domingo, 5 de setembro de 2010

A Ásia Central ferve pelos Daria


Há três semanas mencionei o Syr Daria e o Amu Daria como coadjuvantes ativos do abastecimento do exaurido Mar Aral. Já sabemos porque suas águas não chegam ao Aral, mas sua exploração conflituosa não para na irrigação desmesurada das plantações de algodão. Estes rios abastecedores da Ásia Central são também protagonistas acidentais de uma disputa crescente na região. http://www.lamiradaaleste.com/2008/08/
O Syr Daria tem 3.078 km de comprimento, nasce nos montes Tian Shan no Quirguistão e banha também Casaquistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, com uma população ribeirinha de 13.4 milhões.
O Amu Daria tem 2.620 km de comprimento, nasce no norde do Hindu Kush no Afeganistão e banha também Tadjiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, com uma população ribeirinha de 15.5 milhões.
No período soviético, ou seja, antes da independência das repúblicas da região em 1991, além de passarmos de um lado para o outro como no Brasil se atravessa um estado, os bens naturais circulavam como as pessoas de diversas origens que iam e vinham e se instalavam onde encontravam uma boa oportunidade. No tocante à água, Moscou fornecia os meios financeiros e técnicos para a construção e manutenção das infra-estruturas hidráulicas, assegurava salubridade, e na superfície, a paz reinava.
Em seguida as cinco nações recém-formadas concordaram com a manutenção do sistema de quotas soviético, mas a Guerra civil no Tadjiquistão, a decadência econômica do Quirguistão e o nacionalismo exacerbado de todos os lados fizeram que a água logo virasse fonte de conflito e instrumento de chantagem.
Casaquistão, Turcomenistão e Uzbequistão, países mais desenvolvidos, precisam de água para o setor agrícola (a produção pesada de algodão que secou o Aral) e para uso doméstico de uma população crescente. Porém eles se encontram rio abaixo. Rio acima, o Quirguistão e o Tadjiquistão tentam controlar seus recursos para usá-los na agricultura emergente e em energia.
Em 1992 a ICWC (Comissão de Coordenação de Água Inter-estados) foi criada para administrar o potencial hídrico, e as rivalidades. Porém ela nasceu vedada às organizações não-governamentais e controlada por executivos uzbeques suspeitados de privilegiar os interesses nacionais. Insatisfeitos, os demais países interessados se afastaram e a falta de verba tornou seu funcionamento bastante precário.
O escândalo do Aral gerou doações de vários organismos internacionais, mas nenhum deles releva os obstáculos políticos que entravam quaisquer soluções apresentadas. Começando pela má-vontade de cooperação dos e entre os Estados, que estão sempre se acusando de exceder as quotas que lhes cabem, negociadas em 2001 após anos de ataques e retaliações que a médio prazo prejudicavam todas as partes.
Na prática, cada um continua tentando apropriar-se do máximo de recursos de maneira unilateral e todos acabam de alguma forma lesados. Por enquanto o único país alheio à batalha hídrica que inflama os demais é o Afeganistão, que desde 2001 consome muito pouca água do Amu Darya, já que sua agricultura foi quase toda substituída pelo cultivo de papaver (60% da área cultivável) usado na fabricação triplicada de heroína.
As tensões criadas pela água e a energia por ela gerada têm desestabilizado a Ásia Central e o clima entre os governos e as populações envolvidas vive carregado. A carência de água potável e a competição pelo Ouro Azul acirra os ânimos e têm estimulado contendas étnicas entre uzbeques e quiguises no vale de Fergana onde vivem sete milhões de pessoas de diversas nacionalidades. Nesta planície onde Alexandre teria construído sua Alexandria Eschate no século II AC, os russos criaram em 1876 um oásis aluvial que mais tarde seria multiracial e um celeiro fértil. Hoje é palco de combates mortíferos por causa de água.
Apesar da abertura dos beligerantes a soluções e prestações tecnológicas e técnicas de empresas e organismos internacionais, os cinco países rejeitam interferência estrangeira na instalação e manutenção de quotas. Na falta de solução política, um dia ou outro, um deles, ou dois, três, quatro ou todos eles, pegarão em armas. Manobras militares uzbeques têm levantado suspeitas no Quiguistão, que teme pela segurança de seu reservatório no rio Naryn, o Toktogul, o maior da região, mas cujo volume também tem baixado.
Falando nisso e para fechar esta matéria lembrando obras hidrográficas mal pensadas, mal administradas e relevando o valor da água potável, vamos dar uma parada no Quirguistão, que viveu recentemente um golpe de estado e que até 2008 estava na lista dos vinte países com mais alto nível de corrupção do planeta.
Este país de apenas 199.9 mil km² e uma população de 5.48 milhões de almas está espremido entre o Casaquistão, a China, o Uzbequistão e o Tadjistão, mas Moscou lhe deixou um precioso legado: Toktogul, usina da qual tira sua energia e conforme a vontade, utiliza como arma fluvial. Durante o inverno o uso intensivo da hidrelétrica provoca o escoamento de uma água inutilisável e nessa depressão desértica se forma um lago estéril de 200 km de comprimento, 30 km de largura, com 16 km cúbicos de uma água que teria ido para o Aral. Ele já está esgotado, mas ainda é possível salvar o oásis de Bukara que hoje está ameaçado.
Mal-acostumado com a abundância da era soviética em que todos os bens essenciais de consumo eram gratuitos, e sem o freio da educação sobre a preciosidade da água, o país vive em constante desperdício e a negligência das contruções hidráulicas soviéticas está em toda parte. Moscou deixou para trás obras monumentais cuja manutenção foi quase toda abandonada e parece que tudo vaza: encamentos, barragens, e o Grande Canal turcomeno perde no deserto de Karakum a mesma quantidade de água que fornece à irrigação local.
Alguns habitantes da região começam a tomar consciência do perigo a médio prazo de carência de água para a agricultura e sobretudo de água potável, mas coletivamente pouca coisa tem sido feita em sentido contrário. ONGs locais temem que a falta de uma política hídrica comum e responsável na Ásia Central faça com que a água vire realmente uma arma. Como quando os conquistadores mongóis Gengis Khan (século XIII) desviou o Amu Daria para inundar cidades e Tamerlão (século XV) extinguiu oásis quebrando canalizações com o mesmo objetivo de subjugar o inimigo.
Os próprios russos em 1868 só conseguiram conter uma batalha na guerra milenar entre os emirados Uzbek e Kokand pelo rio Zeravchan cortando a água da cidade de Bukara. Mais tarde os soviéticos dividiram a região em pequenas repúblicas desiguais. Umas montanhosas cheias de água como o Quirguistão e o Tadjistão e outras mais fertéis e mais poderosas como o Cazaquistão, o Uzbequistão e o Turcomenistão, mas menos bem dotadas em água. Para paliar as desigualdades, Moscou construiu barragens nas fronteiras para que o potencial hídrico local fosse compartilhado. E é aí que na política do cada um por si que hoje vigora, a água escasseia, ferve e pode queimar todo o percurso do Syr e do Amu Daria. E então, em vez de correr de inundações políticas monitoradas, todos corram atrás de água potável.

Nenhum comentário:

Postar um comentário