domingo, 23 de janeiro de 2011

Onda revolucionária nos países árabes?



Alguns leitores deste blog estão curiosos em saber se vai mesmo ter uma avalancha revolucionária nos países árabes deslanchada pela revolução tunisiana, e onde está a verdade no alarde mediático.
Onde está a verdade verdadeira só o futuro sabe.
O que sei é que se dependesse só da má qualidade de vida, das baixas perspectivas de crescimento individual e da insatisfação dos jovens nos países vizinhos da Tunísia, eu diria que a bola de neve rolaria pelo menos até a Argélia. Diria também que na Tunísia o que aconteceu foi uma verdadeira revolução que trará mudança tanto política quanto ideológica concreta e que nem os fundamentalistas vão conseguir dominar quem não quer mais ser dominado; sobretudo após ouvir um tunisiano que prezo falar entusiasmado sobre o descontentamento geral e solidário (de fato, palpável) e que tendo provado o gostinho da liberdade de ação e de palavra, o povo não vai voltar ao medo que o levava à passividade.
Eu gostaria de acreditar pelo menos nas últimas linhas do último parágrafo. Vendo o arrebatamento deste e de outros tunisianos confesso que um sorriso prazeroso me veio aos lábios. Lembrei o movimento brasileiro pelas Diretas, as passeatas, a esperança de estarmos saindo das trevas e que a luz estava voltando a brilhar em todos os estados. Contudo, o Brasil tinha uma oposição organizada, com quadros políticos e intelectuais maduros, inexperientes, mas prontos para governar, e no nosso país, desde a independência, tudo acontece sem extremismo e sem trauma – os anos de ditadura são uma aberração que destoam da nossa pauta.
Na Tunísia tem um porém importantíssimo que não há como descartar: o presidente Ben Ali fugiu com o ouro do Estado e a família de sangue, mas sua família política continua lá, liderada por Mohamed Ghannouchi, com 20 anos de fidelidade ao presidente escorraçado. Para completar, o que se ouvia nos países árabes sobre a Tunísia antes da onda democrática, era que toda a população adulta trabalhava direta ou indiretamente para a polícia de Ben Ali. Ora, a polícia lá tem o peso do exército no nosso lado. Ben Ali é um ex-policial que governou com o apoio total de seus companheiros de arma que somam milhares e deixou o exército de lado – daí o apoio imediato dos soldados e da hierarquia militar ao povo revoltado. E ao fugir, Ben Ali prometeu aos seus assessores policiais imediatos que ia voltar. Promessa é dívida para os que aproveitavam do sistema e por isto o aparelho ainda não foi e só será desmontado na marra. O perigo da guerra civil ainda não foi descartado.
O outro dado importante é que a França, a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos sempre apoiaram os ditadores africanos e árabes, os quais de uma maneira ou de outra o grupo junto ou separado quase ajuda a empossar e depois sempre fecha os olhos para o autoritarismo que estes ditadores cedo ou tarde acabam instalando para ficarem.
Ben Ali é um arquétipo que realça no contexto atual, mas como ele existem presidentes, emires, sheiks e monarcas autoritários espalhados por todo o mundo árabe. Os países ocidentais influentes os deixam livres para reprimir o povo e pilhar o patrimônio nacional contanto que conservem o extremismo muçulmano bem vigiado e domado.
O que o Ocidente não vê, (como não via no nosso Cone Sul durante a guerra fria em que o mal absoluto era o comunismo do Kremlin e não Ben Laden – Bons tempos aqueles! dizem hoje em salas fechadas), é que o resultado de autoritarismo + desemprego + pobreza + corrupção desenfreada é uma bomba relógio, uma catástrofe anunciada.
A farsa do Iraque foi um desastre para o mundo árabe. Afinal, Saddam Hussein era um Pinochet em versão árabe, apenas um ditador a mais e era o único que realmente combatia Ben Laden. Hoje o Iraque também virou uma presa fácil, como os demais.
Não porque os árabes tenham todos tendência fundamentalista, dizer isto seria como afirmar que todo judeu é sionista extremista, e ambas asserções são inflamatórias e falsas. Mas sim porque a diferença entre o padrão de vida dos governantes e dos governados é grande demais para ser suportável. Em países como a Argélia, onde a riqueza do solo é parasitada por um clã político, ou em outros, por uma dinastia insaciável que se enriquece com grande evasão de divisas – o dinheiro é gasto em casa, mas muito mais fora – o ressentimento corrói até os ossos e Allah parece a única solução honrada.
No século XXI, no Ocidente o Islamismo substituiu o comunismo no consciente e no inconsciente de medo coletivo. Mas como os comunistas, os muçulmanos não comem criancinhas, e não são todos barbudos e bitolados. É claro que a falta de perspectiva e lavagem cerebral podem transformar até um jovem recém-diplomado em soldado de Ben Laden. Mas se fosse assim tão fácil e se tivesse tantos candidatos, o mundo ocidental já teria vindo abaixo, já que há 1 bilhão e 200 milhões de muçulmanos nos quatro cantos da Terra. Os judeus são 14 milhões. Os cristãos são dois bilhões.
Como os EUA sabem melhor do que ninguém que estes números não significam influência, (se significasse, a Palestina – cristã e muçulmana – já seria uma nação independente), vivem em constante estado de alerta. Por isto quem está esperando uma onda revolucionária seguida de outra democrática nos países árabes pode esperar sentado senão cansa.
Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos da América, falam e falam em ajudar a democratização e em apoiar democracias emergentes nos países árabes, mas cada vez que um presidente é eleito, governa para si e para seu clã, mais cedo do que tarde acaba corrompendo o sistema eleitoral para se perpetuar e os quatro grandes lhes dão um tapinha na mão de vez em quando enquanto seus bancos recebem o ouro roubado e as boas intenções vão por água abaixo.
Ben Ali é o padrão da hipocrisia ocidental e árabe. Até o mês passado o renegado (em sentido próprio e figurado) era recebido em todas as capitais por chefes de estado e empresários sem que ninguém questionasse sua integridade. Hoje todos o repudiam e desaprovam sua corrupção da qual beneficiavam em negócios milionários.
O poder político dos quatro grandes, sobretudo dos EUA, é tão grande por aqueles lados que mesmo estando tão apavorado quanto os vizinhos autoritários, o rei da Arábia Saudita não teve como recusar refúgio a Ben Ali. Aliás é o mesmo país que recebeu o sanguinário Idi Amin Dada em 1979.
A palavra de ordem nos palácios dos governos árabes é não desagradar os EUA, cliente petrolífero e dono de bases militares autárquicas inclusive na Arábia Saudita (onde a Meca está situada – versão muçulmana do Vaticano, sem um papa). E as bases são sólidas e estão para ficar.
Os déspotas árabes são os maiores aliados dos EUA no combate ao “terrorismo”. Aliás, Guantánamo (http://www.youtube.com/watch?v=QXlRJmpHFxA), que o candidato Barak Obama havia prometido fechar, continua “abrigando” 192 suspeitos que se não estivessem lá, também teriam sido enviados a centros de detenção “especializados” instalados em alguns países árabes.
A cumplicidade é devida a um pragmatismo imediato de temerem que os fundamentalistas ocupem seu lugar. Para agradar os EUA até deixam Israel avançar e avançar em seus projetos de ocupação e só defendem a Palestina quando são obrigados por uma insatisfação popular que os ameace. Eles agora sabem que todos os seus palácios têm telhado de vidro, embora pensassem que fosse de aço e que o ouro do petróleo fosse uma proteção inoxidável.
Por isto, pelo receio que a casa desmorone e que tenham de fugir para nunca mais voltar, (como foi o caso de Idi Amin Dada que morreu rico, mas exilado em uma mansão que virou mais uma prisão do que um oásis) por todo lado a alta de preços que está estrangulando as famílias foi subitamente gelada, a promessa é de baixa, e pelo menos pão vai encher a barriga das massas. Em tempos de crise aguda, promessas é que não faltam. 

Quanto à Tunísia, que os otimistas me perdoem, mas pela lógica da real-política, a não ser que a internet além de facilitar a comunicação tenha o poder de mudar cultura e mentalidade das classes populares, o mais provável é que, no caso de eleições presidenciais a população acabe elegendo um candidato ligado ao partido islâmico. Não por vontade individual, mas porque, que eu saiba, a oposição partidária é de fachada e o país ainda não dispõe de nenhuma liderança laica válida, já que a revolta foi espontânea, e não organizada.
O líder do partido islâmico moderado Ennahda, Rachid Ghannouchi, exilado entre Londres e Paris há mais de duas décadas, já declarou ao Der Spiegel que está preparando sua volta, mas que não deseja instalar no país um regime de partido único e nem instaurar a charia (lei islâmica). Mas sua liderança não atinge a juventude laica.
Enquanto isto, em Tunis, as prisões foram esvaziadas dos presos políticos e religiosos, a mesquita da Universidade de Tunis, de onde começou a revolta estudantil islâmica em 1981, foi reaberta na sexta-feira para um primeiro culto do qual participaram uns cinquenta estudantes, e todos os imãs tunisianos no exterior foram chamados de volta para casa.
A laicidade que é cultivada na Tunísia desde a independência da França em 1956 (as mulheres são proibidas de usar o hijab – véu – no serviço público), pode estar ameaçada e em poucos meses pode ser que as mulheres cubram a cabeça e os homens deixem crescer a barba. Mas são os tunisianos que têm de escrever sua própria história.
A notícia que tenho de última hora é que os sindicalistas, que se juntaram aos jovens no processo revolucionário, pretendem participar da reestruturação do Estado.
Quem sabe surge um líder oposicionista carismático?
Mas até as eleições democráticas muita água vai rolar. Mas o certo é que a Situação, até com ajuda ocidental velada, não poderá se reorganizar, pôr um verniz democrático na fala e na cara, e eleger seu candidato.
O processo democrático parece irreversível. Embora, para responder com honestidade as perguntas sobre os rumos da Tunísia e dos demais países árabes, seja obrigada a repetir que na verdade, fazer uma projeção definitiva do futuro laico da Tunísia nesta data não é fazer análise, é conjeturar. E não me meto nesta seara.

The Road to Guantánamo, de Michael Winterbotton: http://www.youtube.com/watch?v=JCUDFfBLRTU

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