeram Mubarak até não poderem mais. O árabe recorreu até o fim à ameaça do Islã fundamentalista como se o sonho dos muçulmanos fosse só deixar crescer a barba e hijab.
Não é. Querem mais. As mesmas coisas que querem os jovens ocidentais: estudo, respeito, trabalho e liberdade.
PS3. O Oriente Médio pegando fogo, o povo assumindo o controle, exigindo seus direitos cívicos, dignidade, respeito aos valores nacionais e nacionalistas, e o primeiro ministro de Israel Benjamin Netanyahu, em vez de ficar quieto, cutuca Washington para só olhar o seu lado e provoca os palestinos com discursos belicosos.
Durante a semana Israel voltou a bombardear Gaza ferindo oito pessoas e destruindo um posto de saúde no norte da Faixa. Foi mais uma “retaliação” noturna aos foguetes arcaicos. Até hoje nós jornalistas ainda não conseguimos entender se os bombardeios são executados à noite por covardia ou pelo prazer mórbido de fazer as famílias viverem em sobressalto.
Comecei esta matéria no Egito e acabei na Palestina... O problema com o Oriente Médio é que, onde quer que seja o incêndio o vento o alimenta sempre com as cinzas que Israel mantém vivas nos Territórios Ocupados; e da Cisjordânia e de Gaza as flamas se alastram. Só quem ainda não entendeu isto foi Washington. Faz anos que os defensores da paz e de Israel aconselham os governos sucessivos a negociar enquanto podem e a resposta é sempre a mesma: Israel é forte e os árabes são fracos; paz só nos termos sionistas ideais. Hoje, estas vozes solidárias a Israel soam mais preocupadas. A elas juntam-se as dos que querem que justiça se faça sem que mais sangue seja derramado. Israel tem de sentar-se à mesa de negociação com o Fatah, e o Hamas, sem tardar. Agora não tem mais como se auto-congratularem que os israelenses são intrinsecamente potentes e os palestinos intrinsecamente frágeis. Uma quimera. Tem intelectuais palestinos por toda parte – apesar dos check points que visam dificultar o acesso às escolas, noventa por cento dos jovens palestinos cristãos e muçulmanos chegam à universidade. E agora está claro que com poder financeiro e/ou bélico externo guardando suas costas, são os dirigentes que são débeis e venais, e não os árabes.
Aliás, em Ramallah, os jovens também saíram às ruas para protestar. Na Cisjordânia exigiram, exigem, o fim da divisão que Israel alimentou para reinar. Os gritos chamam à união do Fatah e do Hamas em uma frente única e solidária para negociar seus direitos de existir e a paz.
Novos tempos, novas vontades.
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