domingo, 19 de janeiro de 2014

Síria "peace talks"



Há meses que venho remando contra a maré dos opositores a Bashar el-Assad.
Não por apreciá-lo ou por simpatizar com seu regime autoritário, repito para que fique claro. E sim por ter detectado e ousado admitir desde 2011 que a oposição de grupos rebeldes estava sendo infiltrada por para-militares extremistas estrangeiros que cobiçavam o poder total com meios mil vezes piores dos que os usados pelo regime atual.
O tempo passou e armas foram distribuídas por potências estrangeiras a pessoas erradas (aliás, se os "benfeitores" da rebelião tivessem deixado o barco correr como fizeram no Egito e na Tunísia em vez de serem belicamente "generosos" de maneira aleatória, o número estimativo de 130 mil mortos seria centenas de vezes mais baixo).
Potências estrangeiras avaliaram mal a situação local, baseadas apenas em relatos partidários, fofocas dos sauditas e em preconceitos concretos e abstratos contra os Assad, pai e filho, e seus 40 anos de reinado, permitiram que os pseudo-rebeldes estrangeiros ganhassem terreno e por onde passassem deixassem rastro de sangue escorrendo.
Os grupos rebeldes oficiais, que criaram um governo paralelo no exterior (como fizeram os líderes líbios que abandonaram Khadafi quando sentiram que o barco afundava e hoje estão ilhados em uma Líbia desgovernada) não ignoravam que a infiltração estrangeira punha em perigo a legitimidade de sua própria ação e, pior ainda, o futuro de sua nação. Os rapazes valentes que lutavam no terreno viam a crueldade dos al-qaedistas, mas só exprimiam receio off the record, pois on, seguiam diretivas do governo paralelo que está na melhor lá fora enquanto eles ralam, e se calavam.
A hierarquia que do Qatar e da Turquia seguia e segue a guerra civil com olhares míopes não queria de jeito nenhum que a imprensa (ausente, por causa do perigo real) e as potências ocidentais desviassem o olhar do bicho papão Bashar el Assad cujo trono cobiçavam (cobiçam ainda mais).
Até que chegou uma hora em que os guerrilheiros que lutam a mando dos caciques, que arriscam a vida por sonhos democráticos, por vingança contra os Assad, por rivalidade religiosa ou outra razão menos nobre, começaram a ser mortos pelos indivíduos mal-intencionados obstinadamente ignorados.
Aí os manda-chuva foram obrigados a admitir o óbvio. Que o Jabhat al-Nusra, o grupo salafista que atua na Síria, estava cada vez mais forte, que os seus rebeldes patriotas estavam enfraquecendo, e que Bashar sozinho corria o risco de não ganhar a parada. Isto é, que no final das contas a Síria podia não ficar com nenhum sírio no comando e sim com vassalos do famigerado ISIS - Islamic State of Syria and Iraq (Estado Islâmico de Síria e Iraque.


O problema de geopolítica e política em geral é que o pragmatismo irresponsável reina e é desmesurado. Sem querer ser pessimista, a porcentagem de pessoas do bem, desinteressadas, é mínima em todas as partes. A maioria é composta de gente que rema com a maré ou simplesmente se deixa levar; e a outra minoria, a que cria problema, a diabólica, de colarinho branco ou outra vestimenta adequada a uma aparência inofensiva, é a dos ambiciosos que cobiçam o poder em alguma forma e visam benefício próprio, mesmo este às vezes sendo disfarçado em benefício geral. Esta minoria é movida pelo lucro financeiro, secto-comunitário ou religioso, e é sempre nascisista nos mínimos detalhes.
É este grupo malígno que fomenta guerras, que divide famílias, que decide a vida dos demais.
A Síria é palco de mais um exercício deste grupo.
Genebra II é a reunião de cúpula desta minoria que pretende regularizar a situação da Síria e regulamentar seu futuro enquanto jovens sírios do Exército nacional e dos grupos patriotas enfrentam os extremistas no terreno.
Na minha opinião. Esta disputa de egos vai ser infrutífera para a paz. 

A conferência é necessária?
É.
Mas o problema está em Aleppo, que de cidade luz virou tenebroso campo de sangrentas batalhas diárias.
E uma simples reunião de cúpula não decidirá, jamais, os problemas no terreno nem as divisões entre as facções.
O problema com Genebra II, com que o governo paralelo finalmente dignou-se a concordar, é que cada um tem agenda própria.
Os Estados Unidos e Israel (ausente, mas presente a cem por cento no terno do padrinho) estão lá porque se deram conta que apostaram no cavalo errado, ou melhor, que alimentaram cavalos que estão ganhando o páreo mas que após a vitória serão incontroláveis e vão acabar pastando em suas terras e devorando a erva do vizinho.
A Rússia está protegendo sua base militar de Tartus. Imensa e única nas paragens.
O Irã está assegurando estabilidade para o Hezbollah.
O "governo paralelo" sírio inócuo, fictício, chamado National Coalition for Syrian Revolutionary and Opposition Forces (cujo presidente Ahmad Jarba é "patrocinado" pela Arábia Saudita e os outros três líderes, pelo Qatar) é tão comprometida com estes dois países estrangeiros e com os EUA que o nome da coalizão é mais nacional do que eles. E é dividida em tantas facções incompatíveis que se e quando assumir o poder haverá disputas internas terríveis, no mínimo político-religioso-financeira. Este governo paralelo desgovernado está em Genebra salvando o dele. Está lá sem querer e sem vontade de ceder em nada. Só está lá sob pressão de seus patrocinadores, EUA e companhia,  e das bases que lutam por eles.
O regime de Bashar el-Assad vai com agenda conciliatória, mas quer perpetuar-se de alguma forma. Sabe que precisa da oposição para controlar o Nusrah e está disposto a ceder terreno imediato para expulsar os estrangeiros sanguinários com a ajuda de seus compatriotas.
Fayçal Mekdad, o vice-ministro das Relações Exteriores da Síria, foi claro na BBC, embora tenha deixado vários "analistas" duvidando de sua sinceridade. Com razão, mas de fato, o problema é grave.
E o povo?
Na conferência de Genebra II, o povo está onde sempre está, de fora.
O povo sírio está sofrendo em casa. Rezando para Deus, Allah, para que esta luta infernal acabe. Que tudo volte ao normal, com Assad ou sem Assad. Pois sabem que qualquer que seja o governo que virá será também autoritário, mesmo que seja com disfarce.

Genebra II dependerá fatalmente de Vladimir Putin decidir abandonar ou não Bashar el-Assad. O que só fará se sentir firmeza do outro lado. O que não é o caso.
Ora, para que a paz vingue, há de se privilegiar o plano de democratização progressiva apresentado por Kofi Annan em 2012 e rejeitado pelos Estados Unidos. Ter-se-ia ganho tempo e poupado centenas de vidas então. Hoje, um ano e meio mais tarde, quer queiram seus inimigos quer não, o partido Ba'ath é incontornável. Apesar de Bashar el-Assad já fazer parte do passado e não ter futuro na Síria de amanhã, ele é incontornável e seu partido Ba'ath é o único partido bem organizado, pluri-religioso e multicultural. E ele tem apoio de uma dezena de partidos menores que também querem ser representados no futuro regime "democrático".
O governo paralelo diz em voz alta que conseguiria conter os para-militares do Nusrah, que conseguiria por ordem, mas sussurra que não tem meios para garantir nada. A não ser com ingerência direta das potências ocidentais. Mas isto as bases não querem.
Qualquer que seja o acordo, quem quer que governe, vai precisar da estrutura do partido Ba'ath e das Forças Armadas de Assad.
Quanto ao povo propriamente dito, que tenta sobreviver bem que mal sem engrossar o êxodo, o povo quer é sair do caos, que a violência pare, que volte a normalidade, que resgatem a vida que lhes foi sequestrada.
E no fundo, no fundo de bastante gente e na superfície de muitos, com Assad, sentem mais firmeza. O que querem é paz e segurança.

Espero que os magnatas que pretendem decidir nesta semana em Genebra - em alojamentos confortáveis, bem aquecidos, bebendo vinhos franceses e comendo do bom e do melhor - pensem no povo sírio, em Aleppo, alhures, vivendo em escombros, no frio, em casas destroçadas, familias escondidas, dispersadas, à míngua.
Que os magnatas decidam o que é melhor para essa gente síria e não para eles.
Que Genebra II não seja uma briga de galos e sim uma orquestra para a paz. Pois os al-qaedistas estão tão confiantes na incapacidade dos negociadores entrarem em acordo que estão afluindo à Síria em bandos. Estão deixando searas como o Afeganistão, o Paquistão, o Yêmen e até as dunas do Sahel onde se esbaldam e chegando à Síria bem armados e botando banca com risos arreganhados. Prontos para fabricar o  Islamic State of Syria and Iraq (Estado Islâmico de Síria e Iraque. A ferro e sangue.
Que o Ocidente não se iluda. São os membros do Jabhat al-Nusra e outros al-qaedistas que torturam os sírios que desafiam sua autoridade, que cometem atrocidades e que estabelecem um reino de terror nas cidades que invadem. Abu Mohammed al-Joulani, o líder do Jabhat já está cantando vitória aos jornalistas. Enquanto isso, seus para-militares do ISSI atacam até postos de observação ocidentais. O que de um lado ajuda as potências cegas a abrirem os olhos e enxergarem de onde vem o perigo, e que o perigo imediato.

Que os magnatas internacionais não cometam o erro que cometeram no Iraque; que não deixem a Síria acéfala, à mercê da lei das selvas; que provem em Genebra que não são tão ignorantes quanto parecem; que tenham coragem de fazer meu mea culpa convencendo por um lado a Syrian National Coalition que tem de manerar, negociar com Assad, descartá-lo em um futuro mediato e incluir o partido Ba'ath e os demais partidos minoritários na jogada democrática.
Hão de mostrar a al-Joulani que cantou vitória antes do tempo; ou melhor, que seu tempo jamais virá.
Que os manda-chuva árabes e ocidentais, provem que apesar dos interesses estrangeiros, a Síria pertence ao povo sírio. A ninguém mais.


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