Em vez de desfiar o rosário de manifestantes de Alexandria, do Cairo, do punhal de cameleiros, de reviravolta nos palácios, de mortos e feridos cujas imagens indignaram, como as informações são múltiplas, variadas, estão todos cansados, e cultura geral e geopolítica são para mim indissociáveis, resolvi poupá-los de uma grande análise dominical apelando mais uma vez para um ás literário.
O grande Gabriel García Márquez, inspirado, entre outros, nos ditadores Francisco Franco da Espanha, Rafael Trujillo da República Dominicana, Anastazio Somoza da Nicarágua e no venezuelano então recém-deposto Juan Vicente Gómez, publicou em 1975 uma fábula despontuada memorável sobre os efeitos desastrosos da concentração do poder em um único homem e a solidão que este poder proporciona. Revoltado contra o assassinato do presidente chileno Salvador Allende no dia 09 de setembro de 1973 (o 11/9 que abalou a América Latina) o escritor colombiano mudou-se com a família de Bogotá para o México e disse que só voltaria a escrever depois que o Chile se libertasse da ditadura sanguinária de Augusto Pinochet.
Ainda bem que não cumpriu a promessa e empunhou de novo a pena para atacar a ignorância com sua melhor arma. Em 1981, ano anterior ao seu Prêmio Nobel, publicou a Crônica de uma Morte Anunciada, em que relata o assassinato de um homem por dois outros, mas que só é possível por causa da cumplicidade da cidade que segue toda a armação calada.
Mas antes destas duas obras primas García Márquez escreveu A Má Hora (precursora de Cem anos de solidão) em que mostra a tensão política e a opressão em um povoado cujos habitantes aspiram à liberdade e à justiça, sem resultado.
O Egito viveu e vive uma mistura destas três obras.
Em um paralelo com a Crónica de una muerte anunciada, Hosni Mubárak fez o que faz todo ditador bem assessorado: imprensa censurada, eleições fraudadas, ministros desintelectualisados, promessas falsas. O povo infantilizado era deixado em paz e o que pensava ia para trás das grades sob indiferença geral.
Ninguém via nada. Nem ele? Quem quiser acredite quando Mubárak e os aliados ocidentais dizem que ele não sabia de nada.
Em um paralelo com El otoño del patriarca, Hosni Mubárak viu seu partido decompor-se como um castelo de cartas. O último a abandonar o barco foi o “príncipe herdeiro” Gamal Mubárak, a peça principal de seus sonhos dinásticos. Os Estados Unidos passaram o comando a Omar Suleiman, o Golbery do Couto e Silva de Mubárak, que até a semana passada era um dos homens mais poderosos e temidos do país, próximo dos EUA a ponto das celas Mukhabarat (uma Guantánamo árabe) ter sido um dos destinos preferidos da CIA para levar suspeitos de terrorismo capturados no que se chama “Rendition”. De novo, Suleiman só tem o cargo. As risadas da semana passada viraram risos amargos.
Em um paralelo com La mala hora, cujo título privado foi Este pueblo de mierda, na quarta-feira Mubárak usou do artifício dos “contra” (que a CIA usou na Nicarágua) para desacreditar o movimento democrático e pôr o Exército na rua para “estabelecer calma”. Para completar, seu fiel general Tantawi apareceu na praça Tahrir para dar uma impressão aos manifestantes que eles obteriam o que o nome da praça simbolizava: Liberdade. Enquanto isto, alguns dos jovens que se destacaram e que voltaram em casa para uma higiene básica desapareceram e fala-se que nos porões da ditadura, em vez de inaugurarem uma era de justiça, estão experimentando uma antiga barbárie.
Para não dizer que não falei das flores, como todo ser civilizado da Terra, gostaria que Mubárak se retirasse, mas não sozinho, com Suleiman e Tantawi na bagagem. Que os três deixassem o “comitê de sábios” (1) escolhido pelos Twitters assegurar a transição democrática, que os jovens egípcios conseguissem continuar uma vigília cada vez mais acesa até obterem a democracia almejada, e que se 90% do desejado dessem errado e Omar Suleiman dirigisse o Egito até setembro, alguém o tocasse com uma varinha mágica que o transformasse em nacionalista, democrata, justo, ou no mínimo, leal ao povo que diz representar... e em setembro proporcionasse eleições honestas, que Gamal Mubárak estivesse realmente se afastando do pai de quem fosse realmente diferente e “se” "fosse" “eleito” à presidência daqui a alguns meses, optasse pela auto-determinação e tomasse o lado do povo, do Egito, e não o do autoritarismo, da corrupção e das influências periféricas.
O fato é que em duas semanas a economia do país passou de mal a pior e quem pegar o governo agora vai ter de avisar que é inviável cumprir qualquer programa incompatível com uma política econômica de austeridade.
Após treze dias intensos, apesar de promessas de um lado, e do outro, entusiasmo, não se tem certeza de nada. Os manifestantes pro-democracia estão cansados, mas continuam na praça seguros de que venceram e achando que estão dando as cartas. Será?
O que parece nos palácios – da White House em Washington ao Kasr al-Ittihadiya em Heliópolis, no Cairo – é que apesar do “Comitê de sábios” e a recente agregação da Fraternidade Islâmica (2) ao diálogo, o máximo que se obterá a curto prazo é que Mubárak seja sacrificado para que só se mude as caras e a liberdade continue apenas no nome da praça em que os sonhos de centenas de milhares de jovens começaram.
Mas como disse no início, isto não é uma análise, é um tecido de palavras inspiradas no grande mestre da pena político-literária.
Mas para concluir com otimismo, se não houver mudanças reais, imediatas, após os jovens terem provado o sabor da liberdade democrática que criaram através das passeatas, é bem provável que a tahrir, de direito e de fato, só seja adiada. E quando votarem, elejam um presidente laico, democrata.
(1) A lista formulada na sexta-feira incluía Amr Moussa, secretário geral da Liga Árabe; o prêmio Nobel Ahmed Zuwail, conselheiro pontual de Obama; Mohamed Selim Al-Awa, professor de estudos islamitas próximo da Fraternidade Islâmica; o presidente do partido Wafd, Said AL-Badawi; o empresário Nagib Suez, ligado ao sistema de telefonia cortado na semana passada; Nabil AL-Arabi, um delegado na ONU, o cirurgião cardíaco Magdi Yacoub, e outras personalidades.
(2) A Fraternidade Islâmica é a associação islamita mais organizada no mundo. Presente em mais de quatorze países, foi fundada no Egito em 1928 por Hassan AL-Banna e tem influenciado movimentos muçulmanos, não extremistas em vários países. Mistura ativismo político com trabalho caritativo, é banida de atividades políticas públicas, rejeita violência, apóia princípios democráticos, mas almeja a criação de Estado governado pela lei Islamita. Seu slogan é: o islã é a solução. Seu líder atual é o professor de veterinária Mohamed Badi’e.
Que privilégio poder ler um texto de alguém com a sua vivência...
ResponderExcluirParabéns pelo blog!
Abraços
Mauricio