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domingo, 30 de outubro de 2011

O sistema que devora o equilíbrio social



Os revolucionários da Praça Tahrir acima (que voltaram a reunir-se para protestar contra a continuidade da prática de tortura nas cadeias), mandaram recado para os “companheiros” de Occupy Wall Street e para os Indignados de todas as nacionalidades:
"Estamos envolvidos na mesma luta. Com os interesses do governo se alinhando cada dez mais ao conforto do capital transnacional privado, nossas cidades e casas têm ficado cada vez mais violentas e abstratas, sujeitas a estragos oriundos de novos projetos econômicos e urbanos. Uma geração inteira mundo afora cresceu com a consciência, racional e emocional, de não ter nenhum futuro neste esquema."

Maravilhoso receber esta mensagem! disse Ed Needham, porta-voz de OWS, Ela dá um sentido empático de solidariedade. É claro que os fatos no Egito e aqui não são os mesmos, mas como os egípcios articularam, a mensagem é sobre sentir e saber que um sistema deixou de ser certo, justo, e não querer mais ser um membro explorado deste sistema. Que o mundo saiba que desde que os protestos Occupy Wall Street começaram no dia 17 de setembro, els estão tendo e continuarão a ter um impacto profundo no status quo financeiro.
O que afeta o Egito afeta Nova Iorque. Os direitos das pessoas no mundo inteiro e toda e qualquer aparência de governo livre têm sido seqüestradas por interesses corporativos. O povo egípcio que busca a solidariedade global é como o povo dos Estados Unidos. Sabemos que estamos juntos, com uma escolha única – vitória.

Porém, Christine Lagarde, substituta de seu compatriota DSK no FMI, não concorda em dar aos Indignados a vitória.
Após a ajuda substancial dos Estados Unidos e a Grã-Bretanha para conter o auto-estrangulamento de seus bancos na crise de 2007/2008, a francesa começou uma campanha frutífera junto à Europa para resgatar os que ainda estão à deriva do naufrágio da cobiça.
Como foi que os EUA cavaram este buraco tão fundo em que a superfície parece inatingível?
Para o neoliberalismo vingar, a elite econômica bolou o truque de convencer milhões de estadunidenses chamados na década de 80 de “Democratas Reagan”, a apoiar políticas econômicas obviamente contrárias aos seus interesses e a acreditar que tais medidas que permitiam o enriquecimento de uma minoria minoritaríssima correspondia aos seus valores liberais.

Como conseguiram?
Primeiro edificaram a contra-cultura do materialismo e do hiperconsumismo, baseada na ideologia envernizada e precária da avidez insaciável.
Depois fizeram da competição que leva ao sucesso a qualquer preço o único objetivo aceitável de uma vida, de uma carreira.
Quem não enquadrava nesta ideologia individualista bandoleira era chamado de loser. Um perdedor. Não por ter sido derrotado, mas sim por não ter vontade de subir a escada da ascenção vertiginosa para ter bens materiais supérfluos que não o satisfazem.
Depois venderam a ideia que todos os cidadãos partiam em pé de igualdade. Que todos podiam e tinham de enriquecer-se tanto quanto os mi/bilionários que estavam acima  e de cujo super-enriquecimento o dos pobre-coitados dependia.
(Como aquele conto do vigário que o Delfin Neto passou no povo brasileiro na década de 70, do tal bolo que tinha de crescer para ser dividido. Bolo do qual a grande maioria do Brasil (oprimida pela ditadura em que estava atolada) nem sentiu o cheiro quando estava assado, quem dirá provar um pedaço...).
O problema nesta equação maquiavélica é que o princípio básico do neoliberalismo é redistribuir a riqueza bem acima do patamar social de quem bota a mão na massa para produzi-la.
Portanto, a distância entre a diretriz de como o cidadão deveria viver e como ele conseguia sobreviver era imensa. Foi só aumentando com o consumo sem freios.
O indivíduo incauto, de olho no sucesso falso do possuir, e não no de ser algo que valha, caiu na armadilha do poder de compra virtual de prestações a longo prazo e de cartões de crédito além da quantia à qual deveria estar/ser limitado...
E foi, e é, aí, que a porca torce o rabo e o indivíduo, sozinho ou com a família, vai parar no buraco.

Aí começou a degringolada.
O homem e a mulher que estavam a anos luz do American Dream com o qual lhes acenavam lá do alto, começaram a contrair dívida para viver como os ricos cuja riqueza almejavam - sem dar-se conta que não estavam nem nos primeiros degraus da escada que levava à parte mais elevada. Só a seguravam, embaixo, para dar estabilidade aos lá de cima para que galgassem cada vez mais alto.
O desemprego, o fechamento de escolas públicas que dificultavam a escolarização dos filhos a quem desejavam o futuro melhor que não alcançavam, a consciência inexorável que a indigência em vez de diminuir só aumentava, foi tudo isto acumulado que fez com que os "sonhadores" caíssem na real. 
Mas a sacolejada brutal foi a crise residencial de 2008. Quando dezenas de milhares de famílias ficaram aos Deus dará. Aí a classe média resolveu encarar o que, para ela, é a fonte do mal.

Será?
Talvez o problema seja que tanto na nossa América quanto na África, Europa, Ásia, enfim, em todo lugar em que a cobiça reina, que o vil-metal governa e que os valores foram deturpados, os 1% de super-ricos vivem em um mundo à parte. Vedado ao comum dos mortais cuja labuta permite que vivam como nababos.
Contudo, a indigência é uma doença erradicável.
O neoliberalismo pode ser apenas seu agente. E a crise financeira só o sintoma que fez com que o mal viesse à tona.
Pois uma conjetura pensada parece óbvia. O vírus é a indiferença dos 1 aos 10% cuja ganância é um poço sem fundo e a cegueira em relação ao que não faz parte de seu "mundo" é patente.
O antídoto deste vírus é a consciência. A reabilitação dos reais valores humanos. Valores nos quais o indivíduo vale pelo que é e não pelo que possui e pelo quanto tem no banco.
É um sonho?

PS. O último filme do cineasa francês Philippe Lioret Toutes nos envies - Todas as nossas vontades, retrata bem este processo de crédito que devora a economia familiar. Recomendo.


Na Inglaterra, o movimento dos Indignados recebeu uma informação esta semana que funcionou como uma lenha sequíssima posta no fogo de sua raiva: Nos últimos anos, enquanto a remuneração do funcionário médio seguiu a inflação com dificuldade, a elite de dirigentes de mega-empresas teve um aumento de 49% de salário.
Só para dar água na boca, eis os salários mais altos da Grã-Bretanha, em libra: Mick Davis (Xstrata) £18.426.105; Bart Becht (Reckitt Benkiser) £17.879.000; Michael Spencer (ICAP) £13.419.619; Sir Terry Leahy(Tesco) £12.038.303; Tom Albanese (Rio Tinto) £11.623.162; Sir Martin Sorrell (WPP Group) £8.949.985; Todd Kozel (Gulf Keystone Petroleum) £8.913.223; Don Robert (Experian) £8.601.984; Edward Bonham Carter (Jupiter Fund Management) £8.003.641; Dame Marjorie Scardino (Pearson) £8.003.641.


Fadwa Barghouti em seu escritório, em Ramallah, com a foto do marido, Marwan, ao fundo, declarou esta semana o que todos sabem: "Israel tem de soltar o meu marido para chegar à paz."
É a opinião unânime de ambos os lados. Marwan Barghouti, primo de Mustafá - outro expoente intelectual do Fatah (1) - está preso desde 2002. Está com 53 anos. Ele é uma das poucas figuras respeitadas por palestinos de todas as tendências políticas e ideológicas. É peça fundamental para o sucesso de um projeto de reconciliação entre o Fatah e o Hamas, e uma consequente negociação de paz durável.
Justiça seja feita ao Hamas, Marwan Barghouti estava incluído na lista de prisioneiros que Israel devia libertar.
O nome dele foi vetado em Tel Aviv, por aqueles que têm interesse em que o conflito seja perpetuado até a Cisjordânia for totalmente ocupada, de fato; até que os palestinos que sobreviverem à limpeza étnica na Cisjordânia vivam enjaulados, como em Gaza.
Aliás, o ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, provou, uma vez mais, que o fascimo é um mal que polui o cérebro. O Haaretz, jornal moderado de Tel Aviv, publicou no dia 28 que Lieberman, que fala em voz alta o que Netanyahu cochicha em palácio, que Mahmud Abbas tem de ser removido de seu cargo.
Por quê?
Um líder palestino que mobiliza seus compatriotas e o mundo inteiro sem violência, em favor do direito de ter um estado, por vias oficiais, representa perigo para Israel, como?
Para Israel, não.
Para o governo de extrema direita que os dois homens encarnam.    


Neste sábado, após o Hamas concordar com a manutenção da trégua, os israelenses mataram cinco ativistas-militares em Gaza, seus companheiros retaliaram lançando foguetes nas imediações da Faixa, feriram um israelense, que morreu horas mais tarde, e foi só o que a IDF queria para bombardear, mais uma vez, durante a noite, os civis que acordaram assustados e os demais feridos transportados às pressas ao posto de saúde de precário. Os outros quatro, nem acordaram. 
Para entender o extremismo político no qual Israel vem atolando nos últimos anos, basta saber quem lidera o partido “moderado” Kadima, que é a única “oposição” com volume de votos suficientes para participar da disputa eleitoral.
É Tzipi Livni, a mesma advogada que rejeita o Direito quando este não serve seus objetivos e que dirigia Israel em 2008, quando autorizou o bombardeio da Faixa de Gaza, e que por isto corre risco de processos internacionais por crime contra a humanidade.
Na semana passada vestiu camisa de democrata criticando o acordo de troca de prisioneiros que Netanyahu fez com o Hamas, "que fortifica este partido em detrimento de negociações com o líder do Fatah, Mahmoud Abbas."
Interessante. Esta Livni é também a mesma que teve oportunidade de negociar com a Autoridade Palestina e que então exigiu o impossível desta em troca de migalhas (como atestam os Palestine Papers). Razão pela qual os diálogos não deram em nada.
Mas Livni não foi a única a criticar Netanyahu. Outro jurista, Dov Weissglas - braço-direito de Ariel Sharon, o ex-líder do Likud responsável pelo massacre de Sabrah e Shatila, da destruição de centenas de casa palestinas (daí seu apelido de buldozer), da última Intifada (ano 2000) por ter penetrado no pátio da mesquita de Jerusalém com dezenas de soldados armados, e que se encontra em estado de coma desde 2006 - também criticou o Primeiro Ministro por negociar com o Hamas em detrimento da Autoridade Palestina.
"A política do governo atual de enfraquecer a Autoridade Palestina é estúpida e perigosa... Sei dos esforços que o Sr. Abbas e o Sr. Fayad fizeram... A atual estabilidade na Cisjordânia é como uma folha, basta um sopro para que voe."       

Na troca de prisioneiros entre Israel e o Hamas, negociação em que o Novo Egito teve um papel crucial, 25 prisioneiros egípcios também saíram de trás das grades e voltaram para casa em troca de um espião israelense, Ilan Grapel, preso no Cairo no dia 12 de junho deste ano.
Portanto, 25 por 1, é o valor de um cidadão egípcio em relação a um cidadão israelense.
41 vezes mais do que vale um cidadão palestino.



As eleições na Tunísia não foram uma surpresa. Nem no resultado nem na organização democrática, embora os votos, julgados exagerados, no partido islâmico tenham levado centenas de jovens a manifestar dúvidas quanto à não-fraude fora da capital e das cidades principais.
Os votos dos expatriados laicos no Partido Democrata não bastaram contra os muitos emigrantes que na Europa viabilizaram a liderança do partido religioso Ennahda - Renascimento, chefiado por Rached Ghannhouchi.
O vencedor do páreo eleitoral é formado em filosofia na Universidade de Damasco e um homem de ideias islamitas ditas moderadas, com uma longa carreira de oposição a Ben Ali na bagagem. Por isto viveu refugiado em Londres durante os últimos 20 anos e foi um dos primeiros a retornar à Tunísia quando a revolução ficou clara.
Dizem que durante o período de exílio converteu-se à democracia e à igualdade de sexo... Prometeu que o estatuto da mulher não será modificado. Porém, em um país em que o véu foi banido da cabeça das mulheres há décadas e as cidadãs de Tunis se orgulham em ostentar suas madeixas descobertas, as filhas de Ghannouchi ostentam o niqab - nome originário da palavra árabe hajaba, que significa "esconder do olhar" (foto acima).
Apesar de ter conquistado a maioria no Congresso, Ennahda não poderá governar sozinho e querendo ou não terá de respeitar a vontade de Tunis, que não quer perder sua identidade secular e ver Ghannouchi revelar-se uma cópia de Khomeini e a Tunísia transformar-se em um Irã bis governado pela charia (lei islâmica).
No movimento social e no contexto econômico em que o país se encontra, a moderação é o único caminho viável para qualquer político responsável.



Centenas de yemenitas, irmã, filhas, mães de família,  ocuparam o centro de Saana esta semana e confirmaram o papel importante que estão representando na batalha de protestos contra o ditador Ali Abdullah Saleh. Desde janeiro que as passeatas na capital são diárias e a repressão já causou enormes danos.
As mulheres tiraram o makrama- a capa negra com a qual se cobrem da cabeça aos pés - e fizeram uma fogueira de niqab.
Enquanto o país está mergulhado em uma revolta cuja intensidade aumenta sem parar, o "presidente" Saleh não cede em nada. Sabe que os EUA o protegem por causa da ameaça do al-Qaeda e aproveita o caos em que o país está para proteger seus 30 anos de autoritarismo.
É verdade que o grupo terrorista já tomou posse de várias cidades litorâneas no sul e acabou de matar o chefe do Serviço de Segurança do Yêmen, em um atentado.
Mas é também verdade que antes da revolta prolongar-se, o grupo era marginal. Agora está se expandindo e fortalecendo suas bases.
Quanto mais tempo Saleh resistir e atacar, mais a deriva para águas turvas vai aumentar.     




Yesterday’s South African township dwellers can tell you about today’s life in the Occupied Territories... More than an emergency is needed to get to a hospital; less than a crime earns a trip to jail... If apartheid ended, so can the occupation. But the moral force and international pressure will have to be just as determined. The current divestment effort is the first, though certainly not the only, necessary move in that direction.”
Arcebispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz em 1984 pelo trabalho contra o apartheid na África do Sul.

 Militarização de Israel e os shiministin


Lista de produtos das colônias a serem boicotados: http://peacenow.org.il/eng/content/boycott-list-products-settlements ;
Free Gaza Movement: http://www.freegaza.org/;



domingo, 23 de outubro de 2011

Banalização de execução sumária

I and the public know; What all shcoolchildren learn; Those to whom evil is done; Do evil in return.
Eu e o público sabemos; O que todos os meninos aprendem; Aqueles que são maltratados; Por seu lado maltratam.
Esta é uma estrofe célebre de Wystan Hugh Auden. Genro de Thoman Mann e um dos maiores intelectuais britânicos do século passado.
WH Auden, cristão confesso, disse também que Todos estamos na Terra para ajudar os outros. O que não entendo é para quê estão os outros.
Na semana passada (como tantas outras) os Todos continuavam Indignados de Singapura a Nova Iorque, mas os Outros levantaram a voz, e às vezes, armas.
A execução de Gaddafi só é surpresa (?) para a ONU.
A cabeça a prêmio não precisava as condições de captura, se algemado ou em imagem, mas a expectativa de execução era quase clara.
O choque das imagens, a Rússia botou a boca no trombone e a ONU resolveu pedir contas do assassinato. Mas com que moral?
Só neste ano, deixou os EUA executarem sumariamente Osama Bin Laden e seu próprio cidadão Anwar al-Awlaki com o filho de 16 anos, sem questionarem nada.
Neste contexto de impunidade do "líder das nações livres", como fazer os rebeldes líbios engolirem lição de moral?
Estas execuções fazem o mundo "civilizado" regredir moralmente à Idade Média, ao obscurantismo.
E as nações árabes que emergem à democracia têm em Washington um péssimo exemplo.
Sem punir os Estados Unidos na Háguia, vai ser quase impossível punir os rebeldes da Líbia por crime semelhante.
A não ser que a OTAN esteja disposta a atolar, cada vez mais, no solo enlameado do país inteiro, o pé esquerdo com que entrou nos ares tripolitanos.
Gaddafi é morto. E agora, Jalil? E agora, África?
A queda do ditador da Líbia causa satisfação na América e na Europa. Os demais ditadores árabes e a África estão tensos, apesar de terem costas quentes.
Ele não era o único déspota do continente, mas era o único que não tinha rabo preso a nenhuma potência estrangeira. Daí a rapidez com que estas “socorreram” os rebeldes, os armaram e depois bombardearam de cima para ter certeza que Gaddafi não se safaria e que os próximos líderes lhes abririam as portas econômico-financeiras.
Os demais ditadores africanos têm costas quentes, mas talvez nem tanto.
Mesmo protegidos militarmente pelos Estados Unidos em nome da “guerra contra o terror”, e pela China e Índia que não deixar ninguém matar a galinha de ovos de ouro fazendo revoluções, a grande maioria do povo não beneficia dos investimentos que entram no país ou já vão direto para contas clandestinas no exterior. Por isto e por viver em um mundo em que as distâncias encurtaram, a insatisfação, cedo ou tarde, vai chegar aos países mais improváveis.
Quem sabe até na Somália.

The Death of Gaddafi: The Big Picture

Quanto ao futuro da Líbia, ouve-se que a paz momentânea pode ser guerra civil proximamente.
Gaddafi foi para Sirte sabendo que não sairia de lá vivo. Queria morrer junto de sua tribo e transformar-se em mártir para os humildes.
Morrer isolado em palácio, é uma coisa.
Morrer rodeado na cidade natal é outra, com sentido. 
Daí a pressa da ONU em prometer investigação sobre os crimes de guerra cometidos por ambos os lados.
Há semanas que os rumores na Líbia são de que estava condenada a continuar a novela negra que começou no Iraque em 2003.
A queda de Gaddafi é um triunfo, mas a execução é uma derrota flagrante.
Mostra o quanto a autoridade do NTC (Conselho Nacional Transitório) junto aos grupos rebeldes é frágil. E quão aleatória será a posição destes homens unidos pelo ódio de Gaddafi e separados, quem sabe, por ambições de poder tribal ou/e pessoal.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Já dizia Camões. Vide a foto acima, do ano passado.
Uma coisa é certa. O conflito armado não terminou com a execução de Gaddafi. É quase certo que rixas entre prós e contras e contras e contras vão soltar faíscas em algumas partes.
Resta torcer para que as faíscas não provoquem incêndio nacional e que o NTC consiga controlar o que hoje parece dificilmente controlável.
Alguém na Líbia disse que eles podem inspirar-se no processo de reconciliação da África do Sul, exportado com sucesso para Ruanda, Libéria e outros países, mas tem um porém... O programa inaugurado pelo bispo Desmond Dutu é fundado na fé cristã da confissão do pecado e do perdão. Não sei se funcionaria calcado em outra religião. Quem viver verá.
A OTAN prometeu terminar a “campanha da Líbia” no dia 31 de outubro, mas não falou quando abandonará o navio nas mãos de tripulação e capitães nativos.

Nos Estados Unidos, França, Inglaterra,... as empresas que ainda não estão com caixeiros viajantes postados há meses em Benghazi, para abocanhar os espólios milionários da guerra que seus países patrocinaram, estão sendo incitadas vivamente a voarem já! A fim de participarem da festa econômica e deixarem os empresários locais a ver navios, como em Bagdá oito anos atrás.
Boa sorte para a Líbia e para os líbios! Com votos de que o país não protagonize o Cine-catástrofe-realidade: Iraque Bis.

RT: Que direito a OTAN tem de executar Gaddafi?

Duas “revoluções” com duas caras, poderia ter sido o título de um artigo comparativo entre o processo de “libertação” da Líbia e da Tunísia.
Porém, como nos últimos meses já falei bastante sobre o caminho errado tomado desde o início na Líbia, prefiro dar uma palavrinha sobre o país em que o povo venceu na mais perfeita paz.
Na sexta-feira almocei com Jamel, um tunisiano que faz parte da elite pensante e ativa que reside fora.
A falangeta de seu polegar estava curiosamente manchada de tinta preta e ele disse, com orgulho da conquista de um direito universal nascente, que tinha acabado de votar no Consulado para a escolha do Conselho que comporá a iminente Assembléia Constituinte.
ESclareceu que a tinta preta é para evitar fraude. As eleições no exterior duram dois dias e a tinta é impossível de ser apagada em menos de três. O sistema é infalível.
É a primeira vez que ele votava (tem 39 anos).
Não que o deposto Zine El Abidine Ben Ali tenha presidido o país de 1987 a 2011 sem organizar sufrágios, é que era eleito com mais de 90% de votos, fraudados. Os funcionários públicos, por exemplo, recebiam o envelope com a cédula, única, que depositavam na urna e iam ruminando a frustração de volta ao lar, seguro, graças à cumplicidade a que eram obrigados.
Dez meses após a queda de Ben Ali, tunisianos bem sucedidos em outras paragens retornaram ao país para participar do processo de democratização e oitenta partidos foram criados.
Jamel, como os tunisianos bem pensantes e laicos, votou na lista de personalidades que propõem um esboço de constituição que será submetida ao escrutínio público na internet para ser melhorada conforme a expectativa popular.
Dentro do país, os cidadãos que tomaram seu destino em mãos votam neste domingo.
Revolução popular é isto. É o povo unido contra um sistema apodrecido e que deixa a Justiça punir os criminosos, de colarinho branco e sem colarinho.

Após a primeira leva de troca de prisioneiros no dia 18, negociada entre Israel e o Hamas, e a acolhida de herói que tiveram alguns militantes do Hamas responsáveis por crimes de sangue, me perguntaram se acho isto moral e se não há risco que estes voltem aos atentados.
Começando pela segunda pergunta, as estatísticas que Israel mantém desde que procede a estas trocas de prisioneiros mostram que apenas 15% dos libertados retomaram atividades militares.
O risco hoje é menor ainda, pois na visão destes militantes (muitos eram civis presos por nada), eles cometeram estes atos repreensíveis em situação de guerra e agiram como soldados lutando por justa causa, com comando e ações hierarquicamente determinadas e ditadas por uma vontade política clara.
A vontade explícita do Hamas, desde 2005, é de conciliação e paz, não é mais de atentado.

Nelson Mandela, um “terrorista” anos mais tarde, em vida, popularmente canonisado, durante seus primeiros quinze anos de prisão, costumava cantar a célebre balada popular irlandesa (1) composta em homenagem a Kevin Barry, dando ênfase à frase “Fuzilem-me como um soldado irlandês, não me enforquem como um cão, pois lutei pela liberdade da Irlanda”.
Kevin Barry tinha 18 anos quando foi enforcado junto com nove companheiros do IRA, enterrados no pátio da prisão em 1920. Na libertação da Irlanda em 1934, os túmulos dos dez homens foram identificados. Em 2001 uma missa foi rezada na Catedral de Nossa Senhora e os corpos foram devidamente enterrados no cemitério de Glasnevin, em Dublin, onde um monumento foi edificado aos heróis do passado que permitiram que o presente seja desfrutado com liberdade.
Quem já esteve em Israel e, como eu, observa tudo, deve ter reparado que tem muitas ruas e praças chamadas Shlomo Ben Yosef.
O que valeu tanta homenagem a este membro do controvertido partido sionista revisionista Irgun?
Em 1938, um ano depois de ter emigrado para a Palestina, ele fuzilou um ônibus cheio de nativos com a intenção de matar todos os palestinos que conseguisse.
Ben Yosef foi julgado pelas autoridades britânicas, que então ocupavam a região, e foi condenado a morte pelo crime premeditado.
Para a  grande maioria dos israelenses, este homem movido pelo ódio racista é louvável.

Em 1948, Albert Einstein junto com a filósofa Hannah Arendt e outros intelectuais judeus da época, enviaram ao New York Times uma carta aberta (2) condenando a visita aos Estados Unidos de Menachem Begin. Este era líder do Tnuat Haherut, partido cuja organização, métodos, filosofia política e social se assemelhavam à dos fascistas, segundo os assinantes da missiva.
Esta mostra a clarividência destes intelectuais encabeçados por Einstein a Arendt. Viram nesta visita a vontade política estadunidense de apoiar este partido na Nação recém-criada, contra as ideais de Ben Gurion, mais abertas.
A carta mostrou também que a comunidade judia estava dividida, mas não evitou a ascensão meteórica de Begin.
Embora tivesse participado e dirigido vários massacres de palestinos que resultaram na Naqba (blog do 15/05/11), - inclusive do vilarejo vizinho de Jerusalém, Deir Yassin, em que o genocídio dos palestinos deixou traumatizados os soldados ingleses que chegavam sempre após o fato consumado (algumas raras fotos, como as de acima, atestam a história) - co-ganhou o Prêmio Nobel com Anwar al-Sadat em 1979 por assinarem o Tratato de Paz que seguiu a Guerra dos Seis dias.
Assinatura que não impediu Menachen Begin, entre outros atos, de bombardear uma "usina nuclear" no Iraque em 1982; de invadir o Líbano, dando início à “guerra” que culminou com o massacre dos palestinos nos campos de refugiados de Sabrah e Shatila; e de começar o processo de colonização em Cisjordânia e em Gaza.
Em 1983 retirou-se da vida pública e em 2005 foi eleito por seus compatriotas uma das cinco figuras mais importantes de Israel de todos os tempos.
O que prova a teoria do próprio Einstein. Da relatividade.

A lista de “terroristas” convertidos em “heróis” é longa. 
Uns têm glória merecida. Outros menos.
Mas é raríssimo que as pessoas em nome de quem o atos de violência são cometidos questionem o mérito destes indivíduos.
Eu sou e serei sempre contra a solução armada, pois sangue deixa mancha muitas vezes indeléveis e outras marcas dificílimas de tirar com meios brandos.
Quanto à questão moral que alguns leitores colocaram...
A primeira moral da estória é que a história não tem moral.
A segunda é que a vida mostra que pessoas intrinsecamente morais em toda e qualquer circunstância de estres, pressão, dor física ou psicológica extremas, são espécie rara.
A terceira é que sendo cristã - dos três primeiros séculos em que o cristianismo era calcado na tolerância e engajado em princípios irrepreensíveis - acho que todo mundo merece uma segunda chance.
Eu, prefiro dar a outra face e levar mais uma bofetada encarando o meu agressor do que revidar ou pôr o rabo entre as pernas e seguir adiante, de cabeça baixa, com medo da sombra.
E como todos os israelenses ativistas de Direitos Humanos aprovam a troca de prisioneiros (blog anterior) e querem que os outros seis mil palestinos sejam libertados o quanto antes, quem sou eu para emitir opinião sobre um drama do qual sou espectadora e não participante?
Além disso, o risco é relativamente proporcional à vontade de provocação de Binyamin Netanyahu e de seus planos.

Wag the dog é uma expressão anglófona imortalizada no filme homônimo de Barry Levinson, com Robert de Niro e Dustin Hoffman.
Significa dar predominância de algo irrelevante sobre um acontecimento de grande importância.
Barack Obama, coitado, na semana passada, sem solução para o movimento incontrolável de Occupy Wall Street, resolveu wag the dog para ver se as coisas acalmam.
Primeiro forneceu ao público um inimigo comum. Um complô irano-mexicano para matar o embaixador estadunidense na Arábia Saudita em solo estadunidense.
Depois foi a lenga-lenga do papel catalisador do Irã nos conflitos árabes.
E por último, mas não menos importante, declarou que os Estados Unidos retirará do Iraque seus últimos 39.000 soldados até o dia 31 de dezembro deste ano.
Desde 2003, mais de 4.400 cidadãos dos EUA morreram na ocupação do Iraque.
Segundo uma agência de pesquisa britânica, cerca de um milhão de iraquianos morreram no mesmo período em consequência da guerra e da ocupação.


No Yêmen, os protestos não arrefecem e a repressão prossegue.
Ali Abdullah Saleh quer garantias,
antes de abdicar ao absolutismo de seus 33 anos de presidência  



 
Na Síria,
a palavra de ordem não muda: Assad, reforma, ou fora!
A despeito das  passeatas de simpatizantes do presidente em Aleppo e Damasco.


A título de informação, o Brasil finalmente aderiu, oficialmente, à ocupação injusta da Palestina abrindo uma representação nacional do Movimento Brasileiro BDS (Boycott, Disinvestiment, Sanctions) contra Israel. O evento aconteceu na USP na semana passada.
Agora os nossos compatriotas que quiserem, poderão participar do Movimento e pressionar o governo da Dilma para que não permita que Israel use MADE IN BRAZIL para produzir e exportar seus produtos que vêm sendo boicotados no mundo inteiro.
Temos de ficar atentos para que o lobby sionista não transforme São Paulo em Nova Iorque e Brasília em Washington.
Nós somos brasileiros, defensores dos fracos e dos oprimidos; ou isto é ideal ultrapassado nas novas gerações?
"Palestine is the cement that holds the Arab world together, or it is the explosive that blows it apart."
Yasser Arafat
Israel: Estado Militar

1. Balada Kevin Barry: http://youtu.be/ehWfKQRFwWQ; letra: http://celtic-lyrics.com/forum/index.php?autocom=tclc&code=lyrics&id=283.
2. Carta de Einstein enviada ao NY Times: http://www.physics.harvard.edu/~wilson/NYTimes1948.html
Lista de produtos das colônias a serem boicotados: http://peacenow.org.il/eng/content/boycott-list-products-settlements;
Free Gaza Movement: http://www.freegaza.org/;

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Emancipação, repressão, e quem sabe, a gota d'água


Com todo aparato repressivo e figura autoritária emblemática, Muammar Kadhafi em seu Reino do Silêncio, como a Líbia é chamada, mesmo recorrendo à força máxima está penando para guardar sua seara na impunidade.
Tudo começou em Trípoli com o baixo-assinado em que 213 personalidades de meios profissionais variados exigiam o fim de seus 41 anos de “reinado” e denunciavam os males que vem infligindo à sociedade. Enquanto isto no norte do país, em Benghazi, começava a passeata anual em memória de um assassinato de presos que marcou a cidade. Virou uma manifestação reprimida com a violência própria a Kadhafi.
Benghazi é longe de Trípoli e demorou uma semana para as ruas da capital se encherem de jovens gritando Kefaya! sendo recebidos a fogo pelo forte aparato policial que tinha sido dobrado. Mas desta vez condenou-se a violência, mas ninguém ousou falar em derrubar Kadhafi. Todos sabem do que ele é capaz. Kadhafi não é o fraco Ben Ali, nem o venal Mubarak, nem um sheik bilionário. Kadhafi conquistou o poder aos 27 anos liderando uma revolta militar. Com ele não é questão só de ambição financeira desmesurada ou sede de poder insaciável. Sua divisa é a dos Romanos: ordine; a ordem à qual se sacrifica tudo, começando pela liberdade de palavra. Quem conhece Kadhafi sabe que governa a Líbia como se fosse a sua casa. Age como um padrasto impiedoso que não recua diante de nada para proteger seus filhos em detrimento dos enteados e impor suas leis e suas vontades. E ninguém "paga" seu salário. Ninguém "patrocina" suas forças armadas. Kadhafi é autônomo. Tem certeza de que não precisa de ninguém nem de nada. Acima dele, só Allah. É por isto que se deu ao direito de atacar os manifestantes com todas as sua forças armadas. E assim começou a história de um massacre anunciado. Quanto tempo vai durar, só Allah sabe. Se Kadhafi vai conseguir sair ileso desta guerra contra seu povo, é pouco provável.

No Bahein, país de 750m² compostos de trinta ilhas vizinhas do Qatar, em resposta à morte de dois afiliados, o principal partido xiita al-Wefaq suspendeu sua participação no governo e em seguida as ruas de Manama foram invadidas de homens e mulheres (estas, de hijab preto) exigindo a renúncia do Sheik Khalifa Bin Salman al-Khalifa (tio do rei e primeiro ministro desde 1971), a libertação dos prisioneiros religiosos e uma nova constituição.
A ironia é ser justamente no Bahein, que tem o maior índice de liberdade política e social do Golfo, que a revolta mude de cara. Aqui ela tem a cara religiosa que a imprensa sensacionalista pintava (pinta?) das outras capitais. Os xiitas são maioria no país em que o milhão e trezentos mil habitantes são governados pelos Khalifa, a família real sunita que ocupa o trono há dois séculos.
A relação entre os xiitas e os sunitas lembra a discórdia sangrenta entre os protestantes e os católicos nos séculos XVI e XVII na Europa. Lutero x Papa. Alih x Abu-Bakr ou Abu-Bakr x Alih; conforme for o seu lado.
Eu disse que a cara é religiosa, mas é só um lado e nem este lado tem a feição do al-Qaida. Pode tirar o peso da alma. Esta face é a dos velhos, arcaica. Os jovens gritam Não aos xiitas! Não aos sunitas! Somos todos bareinitas! e mostram a outra face. A da emancipação laica.

Em Ramallah, os jovens também continuam a reivindicar a união do Fatah e do Hamas, e a demissão do presidente Mahmoud Abbas e do primeiro ministro Salam Fayadd. Desacreditados pelas revelações dos Palestine Papers e fragilizados pela relação que tinham com Hosni Mubarak.

No Yêmen, embora as ruas de Sana'a estejam menos cheias do que nos dias passados, após os tiros trocados, teme-se que o os chefes tribais aproveitem para invadir a capital com todo seu arsenal. Eu continuo achando (ou esperando) que não passa de ameaça. A não ser que tenham planejado um suicídio coletivo diante do palácio de Ali Abdullah Saleh para sensibilizá-lo.

. Os “novos” dirigentes da Tunísia, do Egito e dos países que seguirão seus passos, terão de lidar com posições internacionais impopulares tomadas pelo antigo regime ditadas por interesses estrangeiros. A primeira é o bloqueio da Faixa de Gaza; a segunda é a situação do Iraque, a terceira é a hostilidade bélica dirigida ao Irã, e a última, ligada à primeira, à mediação desacreditada do conflito Israelo-palestino.
Estas quatro reclamações são ouvidas em todos os países árabes, já ou ainda não inflamados.

Onda de Liberdade x Rede de repressão armadaNão é por nada que na Tunísia as potências ocidentais repudiaram Ben Ali de imediato e muitos hesitaram a abandonar o fiel aliado Hosni Mubarak. É pela posição estratégica do Egito entre a África e a Ásia e por ser o farol sócio-político da Liga Árabe. Como o Brasil em nossas paragens.
No século XVIII exerceu profunda influência social, política e cultural na modernização da região e entre 1952 e 1970 se destacou dos vizinhos graças ao seu carismático presidente Gamal Abdel Nasser cuja personalidade forte e inteligência aguçada valeram ao país uma independência pragmática e liderança incontestável. Após a morte de Nasser o Egito perdeu a aura visionária, mas conservou bastante influência durante a gestão de Anuar Sadat e mais tarde, com Hosni Mubarak, apesar do enfraquecimento pessoal deste devido à subserviência aos EUA.
Até 2010 foi um exemplo de autoritarismo e de repressão disfarçada, como no Brasil dos militares. Sua transformação em democracia liberal como a da Turquia, teria (terá?) portanto graves consequências sócio-políticas, pois o quadro é mais ou menos o mesmo na região por todos os lados.
O crescimento econômico razoável nos estados não-petroleiros não gerou empregos e sim desempregados, a administração e a corrupção ficaram incontroláveis, as famílias estão menos sólidas do que no passado, o sistema educativo se encontra em processo de decomposição rápida, a realização profissional virou um sonho dificilmente realizável, e sobretudo, o despotismo, agravado por um nepotismo declarado, tem ficado cada vez mais claro e insuportável.
Com a abertura no Egito, o efeito dominó é inevitável.
A revolta na Líbia mostra que nem figuras emblemáticas como o terrível Kadhafi estão imunes à emancipação popular. Neste caso, até eu fiquei surpreendida de ver estes líbios amáveis mas acostumados a andar de cabeça baixa, levantá-la.
Se, se, se conseguirem derrubar Kadhafi, nenhum outro ditador estará imune ao levante popular. Mas o que realça nestes movimentos de emancipação, além do espírito secular que retrata, é a uniformidade do sistema repressivo vigente nos regimes árabes.
Como por exemplo, a repetida armação dos “contra” nas ruas de Sana’a, Alger, Amman, Ramallah, Bahein a fim de facilitar a ação militar e “desaparecer” com as figuras mais destacadas, como aconteceu no Cairo. Isto porque, como a Operação Condor da CIA formou a rede de repressão e cavou porões na América do Sul começando no Brasil em 1964, os países árabes também têm uma rede de “Informação” coesa e implacável.
Faz anos que os Serviços Secretos trocam figurinhas sobre técnicas de tortura sofisticadas aprendidas com os colonizadores ocidentais “civilizados”. Foi em Alger, ou melhor, na Delegacia de Chateauneuf, como o DOI CODI local é chamado, que os egípcios aprenderam a usar eletricidade nos órgãos genitais dos presos políticos. Aliás, quando falei de tortura semanas atrás, não mencionei a maneira dos argelinos desvirtuarem o ouro azul – são especialistas em uma tortura que consiste em encher o torturado de água até ele rebentar.
Em 1994, os argelinos foram à Síria saber como o então presidente Hafez El-Assad tinha lidado com o levante muçulmano de 1982 em Hama e aprenderam que bastou explodir a cidade e deixar os cadáveres de inocentes e culpados expostos na praça. Como os portugueses fizeram com Tiradentes durante a nossa Inconfidência de Minas Gerais.
Não há prescrição histórica para a barbárie?
Em dezembro foram os tunisianos que visitaram os argelinos para se atualizarem na arte de torturar. Ainda não se sabe se e quando serão praticadas no período “pós-revolucionário”.
Trocando em miúdos, o que está acontecendo nos países árabes foi o que aconteceu na América do Sul na década de 80 – aquela corrente de Basta! contra a Operação Condor e os milhares de desaparecidos e torturados nas masmorras dos nossos regimes militares.
Até ontem, até agora, nestes países em que os jovens estão dizendo Kefaya!, os dirigentes também recebiam ordens do Pentágono e os sádicos nacionais, também formados por “especialistas” ocidentais, se esqueciam dos princípios humanos básicos como no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai...
Como no nosso Cone Sul, o Oriente Médio cansou de apanhar, ser derrubado e ficar deitado. Deixou o medo de lado e resolveu se levantar.
Como no nosso Cone Sul, Washington está demorando a desencarnar. Sua reação de apoio imediato só foi dirigida ao Irã, aos jovens que saíram às ruas de Teheran e foram matracados... E repete os erros do passado intervindo justamente onde atrapalha.
Mudam-se os tempos, mas os EUA não mudam suas vontades imediatas.

Na ONU, o veto altamente inflamávelNa sequência de imobilidade geopolítica, os EUA vetaram na ONU a moção que condena a construção de novas colônias israelenses na Cisjordânia peitando os outros 14 membros do Conselho de Segurança. Nesta questão internacional também a Casa Branca continua isolada.
O argumento usado é em si um ultraje: Embora concordemos com os demais no tocante à ilegitimidade do prosseguimento das colônias, achamos desaconselhável que o Conselho tente resolver questões de fundo que dividem israelenses e palestinos.
(Vale lembrar que conforme as leis internacionais as colônias existentes já são ilegais. O que para Israel tanto faz. Assim como as 34 resoluções da ONU que desrespeita na impunidade. Se a Organização das Nações Unidas não tiver poder para fazer cumprir suas próprias leis, quem terá? Para que ela existe, de fato?)
Os delegados dos demais países membros permanentes ou transitórios do Conselho ficaram estupefatos. Alguns exprimiram sua incompreensão e raiva. Outros engoliram em seco e devem ter ido rezar para que esta servidão cega a Israel, criticada com veemência até pelas ONGs de Direitos Humanos de Tel Aviv, embora faça Benyamin Netanyahu e Avigdor Lieberman rirem e esfregarem as mãos, não termine em mais lágrimas amargas.
Pois esta nova “vitória” do lobby israelense (1) não deixa de ser uma derrota, já que terminou de converter Israel em um passivo perigoso para os EUA. Com o veto desta semana a uma posição mais moral e legal do que efetiva, Barak Obama deu as costas ao mundo, admitiu sua autonomia fictícia e arruinou grande parte do capital de simpatia internacional que ainda tinha.
Que Netanyahu e Lieberman não se iludam. Este novo sucesso lobístico é um golpe no processo de paz. Só conseguiram devolver os Estados Unidos ao isolamento em que a ocupação do Iraque os havia levado. W. Bush deve estar rolando de rir de seu sucessor que fez tantas promessas pacíficas antes de assumir o cargo carregado de compromissos intricados.
É claro que Barack Obama e Hillary Clinton estão cientes que dando carta branca a Israel para prosseguir sua ocupação ilegal da Cisjordânia provocam um desastre político e humanitário (2) que inviabiliza qualquer passo da Autoridade Palestina em direção à mesa de negociação.
É claro que Obama e Clinton sabem que sua relação com os países árabes desmoronou na hora que apoiaram Israel em um assunto inapoiável.
Mas por incrível que pareça o veto foi pensado, calculado, e Obama mais uma vez pesou errado os seus interesses político-partidários. E antes de votar, teve a ousadia de ligar para Ramallah na véspera para forçar Mahmoud Abbas a impedir que a Resolução fosse votada. A pressão telefônica durou 50 minutos. Surrealista ou amoral?
A ONG israelense de Direitos Humanos Gush Shalom já declarou que a AIPAC (3) não é um lobby israelense, mas sim um lobby anti-israelense “que acumula um poder desmesurado que impede que Israel corrija seus graves erros políticos e leva nosso país a uma política auto-destrutiva que compromete nosso futuro ao negar a Israel a menor chance de alcançar a paz com os vizinhos e ao empurrar o país em direção ao abismo da ocupação, colonização e do racismo.”
Gush Shalom e as outras ONGs de Direitos Humanos têm razão. A notícia pode inflamar as passeatas que se multiplicam nos países árabes e teme-se que daqui a pouco bandeiras estadunidenses voltem a ser queimadas.
O argumento usado pelos EUA de que o assunto da Palestina não é da alçada do Conselho de Segurança da ONU é o mesmo que usam sempre para bloquear sistematicamente qualquer ação internacional na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
Vale lembrar que o Conselho de Segurança é composto de cinco membros permanentes – China, Inglaterra, França, EUA e Rússia – e dez com mandatos anuais. A ONU só pode agir quando a decisão é aprovada por unanimidade.
Faz anos que o Brasil pleiteia um assento permanente no Conselho, mas a porta é bloqueada. Em 2011, o Brasil faz parte dos dez membros não-permanentes que têm a oportunidade de tentar mudar algo.
Já que o nosso país teve a coragem política e a ética de reconhecer o Estado da Palestina com as fronteiras de 1967, por que não aproveitar 2011 para apresentar ao Conselho uma proposta de admissão da Palestina na ONU como Estado?
Pode até não dar em nada. Mas vai mostrar que ao contrário dos EUA e dos outros quatro membros do BRIC “candidatos” à hegemonia político-econômica mundial, o Brasil tem visão internacional a curto, médio e longo prazo. E de lambuja, sabe liderar.

The Israeli Lobby

Global BDS Movement

BDS Flash Mob
Global BDS Movement: http://www.bdsmovement.net/

domingo, 23 de janeiro de 2011

Onda revolucionária nos países árabes?



Alguns leitores deste blog estão curiosos em saber se vai mesmo ter uma avalancha revolucionária nos países árabes deslanchada pela revolução tunisiana, e onde está a verdade no alarde mediático.
Onde está a verdade verdadeira só o futuro sabe.
O que sei é que se dependesse só da má qualidade de vida, das baixas perspectivas de crescimento individual e da insatisfação dos jovens nos países vizinhos da Tunísia, eu diria que a bola de neve rolaria pelo menos até a Argélia. Diria também que na Tunísia o que aconteceu foi uma verdadeira revolução que trará mudança tanto política quanto ideológica concreta e que nem os fundamentalistas vão conseguir dominar quem não quer mais ser dominado; sobretudo após ouvir um tunisiano que prezo falar entusiasmado sobre o descontentamento geral e solidário (de fato, palpável) e que tendo provado o gostinho da liberdade de ação e de palavra, o povo não vai voltar ao medo que o levava à passividade.
Eu gostaria de acreditar pelo menos nas últimas linhas do último parágrafo. Vendo o arrebatamento deste e de outros tunisianos confesso que um sorriso prazeroso me veio aos lábios. Lembrei o movimento brasileiro pelas Diretas, as passeatas, a esperança de estarmos saindo das trevas e que a luz estava voltando a brilhar em todos os estados. Contudo, o Brasil tinha uma oposição organizada, com quadros políticos e intelectuais maduros, inexperientes, mas prontos para governar, e no nosso país, desde a independência, tudo acontece sem extremismo e sem trauma – os anos de ditadura são uma aberração que destoam da nossa pauta.
Na Tunísia tem um porém importantíssimo que não há como descartar: o presidente Ben Ali fugiu com o ouro do Estado e a família de sangue, mas sua família política continua lá, liderada por Mohamed Ghannouchi, com 20 anos de fidelidade ao presidente escorraçado. Para completar, o que se ouvia nos países árabes sobre a Tunísia antes da onda democrática, era que toda a população adulta trabalhava direta ou indiretamente para a polícia de Ben Ali. Ora, a polícia lá tem o peso do exército no nosso lado. Ben Ali é um ex-policial que governou com o apoio total de seus companheiros de arma que somam milhares e deixou o exército de lado – daí o apoio imediato dos soldados e da hierarquia militar ao povo revoltado. E ao fugir, Ben Ali prometeu aos seus assessores policiais imediatos que ia voltar. Promessa é dívida para os que aproveitavam do sistema e por isto o aparelho ainda não foi e só será desmontado na marra. O perigo da guerra civil ainda não foi descartado.
O outro dado importante é que a França, a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos sempre apoiaram os ditadores africanos e árabes, os quais de uma maneira ou de outra o grupo junto ou separado quase ajuda a empossar e depois sempre fecha os olhos para o autoritarismo que estes ditadores cedo ou tarde acabam instalando para ficarem.
Ben Ali é um arquétipo que realça no contexto atual, mas como ele existem presidentes, emires, sheiks e monarcas autoritários espalhados por todo o mundo árabe. Os países ocidentais influentes os deixam livres para reprimir o povo e pilhar o patrimônio nacional contanto que conservem o extremismo muçulmano bem vigiado e domado.
O que o Ocidente não vê, (como não via no nosso Cone Sul durante a guerra fria em que o mal absoluto era o comunismo do Kremlin e não Ben Laden – Bons tempos aqueles! dizem hoje em salas fechadas), é que o resultado de autoritarismo + desemprego + pobreza + corrupção desenfreada é uma bomba relógio, uma catástrofe anunciada.
A farsa do Iraque foi um desastre para o mundo árabe. Afinal, Saddam Hussein era um Pinochet em versão árabe, apenas um ditador a mais e era o único que realmente combatia Ben Laden. Hoje o Iraque também virou uma presa fácil, como os demais.
Não porque os árabes tenham todos tendência fundamentalista, dizer isto seria como afirmar que todo judeu é sionista extremista, e ambas asserções são inflamatórias e falsas. Mas sim porque a diferença entre o padrão de vida dos governantes e dos governados é grande demais para ser suportável. Em países como a Argélia, onde a riqueza do solo é parasitada por um clã político, ou em outros, por uma dinastia insaciável que se enriquece com grande evasão de divisas – o dinheiro é gasto em casa, mas muito mais fora – o ressentimento corrói até os ossos e Allah parece a única solução honrada.
No século XXI, no Ocidente o Islamismo substituiu o comunismo no consciente e no inconsciente de medo coletivo. Mas como os comunistas, os muçulmanos não comem criancinhas, e não são todos barbudos e bitolados. É claro que a falta de perspectiva e lavagem cerebral podem transformar até um jovem recém-diplomado em soldado de Ben Laden. Mas se fosse assim tão fácil e se tivesse tantos candidatos, o mundo ocidental já teria vindo abaixo, já que há 1 bilhão e 200 milhões de muçulmanos nos quatro cantos da Terra. Os judeus são 14 milhões. Os cristãos são dois bilhões.
Como os EUA sabem melhor do que ninguém que estes números não significam influência, (se significasse, a Palestina – cristã e muçulmana – já seria uma nação independente), vivem em constante estado de alerta. Por isto quem está esperando uma onda revolucionária seguida de outra democrática nos países árabes pode esperar sentado senão cansa.
Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos da América, falam e falam em ajudar a democratização e em apoiar democracias emergentes nos países árabes, mas cada vez que um presidente é eleito, governa para si e para seu clã, mais cedo do que tarde acaba corrompendo o sistema eleitoral para se perpetuar e os quatro grandes lhes dão um tapinha na mão de vez em quando enquanto seus bancos recebem o ouro roubado e as boas intenções vão por água abaixo.
Ben Ali é o padrão da hipocrisia ocidental e árabe. Até o mês passado o renegado (em sentido próprio e figurado) era recebido em todas as capitais por chefes de estado e empresários sem que ninguém questionasse sua integridade. Hoje todos o repudiam e desaprovam sua corrupção da qual beneficiavam em negócios milionários.
O poder político dos quatro grandes, sobretudo dos EUA, é tão grande por aqueles lados que mesmo estando tão apavorado quanto os vizinhos autoritários, o rei da Arábia Saudita não teve como recusar refúgio a Ben Ali. Aliás é o mesmo país que recebeu o sanguinário Idi Amin Dada em 1979.
A palavra de ordem nos palácios dos governos árabes é não desagradar os EUA, cliente petrolífero e dono de bases militares autárquicas inclusive na Arábia Saudita (onde a Meca está situada – versão muçulmana do Vaticano, sem um papa). E as bases são sólidas e estão para ficar.
Os déspotas árabes são os maiores aliados dos EUA no combate ao “terrorismo”. Aliás, Guantánamo (http://www.youtube.com/watch?v=QXlRJmpHFxA), que o candidato Barak Obama havia prometido fechar, continua “abrigando” 192 suspeitos que se não estivessem lá, também teriam sido enviados a centros de detenção “especializados” instalados em alguns países árabes.
A cumplicidade é devida a um pragmatismo imediato de temerem que os fundamentalistas ocupem seu lugar. Para agradar os EUA até deixam Israel avançar e avançar em seus projetos de ocupação e só defendem a Palestina quando são obrigados por uma insatisfação popular que os ameace. Eles agora sabem que todos os seus palácios têm telhado de vidro, embora pensassem que fosse de aço e que o ouro do petróleo fosse uma proteção inoxidável.
Por isto, pelo receio que a casa desmorone e que tenham de fugir para nunca mais voltar, (como foi o caso de Idi Amin Dada que morreu rico, mas exilado em uma mansão que virou mais uma prisão do que um oásis) por todo lado a alta de preços que está estrangulando as famílias foi subitamente gelada, a promessa é de baixa, e pelo menos pão vai encher a barriga das massas. Em tempos de crise aguda, promessas é que não faltam. 

Quanto à Tunísia, que os otimistas me perdoem, mas pela lógica da real-política, a não ser que a internet além de facilitar a comunicação tenha o poder de mudar cultura e mentalidade das classes populares, o mais provável é que, no caso de eleições presidenciais a população acabe elegendo um candidato ligado ao partido islâmico. Não por vontade individual, mas porque, que eu saiba, a oposição partidária é de fachada e o país ainda não dispõe de nenhuma liderança laica válida, já que a revolta foi espontânea, e não organizada.
O líder do partido islâmico moderado Ennahda, Rachid Ghannouchi, exilado entre Londres e Paris há mais de duas décadas, já declarou ao Der Spiegel que está preparando sua volta, mas que não deseja instalar no país um regime de partido único e nem instaurar a charia (lei islâmica). Mas sua liderança não atinge a juventude laica.
Enquanto isto, em Tunis, as prisões foram esvaziadas dos presos políticos e religiosos, a mesquita da Universidade de Tunis, de onde começou a revolta estudantil islâmica em 1981, foi reaberta na sexta-feira para um primeiro culto do qual participaram uns cinquenta estudantes, e todos os imãs tunisianos no exterior foram chamados de volta para casa.
A laicidade que é cultivada na Tunísia desde a independência da França em 1956 (as mulheres são proibidas de usar o hijab – véu – no serviço público), pode estar ameaçada e em poucos meses pode ser que as mulheres cubram a cabeça e os homens deixem crescer a barba. Mas são os tunisianos que têm de escrever sua própria história.
A notícia que tenho de última hora é que os sindicalistas, que se juntaram aos jovens no processo revolucionário, pretendem participar da reestruturação do Estado.
Quem sabe surge um líder oposicionista carismático?
Mas até as eleições democráticas muita água vai rolar. Mas o certo é que a Situação, até com ajuda ocidental velada, não poderá se reorganizar, pôr um verniz democrático na fala e na cara, e eleger seu candidato.
O processo democrático parece irreversível. Embora, para responder com honestidade as perguntas sobre os rumos da Tunísia e dos demais países árabes, seja obrigada a repetir que na verdade, fazer uma projeção definitiva do futuro laico da Tunísia nesta data não é fazer análise, é conjeturar. E não me meto nesta seara.

The Road to Guantánamo, de Michael Winterbotton: http://www.youtube.com/watch?v=JCUDFfBLRTU