domingo, 26 de setembro de 2010

O Rio Mãe de filhos ingratos

Região atingida pelas enchentes

O Paquistão acabou de ser atingido por uma enchente cujas proporções chegaram a ser comparadas com as catástrofes monitoradas no Antigo Testamento por um deus vingativo e sanguinário. Mas como no Princípio a água doce era toda potável e a superfície da Terra era coberta de árvores, o Deus do Novo, neste caso (e em outros em que os homens usam o livre arbítrio para fazer escolhas erradas) é mais bode expiatório do que culpado.
Hoje no Paquistão (que já arca com o ônus de acolher um milhão e setecentos mil refugiados afegãos em acampamentos precários) o balanço oficial provisório – no norte as águas se acalmaram, mas no sul continuam a inundar plantações e invadir casas – é de mil setecentos e sessenta mortos e cerca de vinte milhões de desabrigados mal alojados em campos improvisados. Isto se chama catástrofe humanitária.
Chuvas torrenciais que carregam colheitas, moradias e gente na enxurrada são consequências de algo. Dizer que o Rio Mãe, como o Indo é chamado, é a causa, pode ser um julgamento apressado de consciências pesadas. Que rio consegue absorver três, seis, nove vezes o volume de chuvas que não param?
O Indo e seus 2.900 km de comprimento e seu fluxo anual de 270 bilhões de metros cúbicos é um culpado acidental. Sua fonte no Tibete é puríssima e quando escala o Himalaia a água sobe límpida e escorrega macia pela Caxemira indiana e paquistanesa para cruzar a fronteira do Paquistão que ele irriga até o Mar da Arábia.
Para uma goiana acostumada com o Araguaia e Tocantins que formam artérias caudalosas e piscosas em meu estado, ir de Islamabad a Peshawar em janeiro pela Rodovia Nacional do Paquistão, parar na ponte e olhar debaixo o riacho verde oliva deslizar no leito largo de um e outro lado..., o maior provedor de água do Paquistão parece moribundo.
De fato o Indo é um rio esgotado pelos ciclones provenientes do mar da Arábia e por desmatamento extensivo, poluição industrial e aquecimento global que vêm afetando sua biodiversidade.
Mas as chuvas copiosas e ininterruptas que acabaram de fazê-lo transbordar e inundar várias cidades mostram que ele está bem vivo e reclamando dos maus tratos.

Na nascente o sistema do Indo é bem alimentado pela neve e os glaciares do Himalaia.
É um dos poucos rios com macaréu, o fenômeno do encontro de águas fluviais com ondas na maré alta, vista na foz de alguns rios brasileiros e estrangeiros em escala que impressiona mas não tanto quanto a pororoca na potência máxima do Amazonas.
Acanhado de janeiro a março, o Indo só cresce e vira fera na estação das monções de julho a setembro quando transborda por todos os lados. Seu fluxo é determinado também pela volubilidade das estações.
Porém a inconstância de suas águas não lhe tira o mérito de Mãe. Influencia indiretamente a vida de cento e cinquenta milhões de pessoas na China, Índia, Paquistão, e diretamente, de cem milhões. Inclusive um milhão de pescadores. Todos prejudicados de maneira mais ou menos grave pelos recentes alagamentos.
A cachoeira de desastres tinha de levar os cientistas à reflexão sobre as razões de tanta água enlameada, e o maniqueísmo de alguns, à famosa busca do culpado. Mas em vez da mão de Deus, a mão pesada e o imediatismo do homem são os mais prováveis.
Há seis mil anos as águas do Indo eram bem mais abundantes e mais sujeitas a transbordamento do que agora. O esfriamento climático fez com que grande parte da água evaporasse e a área em volta secasse em concomitância com a queda da Civilização Harappa (ou o contrário). Esta se expandiu na Idade do Bronze (2600 a 1900 AC) do vale do Indo e do Punjab ao Paquistão de agora, possuía uma forma de escrita e já usava o algodão. (O sítio arqueológico de Mohenjo-daro pode ser visitado no distrito de Larkana, no Sindh paquistanês onde o islamismo foi introduzido no sul da Ásia séculos mais tarde http://www.youtube.com/watch?v=krJ4J5RWPCE).
Até os Harappa, a natureza era a única que influenciava a mudança climática, e no bom sentido, embora o declínio desta Civilização seja atribuído ao ar frio. Segundo os especialistas, a Monção (período em que o contraste térmico ocasiona ventanias e subsequentes chuvas torrenciais) é sensível à temperatura do Oceano Índico, e com o resfriamento, os ventos passaram a carregar menos unidade, a monção declinou, o volume do rio foi diminuindo e as intempéries cessaram.

Hoje em dia, é o Indo que supre em água, além de casas, a indústria alimentícia e a agricultura no Sindh e no Punjab, províncias que alimentam o Paquistão graças ao sistema de irrigação moderno instalado pelos colonos ingleses em 1850 – eficiente, mas inadaptado às particularidades geológicas locais.
E foi aí que a coisa começou a complicar. O sistema foi calcado nos rios britânicos que acumulam pouca lama e pouca areia enquanto que o Indo é carregado de sedimentos himalaicos. A construção de diques fez com que a médio e longo prazo o leito do rio acumulasse uma quantidade de limo que o expõe a estas inundações que se intensificam quando os diques são quebrados pela força das águas.
Um problema crescente desde o século XIX e agravado nos últimos cinquenta anos com o desmatamento. Como as árvores protegem os mananciais de erosão, com sua derrubada os sedimentos despejados na água aumentaram e os diques não conseguem suportar os desbordamentos. Suspeita-se que o vale do Indo venha a ser vítima de enchentes cada vez mais graves e difíceis de serem previstas. Com as mudanças climáticas é quase impossível avaliar com antecedência o ritmo e a duração das monções atuais, apesar dos cientistas paquistaneses buscarem sistemas e meios de controlar o que parece incontrolável. Enquanto não encontrarem, o futuro do Paquistão e do Rio Mãe (contra as expectativas dos garimpeiros que peneiram seu leito cheios de esperança de opulência e estabilidade) parece fadado a oscilar do esgotamento ao transbordamento de água não-potável.

Nuvens chuvosas em Jiiaju no Tibete
O interessante é que apesar das catástrofes locais e internacionais dos últimos anos, o volume de chuvas no mundo continua o mesmo. O que mudou foram as gotas acumuladas em períodos encurtados. Para o Paquistão isto significa que se o parâmetro deste ano for repetido e banalizado com as alterações climáticas, a curto ou médio prazo, ele está condenado.
Face ao estado em que o Paquistão se encontra e em que o Bangladesh vira e volta naufraga, martelei três cientistas com uma questão simples e complicada: Já que o aquecimento global provoca o inverso do esfriamento, os ventos estão carregando cada vez mais umidade dos oceanos e com os fortes ventos contrários, chuvas aluviais imprevisíveis e incontroláveis acabarão submergindo plantações, gente e cidades pelo menos uma vez por ano. Não apenas no Paquistão, mas também pelo mundo afora até nossas paragens. Enquanto a sede de água potável piora.
Um levantou a sobrancelha, o outro suspirou e o terceiro fez um gesto enigmático.
Impotentes frente às obras hidráulicas que proliferam e aos desmatamentos que exaurem a Terra, asfixiada pelo aquecimento global ao qual contribuímos cada vez que pegamos o carro em vez de metrô, de ônibus, de bicicleta, ou de simplesmente caminharmos desfrutando o privilégio de nossos membros válidos.
Mudança climática



Garimpo no Indo, em francês


Delta do Indo

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