domingo, 30 de janeiro de 2011

Tunísia, Egito... o fogo da liberdade se alastra



Atentados mortíferos em Moscou, Bagdá, Kandahar, o chão que treme no Líbano, na Jordânia, no Yemen com as passeatas nas ruas de Beirute, de Amman e de Sanaa..., a semana foi carregada... Culminou com dois acontecimentos geopolíticos incontornáveis: os Palestine Papers divulgados pela TV Al Jazeera e o fogo de revolta que saiu da Tunísia, saltou a Líbia e se alastrou pelo Egito, em Suez, Alexandria, Cairo até queimar o país de Abu-Simbel ao Sinai.
Os Palestine Papers serão abordados em outra oportunidade.
Hoje vou falar sobre o Egito onde Hosni Mubarak luta contra uma revolução que poria fim à sua ditadura “democrática” de 30 anos e que tiraria dos EUA um de seus aliados mais úteis no Oriente Médio.
“Poria” "tiraria" porque como se sabe, tendo de escolher entre um governante árabe que garanta a seu povo democracia, melhores condições de vida e um ditador corrupto que defenda os interesses de Israel e dê uma pseudo-segurança contra o fundamentalismo islamita, os EUA tradicionalmente optam por este último. É aquela política do façam o que eu digo e não o que eu faço. Democracia é bom, mas em casa. Para mim, liberdade, e cabresto para os demais.
Só que o problema com os ditadores é que estão muito distantes do povo, embora sua polícia (esta vestida de preto de cima abaixo) esteja por toda parte. E cedo ou tarde o eco da insatisfação popular reprimida fica alto demais para ser abafado e explode em uma onda de energia que se alastra, atualmente, pela internet, através da qual os jovens se comunicam como a minha geração batia papo nos bares.
Quem conhece o Egito sabe de suas universidades caindo aos pedaços, favelas se alastrando como praga, redes de esgoto se aproximando cada vez mais da insalubridade...
Quem já esteve no Cairo sabe do caos urbano que atola a capital, apesar de seu charme.
Parece que não tem verba para nada, mas dinheiro não falta. A corrupção parece só perder para a tecnologia que permitiu a Hosni Mubarak, em um gesto de desespero político, tirar a internet do ar esperando assim evitar a comunicação e parar as passeatas.
E resolveu falar. Tudo errado. A tensão estava em sua cara e não inspirou respeito, só raiva. Achando que se safaria com um bode expiatório que fizesse esquecer que é ele que é visado, demitiu seu ministério e cometeu um erro crasso. Nomeou como primeiro ministro o chefe de seu Serviço Secreto, o septuagenário Omar Suleiman que já sofreu três ataques cardíacos e é o seu negociador com Israel que passou meses de sua vida, se não anos, entre Jerusalém e Tel Aviv. É inacreditável. Provocou risadas entre os egípcios, pois mostrou quão escassos são seus quadros e que está cada minuto mais acuado.
O Egito está em chamas e o Cairo parece um campo de batalha. Daqui a pouco vai lembrar Bagdá, se Mubarak conseguir se proteger em uma Zona Verde e declarar o resto da cidade Vermelha. Aliás, é quase isto, segundo alguns habitantes que já estão formando milícias em seus bairros para protegê-los da pilhagem de marginais, deixados à vontade pela polícia para semear a anarquia e o caos.
E tudo começou de maneira espontânea. A fórmula foi a da Tunísia. A organização das passeatas foi feita através de Facebook, Twitter e celulares. O Cairo começou a ferver, a tensão era palpável, em Suez as armas dos beduínos substituíram os slogans dos estudantes da capital e a passeata de sexta-feira seria a gota d’água que faria naufragar Mubarak... Mas na madrugada do dia chave a internet saiu do ar. Telas escuras e silêncio total. Era como se fosse a Faixa de Gaza bombardeada quando os Israelenses bloquearam a rede de contato ou na Birmânia quando o ditador de lá, enquanto massacrava os monges, “desligou” os celulares – aliás, o governo chinês cortou há pouco o Egito de todas as comunicações de Twitter e similares... A cara da ditadura muda, mas os métodos são os mesmos em toda parte.
Para jornalista, não poder se comunicar é um pesadelo do qual só pensa em acordar. Os mais antigos na praça correm atrás do velho Telex por onde antigamente a informação circulava, mas onde encontrar uma máquina dessas em bom estado? Para transmitir algo, neste caso, só atravessando a fronteira, mas para onde? Sudão ou Líbia? Foice ou punhal?
O jeito foi esperar testemunhando o que passava.
O “velho” Mubarak está bem preparado, bem armado e parece querer resistir até não poder mais. Trinta anos no poder, um simulacro de democracia com a qual até alguns dias controlava o campo e as cidades... Ele estava tão preocupado em agradar os aliados ocidentais que não viu o tempo passar, o país naufragar, a população mudar, os camponeses deixarem de ser majoritários e seus filhos começarem a reivindicar liberdade e maiores oportunidades.
Quase dois terços dos habitantes nasceram durante o governo Mubarak e destes 50 e poucos milhões, 24 têm menos de 20 anos. Saem da escola, da faculdade, sem perspectiva, sem trabalho e com tempo de sobra para surfar na internet, informar-se e sonhar.
Os tunisianos mostraram o caminho e os jovens egípcios os seguiram sem pestanejar.
E o Egito tem um líder potencial de peso que falta à Tunísia: Mohamed ElBaradei, ex-presidente da Comissão Nuclear das Nações Unidas, e desde o fim do seu mandato diplomático, o mais forte candidato democrático à sucessão de Hosni Mubarak.
Na quinta-feira ElBaradei saiu correndo de Viena, onde reside, para o Cairo. Alguns dizem que lhe faltou faro político, pegou o bonde andando, chegou tarde.
É verdade que se o Prêmio Nobel da Paz quisesse ser o presidente da vez deveria ter pego o avião no dia em que Ben Ali foi escorraçado de Tunis para capitalizar a revolta contra os 30 anos de “reinado” de Mubarak. Mas ElBaradei não foi para o Egito atrás de cargo, segundo fala. Foi para catalisar, mostrar a cara conhecida em todos os palácios do mundo civilizado e assegurar uma transição democrática até a organização de eleições honestas em que todas as facções do país estejam representadas.
Aos 68 anos e uma carreira internacional independente de pressões e até hoje sem falha, como diz o escritor Alaa Al-Aswany, sua figura simboliza tudo pelo que as ruas estão em batalha. E o ditador de 82 anos sabe desta ameaça. ElBraradei levou um jato d’água como qualquer manifestante e depois seguiu o conselho de ficar em casa até a hora de mostrar a voz e a cara ao povo que deu ouvidos às suas palavras.
A revolta está virando revolução de hora em hora. O processo parece irreversível. Da Casa Branca Barak Obama cobrou as mudanças prometidas por Mubarak. Agora é tarde. Teria de aconselhar Mubarak a retirar-se e entregar a chave a ElBaradei para que este arrume a casa enquanto a revolta é laica... Mais uma demonstração da perigosa miopia geopolítica de Washington. Hillary Clinton, por sua vez, fez o discurso errado, ameaçando cortar a ajuda de 1.5 bilhões de dólares... Seu despreparo geopolítico é deplorável... falar em dinheiro quando a questão é de autodeterminação, liberdade... está no limite da decência diplomática. Era melhor ter ficado calada. Mesmo porque este dinheiro não era do povo que está nas ruas. Estas estão lotadas de homens e mulheres que preferem batalhar no trabalho para se alimentar e decidir seu próprio destino do que bilhões de dólares que vão parar em mãos erradas que não contribuem com nada. Depois Hillary ouviu a voz da razão e entendeu que era melhor mudar de lado e apoiar uma transição pacífica.
Esta revolta no Egito é popular. E pelo menos por enquanto é laica. Na sexta-feira as ruas se encheram depois da oração do meio-dia nas mesquitas e no domingo é a vez dos Coptas se juntarem às passeatas após a missa. Pouco se ouve, fora nos enterros, a frase corrente nos países árabes: Allah AlAkbar! (Deus é grande), os jornalistas estrangeiros são bem-vindos, não se queima bandeira americana e a palavra de ordem de muçulmanos e cristãos em uníssono é Kefaya! Basta; é quase como se o país tivesse amadurecido, se olhasse por dentro e por fora, e assumisse sua responsabilidade pela situação em que se encontra sem procurar falsos culpados.
Um colega norte-americano conjeturou sobre o cansaço da massa daqui a alguns dias e Mubarak continuar como se tivesse sido apenas uma onda que passa como no Irã no ano atrasado. Parecia mais uma esperança, o que verbalizava. O Egito não é o Irã. E para que não vire, os EUA, a França, a Inglaterra e a Alemanha têm de ficar de fora, calados publicamente (e ao telefone com Mubarak para que este limite os estragos, no país e pessoais) e deixar a água rolar sem opinar como fizeram no Irã no ano atrasado minando a revolta nacionalista contra Ahmadinejad.
Por enquanto o Exército, que beneficia de farta verba dos EUA, está relativamente quieto. Mas seu comandante, general Tantawi, é amigo pessoal de Mubarak, e pelo que consta, estava em Washington enquanto a polícia atirava no Cairo. Para quê estava lá, só dá para imaginar. Se a ordem que recebeu foi de apoiar Mubarak custe o que custar, vai ser um massacre. Se a ordem foi de aconselhar o amigo a renunciar e assegurar uma transição calma, os soldados estão prontos para acatá-la e gritar Kefaya.
Pois o que se ouve por todos os lados é uma frase simples: Só queremos a demissão de Mubarak e eleições democráticas. E nas ruas, os gritos aconselham Mubarak a pegar o avião e escapar. Para a Arábia Saudita, quem sabe?
Liberdade era o que nós brasileiros queríamos em 1994. Sem luta, sem sangue, só com o povo na rua reivindicando seus direitos inalienáveis. Nossos militares entenderam que era o fim da linha, que estava na hora de deixar os brasileiros decidirem que rumo tomar.
Se os EUA deixarem, os egípcios estão prontos para seguir nossos passos.
A sensação é de que tudo é possível. Da guerra civil, caso Mubarak se agarre ao poder com mais armas, a uma revolução em que realmente as coisas mudam. Do nada ao tudo. Tudo ou nada.

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