domingo, 19 de setembro de 2010

O Nilo espremido entre rivalidades


Vale do Nilo
Inspirada por uma amiga que está mergulhando no Mar Vermelho (cujas águas são mesmo é de um azul esverdeado só às vezes avermelhadas por defuntas algas), resolvi percorrer a história de outro rio místico, o Nilo. Seu delta em forma de leque triangulado lembra a letra grega que deu origem a esta designação hidrográfica, o que é quase um poema.
Ao contrário do Danúbio que desemboca no Mar Negro carregado de detritos, o Nilo chega ao Egito pouquíssimo poluído. Mas justamente por isto, ou seja, pela industrialização e urbanismo incipientes dos países da nascente, protagoniza uma cascada de desentendimentos.
Ele é uma dádiva na aridez da África Oriental. Em 460 AC, o historiador grego Heródoto já via o Neilos como Uma fonte profunda entre duas montanhas altas. Quatro séculos mais tarde, Nero, em suas conquistas para o império romano, pôs um grupo de centuriões atrás da nascente do Nilus, mas eles não passaram do impenetrável vale Sud no Egito. Mil e oitocentos anos depois, o inglês John H. Speke achou que o lago vitória fosse o fim da linha e o seu erro só foi corrigido em 1937, quando o explorador alemão Waldekker percorreu seus 6.693 quilômetros até encontrar a fonte no rio Luvironza.
Como aprendemos na escola, o Nilo é o curso de água mais longo do planeta (distância de Londres a Nova Iorque). Irriga Burundi, Etiópia, Quênia, Congo, Ruanda, Eritréia, Tanzânia, Uganda, Sudão e Egito. Este último é o que lhe tira maior proveito e que está disposto a tudo para proteger os direitos que os ingleses lhes conquistaram. Boutros Ghali, secretário geral da ONU de 1992 a 1996, quando ministro das relações exteriores do Egito, disse em 1987 uma frase que marcou época: A próxima guerra nesta região será pelo Nilo. Eco de outra frase célebre pronunciada pelo ex-presidente Anwar Al Sadat logo após assinar um tratado de paz com Israel em 1979: Meu país só voltará à guerra pela água.
Isto porque os alicerces da alimentação e da industrialização do Egito são fincados no Nilo. Nesse continente desértico, suas margens são oásis para os milhões de habitantes que aproveitam de suas águas, e para os demais, um rio místico da antiguidade até nossos dias.
Esta relação visceral entre o Egito e o Nilo data da antiguidade, quando ele e seu delta eram idolatrados como deuses, e diz a lenda que para acalmar seus transbordamentos, os sultãos mandavam oferendas para a nascente na Etiópia. Eram reconhecidos e sábios; 86% das águas que irrigam o solo árido do país procedem da fonte etíope. É uma troca em sentido único. A fonte morre de sede enquanto no recipiente a água transborda.
O Nilo é formado por três rios: o Nilo Branco, o Nilo Azul e o Atbara. O Branco nasce no Burundi passa pelo lago Vitória e corre pelo Sudão até encontrar o Azul que vem do lago Tana na Etiópia. Mais da metade de suas águas procedem do Azul, mas os dois fluem juntos até o norte de Khartum, no Sudão, onde recolhem o Atbara também etíope.
De lá ele desce subindo no mapa até o Egito e o lago artificial Nasser (5.400 km², o segundo maior do mundo depois do Volta, 8.500 km², no Gana) e a controvertida barragem de Assuam. Depois do Cairo ele se bifurca nos rios Rosetta e Daneita. Antigamente havia inúmeros tributários, mas o fluxo lento da água, interferência humana e alta acumulação de limo extinguiram os menores e provocaram a desertificação de uma área larga demais para ser ignorada.
A ambição egípcia de apropriar-se da nascente do Nilo é histórica e envolveu muitos reinados famosos e invasões pouco gloriosas – o Sudão foi invadido várias vezes, inclusive durante o reinado da rainha de Sabá e de Nero, porque os egípcios temiam que um dia a água não chegasse mais às suas casas.
Apesar da natureza ser a responsável, era a Etiópia que levava a fama de ter poderes de controlar o Nilo à vontade. Por causa deste poder imaginário, em 1080, quando o sutão fatimida perseguiu os cooptas por causa da destruição de uma mesquita etíope, a baixa brutal do rio foi atribuída a uma represália da Etiópia e quando esta exigiu que o Egito deixasse os cristãos tranquilos e restaurasse as igrejas destruídas, foi atendida logo. Aliás, os cooptas foram poupados muito tempo no Egito, assim como o cristianismo que praticam, graças ao mito de que a Etiópia os protegia e para isto se servia da água.
Várias vezes na história os etíopes foram responsabilizados por fenômenos climáticos, mas a única verdadeira ameaça registrada e não cumprida, foi no século XVIII quando um rei teria ameaçado bloquear o rio. Ameaça vã, já que não dispunha de meios para pô-la em prática. De fato, nenhum fato concreto justificava o temor egípcio que acabou sendo transmitido aos colonizadores europeus que o invadiram.
A colonização na África não apenas traçou fronteiras arbitrárias que dividiram etnias irmãs e juntaram inimigos irreconciliáveis, como também criou um grave problema com a bacia do Nilo http://waterwiki.net/index.php/Nile. Neste caso, foi a Grã-Bretanha, que ocupava entre outros países o Sudão, o Egito, o Quênia e a Palestina.
No Egito e no Sudão, os ingleses domaram a vegetação da margem do Nilo e ele ficou navegável para grandes barcos. Enquanto isto a Etiópia, libertada da Itália e governada pelo indomável Hailé Salassiê, dona da fonte, fazia caminho a parte.
Após várias discussões entre os colonizadores italianos, franceses e ingleses, estes últimos patrocinaram em 1929 o Acordo das águas do Nilo e trinta anos depois, o Egito e o Sudão assinaram outro Tratado para uma exploração solitária. Ambos os acordos foram bilaterais e excluíam os demais países.
O tratado de 1929 registrou o volume do fluxo anual do rio (84 bilhões de m3) dos quais presenteou o Egito e o Sudão com respectivamente 48 e 4 bilhões de metros cúbicos – os 32 bilhões restantes sobraram para os oito vizinhos da nascente do rio. Países que o Egito não precisaria consultar para realizar obras hidráulicas e cujos projetos poderia vetar, caso seus interesses fossem contrários. E para completar, no período da seca, do dia 29 de janeiro a 15 de julho, o Suldão foi proibido de utilizar as águas do Nilo. No final das contas o tratado de 1929 assegurou ao Egito 60% do fluxo do Nilo.
Veio a Segunda Guerra, a Europa precisou das colônias africanas para parar os alemães na África, e no final, foi pagando bem que mal as suas dívidas. Os britânicos deram aos judeus mais de dois terços da Palestina para que criassem Israel (fazendo dos palestinos cidadãos apátridas), e perderam uma atrás da outra as colônias africanas. Começando pelo Egito em 1952 e o Sudão em 1956.
Nessa época a guerra fria entre a União Soviética e os Estados Unidos e seus aliados já tinha substituído a guerra de armas. Portanto, ao decidir construir a barragem de Assuam, o rei Nasser apoiou-se em Moscou para nacionalizar o Canal de Suez e assim financiar um pouco do custo com a cobrança de pedágio.
Em 1959 o general Abbud, ditador sudanês da época, negociou com Nasser outro tratado para garantir sua parte em Assuam e os dois países aumentaram seus recursos em 32 bilhões de metros cúbicos. O Egito ficou com mais 7.5 bilhões de m3 (passando a um total de 55.5 bilhões) e o Sudão com mais 18 (passando a 22 bilhões) – os dez bilhões restantes se perdem em evaporação. E juntos determinaram que as necessidades combinadas dos outros oito países não excederiam um a dois bilhões de metros cúbicos anuais e quaisquer reclamações seriam confrontadas a uma resposta egípcio-sudanesa unida, na forma de uma comissão técnica criada para defender seus interesses e negociar com os vizinhos a criação de uma Comissão sobre a bacia do Nilo.
E o Hidromed foi criado pela UNDP (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas http://www.undp.org/) só com a participação das ex-colônias britânicas – a Etiópia impôs como condição a revogação do Tratado de 1929. Burundi, Congo e Uganda se juntaram ao Quênia, à Tanzânia, ao Sudão, ao Egito e a Uganda em 1970, e em 1974, uma inundação no lago Vitória acelerou o processo para uma decisão comum. A Etiópia acabou aceitando participar como observadora e houve várias trocas de dados com a Comissão do rio Mekong.
Em 1994 emergiu um plano de ação para um programa de cooperação legal CFA (Cooperation Framework Agreement), e o Banco Mundial e outras instituições financeiras e governos investiram na criação de um fundo para a Iniciativa da Bacia do Nilo http://www.nilebasin.org/.
Desde então, a Etiópia vem construindo barragens em todos os rios possíveis. Obras que preocupam o Egito e deixam ecologistas e ONGs sociais na defensiva. Dentro de dez anos a energia deve ultrapassar o café e ser o primeiro produto de exportação do país. Os escândalos com as barragens – de licitação inexistente a danos humanos e ecológicos graves – não param. Vira e mexe o Banco Mundial é obrigado a afastar-se de um e outro projeto por desrespeitarem o ecossistema e as normas sociais às quais deveriam ser obrigados, mas não os veta. E com os préstimos do gigante italiano Santini e dos chineses, as obras se proliferam no rio Gibe e ameaçam populações inteiras de perder seus meios de subsistência, como os quenianos que vivem às margens do lago Turkana.
E a Etiópia, apesar de ter uma topografia montanhosa inadaptada à agricultura, está com projetos dispendiosos de irrigação intensiva, sendo que se os países da região se entendessem de maneira produtiva, ninguém precisaria prejudicar o outro e nem a biodiversidade. Bastaria que o Egito, que já explora toda sua área cultivável, aceitasse a partilha equilibrada da água; o Sudão, que possui terras virgens e férteis propícias à produção de cereais e a pastos, as utilizasse para uso próprio e para exportá-la; Quênia e Uganda produzissem trigo e cana de açúcar à vontade. Ninguém passaria fome e o Nilo serviria a todos de maneira pragmática.
Mas esta solução solidária ainda está longe de ser conjeturada. Em vez disso, a Tanzânia lançou um projeto de exploração do lago Vitória http://www.bujagali-energy.com/default.htm, Uganda também está construindo barragens e com o referendum pela autodeterminação do Sudão do Sul em 2011, a bacia pode passar de dez a onze, com um novo ator com idéias individuais.
No ponto de vista de cada um separado, os argumentos parecem válidos. Mas no cada um contra o outro, todos saem lesados. O Nilo é grande mas só tem um braço que não pode ser cortado. Para conservá-lo são e salvo, a hipótese plausível seria que todos assinassem o CFA para uma cooperação global e um uso responsável e solidário das águas. Porém, a hipótese provável é os sete países dos lagos equatoriais a assinarem deixando o Egito e o Sudão de lado. Como o Egito vai reagir, só ele sabe.

Viagem pelo Nilo


Barragem na Etiópia


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