sábado, 11 de setembro de 2010

E o Danúbio valsa na politicagem

  

Eis um rio diferente dos outros. Ele faz sonhar acordado até quem nunca percorreu suas margens. Talvez por ter inspirado poetas como o romano Ovídio na Antiguidade, por ter sido herói de romance contemporâneo de Claudio Magris, por despertar emoções em todos os salões em que a valsa de Johann Strauss é tocada.
E ele encanta quem navega seus 2.850 quilômetros da Alemanha onde ele nasce na Floresta Negra, desce à Áustria e embeleza Viena antes de cortar a Eslováquia e Bratislava para banhar a Hungria – Buda e Pesta – separar a Croácia da Sérvia e regar Novi Sad para chegar a Belgrado, às Carpatas romenas e à península balcânica antes de traçar a fronteira entre a Romênia e a Bulgária e os três braços de seu delta se unirem para aflorar a Moldávia, a Ucrânia e desembocar no sombrio Mar Negro.
O Danúbio é o segundo rio da Europa, após o Volga, banha dez países e no total, dezessete são diretamente ligados a suas águas tempestuosas.
Tiberius, que governou Roma até 37 DC, foi o primeiro a contratar engenheiros para proteger o Império dos caprichos do rio que matava a sede e de vez em quando inundava. Mas foi só no século XX que a energia se uniu à tecnologia necessária para domá-lo.
Em 1951 a União Soviética elaborou projetos para a construção de uma série de barragens na Hungria e na Tchecoslováquia para regularizar seu fluxo que perturbava o transporte de produtos para a Europa do Leste.
Nessa época não se falava em ecologia, ecossistema menos ainda, e a água parecia placidamente inesgotável. Portanto ninguém questionou a “correção” da natureza pelos técnicos moscovitas quando decretaram que um rio como o Danúbio precisava de não apenas uma, mas de várias barragens. Caso contrário, diziam, acumulará sedimentos, a navegação será perturbada, suas margens se degradarão e suas pontes desabarão com facilidade.
Era claro que três meses por ano as águas baixavam prejudicando a flora e deixando centenas de barcos encalhados por 250 quilômetros.
Por isto, vinte anos mais tarde as finanças e a tecnologia se encontraram e em setembro de 1977, a Hungria e a Tchecoslováquia assinaram um tratado, hoje inválido, para a construção do complexo hidráulico de Gabcikovo-Nagymaros. Mas foi na época do “choque do petróleo” e este deu à barragem a função de produzir também eletricidade.
Um açude imenso seria construído entre os dois países e dele sairia um canal de 17 quilômetros que desviaria cerca de 95% das águas do Danúbio para um complexo hidrelétrico em Gabcikovo, na Tchecoslováquia, e para outro a uma centena de quilômetros rio abaixo em Nagymaros, na Hungria. O objetivo era regularizar o fluxo do rio. As plantas foram feitas por engenheiros austríacos, húngaros e tchecos. No campo técnico a concórdia reinava. No campo político, a discórdia não tardaria a mostrar a cara.
No fim da década de oitenta, em um ataque indireto ao Kremlin, passeatas se multiplicaram nas ruas de Budapeste contra a construção da barragem. Lembro que quem estivesse implicado no projeto ou defendesse sua utilidade era logo tratado de stalinista e repudiado. A pressão da opinião pública foi tão forte que quando a direita tomou o poder em 1990, o presidente simplesmente revogou o tratado sem nenhuma consulta bilateral.
E as águas do Danúbio se turvaram.
A retaliação de Praga foi imediata. Ignorando a decisão de Budapeste, resolveu, também de maneira unilateral, prosseguir as obras desviando 25 quilômetros do Danúbio para seu território para construir outra barragem menos potente para substituir a interditada. Houve protestos como na Hungria, mas o país já estava dividido, e em 1993, Bratislava erigiu Gabcikovo como símbolo da Eslováquia.
O Danúbio em Budapeste
No ano anterior o leito principal do Danúbio na Hungria havia perdido da noite para o dia mais de 90% de suas águas.
Os postes indicadores de nível secaram, as camadas freáticas perderam três metros em poucos dias, a queda do fluxo foi tão brutal que os peixes morreram asfixiados na lama na qual o Danúbio foi subitamente atolado.
Os húngaros ficaram estupefatos, extremistas ameaçaram explodir a barragem, e a Comunidade Européia interveio para evitar a carnificina anunciada.
Um presidente de esquerda foi eleito na Hungria e o caso foi levado à Corte de Justiça da Háguia para ser julgado. Era a primeira vez que a Corte legislava sobre um conflito hídrico e o resultado foi ambíguo. O tratado de 1977 foi validado e as duas partes foram repreendidas. A Hungria por tê-lo rompido e a Eslováquia por ter continuado as obras.
Após o tapinha nas mãos, a Corte pediu que negociassem. Sem nenhuma vontade de se entenderem, mas sonhando com um lugar na União Européia, ambos concordaram a meia-voz para mostrar aos vizinhos ocidentais abastados que eles também eram civilizados.
Após discussões intermináveis, decidiram continuar o projeto comum e resolver os problemas ambientais mais graves.
A Europa respirou aliviada, mas a direita húngara fez uma aliança improvável com o partido verde para organizar mais passeatas para intimidar seus adversários, e acabou conseguindo que o governo recuasse uma vez mais.
Em 1998 o partido socialista foi derrotado nas eleições legislativas por uma direita que prometia curar o Danúbio de todos os males.
Quatro anos depois o estado do Danúbio havia piorado e milhões de dólares haviam sido gastos para destruir a barragem inacabada.
O resultado desta querela politiqueira é que de um lado a Eslováquia prosperava, do outro, a Hungria se cobria de mato, e no meio, as águas do Danúbio escorregavam.
Treze anos depois da decisão da Háguia, a discórdia ainda reina, nas rédeas da União Européia que não quer um conflito dentro de casa.
Danúbio invernal em Viena
A situação do Danúbio entre estes dois vizinhos representa um conflito hídrico clássico.
A ciência pode fornecer fundamentos objetivos para as tomadas de decisão, mas estas quase sempre se baseiam em julgamentos subjetivos e atendem interesses sócio-político-econômicos imediatos que extrapolam fronteiras e negligenciam a proteção dos recursos naturais.
Estima-se a trezentos o número de bacias fronteiriças de água doce no mundo. O crescimento demográfico, a poluição e a degradação constante aumentam o risco de conflitos ligados à água nestas regiões precárias.
O Danúbio, cuja bacia abrange 817 mil km² de oeste a leste até o mar Negro, constitui o recurso econômico essencial dos dezessete países que percorre e que seus afluentes molham.
A bacia do Danúbio é a mais fragmentada do mundo em relação às fronteiras políticas. E tirando contendas como a que vimos acima, os países ribeirinhos vêm experimentando instrumentos de gestão comum para proteger o rio, sobretudo no tocante à qualidade da água. Pois no final das contas a preocupação é a mesma do resto do mundo: água potável.
O Tratado de Paris de 1856 havia instituído uma Comissão Européia do Danúbio que garantia liberdade de navegação por todos os países que ele atravessava, mas em 1948, a Convenção de Belgrado substituiu a noção de “liberdade de navegação” por “navegação controlada”. A dialética aplicada à água.
Esperava-se que as transformações geopolíticas da região danubiana apaziguassem as rivalidades por maiores porções de água, mas o fim do Comunismo acentuou o nacionalismo e reanimou conflitos étnicos que dormiam. Nos últimos vinte anos, várias comissões foram reunidas para acalmar ânimos alterados.
Em 1985, a declaração de Bucareste, visando melhorar a qualidade da água, foi assinada; dois anos mais tarde a Alemanha e a Áustria assinaram um acordo de gestão comum das águas e em 1991, a Comunidade Européia financiou, com outras entidades, um programa ambiental para a Bacia danificada.
Poluição de metais no Danúbio
A Convenção de Belgrado caducou com o Comunismo e em 1994 um acordo de cooperação e uso durável do Danúbio foi assinada em Sofia e quatro anos mais tarde uma comissão internacional foi instalada (http://www.icpdr.org/).
Desde então a qualidade da água tem melhorado embora ainda haja problema rio abaixo.
Cinquenta a oitenta por cento das águas do Danúbio estão em bom estado ecológico no ponto de vista químico e biológico, mas apenas 40% no tocante à hidro-morfologia. Leia-se estações hídricas obsoletas nos países do Leste e certas obras poluidoras alemãs e austríacas rio acima.
No início do milênio um plano financeiro caro e arrojado foi lançado para reduzir a eutroficação, ou seja, o aumento de nutrientes na água do Danúbio e do Mar Negro. Apesar disto, o Conselho da Europa teve de intervir dois anos atrás para evitar um desastre ecológico: o Danúbio despeja no mar 280 toneladas de Cádmio, 60 de mercúrio, 4.500 de chumbo, seis mil de zinco, mil de cromo e 50 mil de hidrocarbonetos.
Por isto, em 2009 representantes de quatorze países ligados pelo Danúbio se reuniram para tomar medidas de contenção de enchentes, e em fevereiro deste ano, reiteraram em Viena a “Declaração do Danúbio” após avaliarem os progressos na proteção durável das águas e outros recursos ecológicos que estão sendo aplicados.
No final adotaram um “Plano administrativo da bacia do Danúbio” com medidas concretas para melhorar sua salubridade até 2015. Ou seja, infra-estruturas de tratamento de detritos que reduzam a poluição orgânica que intoxica o mar e maltrata o rio celebrizado.
(Como se sabe, na busca de eficiência de lavagem e amaciamento da água, é comum usar fosfatos nos detergentes domésticos e industriais; embora estes mesmos produtos que nos dão conforto imediato aumentem os nutrientes e reduzam a biodiversidade. Um custo alto que não precisa mais ser provado.)
Aqui paro. E os vídeos de hoje são sem conflito. Têm a doçura lúdica que este rio inspira em todos os nomes que origina; de Donau a Dunaj, Duna, Dunav, Dunărea a Дунай, até Tuna na Turquia, versões linguísticas do latim Danubius, o deus romano dos rios. O Irã o chama de dānu que em farsi significa algo como água corrente. Em grego, ele é conhecido pelo nome de Ἴστρος Istros, uma das 25 crias da união entre Tétis e Oceano, citados por Hésiodo na Teogonia onde relata a criação do mundo.
O Nosso Amazonas, que vive um ano fatídico em que suas águas baixaram mais de cinquenta centímetros, merecia fazer parte desta lista na qual o próprio Hesíodo dizia faltar no mínimo três mil rios. Proteger a mata, proteger suas águas, é vital. Nós sabemos disto. Aí não há conflito geopolíto – só desmatamento e cobiça. Com determinação política, ambos podem ser contidos.
Enquanto isto, despeço-me do Danubius lhe desejando pronto restabelecimento e uma beleza perene que continue inspirando obras artísticas, literárias e os românticos de hoje e de sempre.

Para os românticos

Para os experimentalistas

Para os melômanos

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