domingo, 8 de setembro de 2013

Israel vs Palestina : História de um conflito XXXIX (1-2 2004)


O ano de 2003 terminou no sangue. 2004 continuou na mesma linha purpúrea da campanha da IDF de varredura na Cisjordânia.
Os soldados israelenses passaram dias indo de cidade a cidade bombardeando, invadindo casas de madrugada, aterrorizando famílias, bloqueando acesso a escolas e trabalho, enfim, procedendo conforme estavam acostumados.
Enquanto um deles matava um palestino na Faixa de Gaza, nas primeiras operações de janeiro na Cisjordânia, Nablus foi a mais visada. Lá, a IDF matou três rapazes e feriu dezenas de pessoas em operações terrestres e aéreas sem descanso.
Durante o enterro dos mortos nabluenses, o número de vítimas aumentou quando um adolescente de 17 anos levou um tiro na cabeça.
O garoto não estava jogando pedra, nem se revoltando contra uma das inúmeras barreiras arbitrárias que o impediam de ir à escola, nem protestando contra a ocupação em passeata. Estava em um funeral. Carregando o caixão do primo de 15 anos baleado na véspera.
Enfim, nada de extraordinário. Não mereceu nem uma linha em jornal ocidental.
De mãos livres, as investidas da IDF aumentaram de intensidade e cinco dias mais tarde, dezenove pessoas estavam presas e três sendo enterradas.
O bombardeio de Nablus, a maior cidade da Cisjordânia, duraria três semanas e dificultaria o trabalho do Primeiro Ministro Ahmed Qorei e da ONU.
Aliás, parecia provocação de Ariel Sharon. Para mostrar às Nações Unidas que era ele que estava no comando. Além de reiterar que Israel não dava a mínima importância ao Tribunal da Háguia. Era um Estado marginal, delinquente "por excelência" desde sua criação unilateral, e as nações desunidas que engolissem o sapo de bico calado.
Trocando em miúdos, a ONU e a Iniciativa de Genebra que se danassem com suas ideias malucas de Justiça e Paz.

Os bombardeios noturnos pareciam intermináveis.
Nablus é a que mais sofria, mas os Apaches varriam outras cidades e várias cidadezinhas agrícolas.
Em Ramallah, os dirigentes palestinos entenderam a jogada e botaram a boca no trombone: Ariel Sharon está sabotando as negociações de propósito.
Queria que a Intifada continuasse para que pudesse justificar, bem que mal, a limpeza étnica que há anos praticava?
Era o que parecia.
A comunidade internacional deu-lhe tampinhas nas mãos, mas não conseguiu pará-lo. Com os Estados Unidos do lado, Ariel Sharon não temia ninguém e nada.
Ou melhor, temia os atentados suicidas. Mas até isso ele achava que conseguia parar com seu muro e ataques noturnos, na calada.
Seu ódio o impedia de ver o óbvio. Quanto mais aterrorizava, humilhava, prendia, torturava, matava, mais as vítimas se revoltavam e queriam demonstrar que não eram simples animais como ele achava. E sim seres humanos que sentiam, sofriam e raciocinavam.
Após três semanas de ataques da IDF ininterruptos em lugares variados, o Primeiro Ministro palestino Ahmed Qorei, no dia 11 de janeiro, apelou para a comunidade internacional para que pressionasse Israel como se fosse um Estado qualquer do planeta.
Não para que Sharon parasse seus bombardeios e invasões de casas - Qorei sabia que esta era uma luta perdida meses atrás - e sim para que parasse a construção do muro de separação que abocanhava terras da Cisjordânia aumentando a revolta de seus compatriotas despojados.
Ahmed Qorei denunciou também que a nova onda de ataques militares dos ocupantes era provocação clara e nefasta. As mortes picadas, os feridos que se amontoavam, tinha efeito psicológico de revolta e vingança dos familiares. Qorei via que as negociações de paz estavam sendo propositalmente sabotadas e temia que a animosidade de seu lado aumentasse. Estava difícil segurar até o Tanzim, a ala de resistência militar do Fatah, que queria revidar e não esperar sentado que as negociações fossem respeitadas. O Hamas então, nem se fala.
A Primeiro Ministro palestino fazia das tripas coração para manter a calma dos grupos de resistência militar. Até de muitos políticos do Fatah, que diziam que "o único argumento que Ariel Sharon escuta é o que conhece e usa em abundância, o da violência."
Quanto a Yasser Arafat, bem, ostracizado e odiado por Tel Aviv e Washington, ele trabalhava nos bastidores. Era Ahmed Qorei que mostrava sua cara moderada e falava pela Autoridade Palestina.

Do outro lado da Linha Verde, seu homólogo estava surdo às vozes moderadas. O espírito belicoso do Primeiro Ministro israelense falava mais alto que o bom senso. Ordenou que a IDF continuasse a martelar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.
Nesta operação, foi Netzarim, uma cidade da Faixa, que pagou o pato. No final do bombardeio quatro militantes do Jihad Islâmico e um do Hamas eram velados.
No domingo mais três palestinos foram mortos, cerca de 85 detidos, onze casas foram demolidas.
Aí não deu mais para segurar os grupos de resistência militar.
No dia 14, por volta das 9:30, uma bomba-suicida explodiu no terminal de pedestre do Erez Crossing (barreira principal para entrar e sair da Faixa de Gaza). A moça infiltrou-se no corredor de inspeção e explodiu com três soldados e um civil. Dez pessoas ficaram feridas, inclusive quatro compatriotas da moça.
A reivindicação do ataque foi conjunta. Das Brigadas dos mártires de al-Aqsa, ala militar do Fatah, e do Hamas.

A represália veio em seguida.
O primeiro alvo foi uma mesquita. Depois dezenas de civis, dentre eles várias mulheres. E no dia 25 as cadeias israelenses já detinham mais dezenas de palestinos sem acusação explícita.
Enquanto isso, em uma negociação monitorada pela Alemanha, Israel procedia a uma troca de prisioneiros com o Hezbollah.
Três soldados israelenses mortos e o coronel da reserva Elhanan Tannenbaum - sequestrado pelo Hezbollah em Dubai em 2000 - seriam então trocados por 400 palestinos e 30 libaneses. Dentre estes, os líderes do Hezbollah ash-Sheikh Abdal-Karim e Mustafa Dirani. Os cadáveres de 59 libaneses também seriam devolvidos para enterro.
Israel procedia a esta permuta em um lugar e em outros lugares dos territórios ocupados repunha a "perda" dos quatrocentos prisioneiros prendendo mais do que os que foram soltos.
A troca foi uma cortina de fumaça que mostrou, mais uma vez, quão pouco valia a vida de um palestino. Para os israelenses, naquele dia, a vida de um compatriota custava a de 400 palestinos. O preço aumentaria proporcionalmente ao desprezo pelos ocupados.
(Ainda há cerca de 4.700 prisioneiros políticos palestinos em Israel).

Esta troca de homens e cadáveres foi um fato isolado que não impediu que a IDF continuasse martelando seus alvos habituais.
Em um dos bombardeios deixou oito mortos e vários feridos - em Al-Zaitoun, no sudeste da Faixa de Gaza.
No dia 29 a resposta conjunta do Fatah e do Hamas foi contundente.
As Brigadas al-Aqsa e a ala militar do Hamas reivindicaram um atentado mais violento e de relevância política. Na Jerusalém ocidental ocupada.
Um pouco antes das nove horas, Ali Yussuf Jaara, policial de Belém, explodiu no ônibus Egged 19 na esquina das ruas Arlozorov e Gaza.
A mensagem não deixava dúvidas. Além do nome da rua, a explosão ocorreu perto da residência oficial do Primeiro Ministro de Israel. Localizada em zona ilegal.
O bomba-suicida de 24 anos levou consigo onze pessoas e deixou atrás de si cerca de 50 feridos. Treze deles em estado grave.
(A carcaça deste ônibus, acima, virou "relíquia" israelita.
Primeiro foi usado como propaganda sionista na Háguia - foi exposto fora do tribunal durante o processo contra Israel e a construção do muro. Com o objetivo de comover os juízes e fazê-los julgar em favor do ocupante em vez do ocupado.
Depois o ônibus foi levado para os Estados Unidos e exposto em várias cidades e universidades estadunidenses, a fim de angariar simpatias para a campanha de expansão israelense.
Hoje está em "exposição permanente" no Camp Shoresh - acampamento judeu de férias em Adamstown, no estado de Maryland. A fim de perpetuar a cultura do ódio e da leitura deturpada da história da ocupação da Palestina.)
A mídia isralense e a internacional deram bastante espaço a esta tragédia. Embora no total, contando os dois ataques suicidas, Israel terminasse o primeiro mês de 2004 lamentando a perda de "apenas" 16 cidadãos. Todos identificados por nome, foto, e lamentados copiosamente.
A Cisjordânia e a Faixa de Gaza, ao longo do mês de janeiro até o dia 31 enterraram em grupos ou separados 28 palestinos vítimas de bombardeios ou de tiros ao alvo.
A cara de nenhum deles foi estampada em manchetes. Nem as das dezenas de famílias cujas casas foram demolidas, terras desapropriadas, filhos e pais detidos, muitas vezes, por nada.
E para completar a vingança cega da IDF, no dia 31 de janeiro Belém recebeu uma visitinha rápida dos Apaches para a população da cidade fechar o mês apavorada.
Os Apaches forneceram apoio aéreo à operação de retaliação que seus soldados executavam embaixo. Como de praxe, a casa de Yussuf foi dinamitada para que a família toda ficasse ao Deus dará.

No dia 02 de fevereiro Ariel Sharon convocou a imprensa para dar a notícia inevitável: desmantelaria todas as colônias judias instaladas na Faixa de Gaza. Não explicou porquê e nenhuma data foi dada.
Os palestinos celebraram ressabiados (esperando o golpe baixo), e os ânimos se acalmaram.
Por pouco tempo.
Longe do Primeiro Ministro querer semear concórdia por mais de uma hora.
O desmantelamento das tais colônias não eram uma concessão e sim uma necessidade. Em um território exíguo e superpopulado como a Faixa, era quase impossível garantir a segurança dos colonos. Além disso, a água estava a ponto de esgotar-se. Além disso, ele queria o campo livre para bombardear em médio prazo.
A curto prazo, Shraon estendeu uma mão e bateu pesado com a outra.
Primeiro no dia 07, prosseguindo a campanha de assassinatos de dirigentes palestinos iniciada no governo de Ehud Barak.
Apaches sobrevoaram Gaza no sábado e, de repente, ouviu-se o estrondo característico dos mísseeis.
O alvo destes era o carro de Aziz al-Shami, alto dirigente das Brigadas de Jerusalém do Jihad Islâmico e cunhado e guarda-costas do líder do Jihad Abdallah al-Shami.
Um menino de 12 anos que se encontrava nas paragens fez parte dos "efeitos colaterais" de praxe.
No dia seguinte, outro menino de 11 anos e um adolescente estavam entre os seis palestinos mortos em outro ataque à Faixa de Gaza. Uma criança de cinco anos foi transportada para o hospital in extremis junto com mais 14 feridos. Aí os ânimos voltaram a alterar-se.
Ahmed Qorei avisou Ariel Sharon que ele estava brincando com fogo ao retomar a campanha de assassinatos.
A resposta de Sharon foi invadir Rafah e sediar o bairro Al-Salam com um batalhão de tanques apoiados pelos Apaches estadunidenses.
A presa que caçavam era um dos líderes do Hamas, Ashraf Adnan Abu Libdah. O domingo de manhã foi marcado por esse sítio de um batalhão de soldados, tanques, com tiros esporádicos, para liquidar um só homem.
No dia 11 a IDF voltou à carga na Faixa.
Atacou por ar Gaza e Rafah de maneira desvairada. Em mais uma encenação do clássico cinematográfico Apocalipse Now. (Aliás, parece que os comandantes da IDF são fãs incondicionais desse filme que desde 1967 repetem incansavelmente na Cisjordânia e em Gaza.)
No final da investida quinze mortos jaziam no solo. Dentre eles, 5 militantes do Hamas, 2 do Jihad e 2 policiais da AP. Os feridos enchiam os postos de saúde.

Dez dias mais tarde, um bomba-suicida das Brigadas al-Aqsa explodiu na Jerusalém ocidental ocupada.
No domingo de manhãzinha Mohammed Zaul, de Husan na Cisjordânia, entrou no ônibus israelense 14a que se dirigia ao centro. Quando o ônibus chegou ao parque Liberty Bell, na beira de Emek Refaim, rua principal da colônia judeo-alemã, ele puxou o detonador e explodiu por volta das 8:30 perto do hotel Inbal, onde estava havendo um encontro de organizações judias proeminentes nos Estados Unidos.
O jovem de 23 anos levou consigo oito israelenses. Deixou atrás de si cerca de 60 feridos, inclusive 11 meninos.
Onze era o mesmo número de meninos palestinos assassinados pela IDF nos dois primeiros meses de 2004. O número de crianças aleijadas pelos ataques era de dezenas.
Na mídia dos dois pesos e das duas medidas, a repercussão do atentado e dos onze meninos israelenses hospitalizados foi enorme e deu munição para os defensores do muro.
Como se o muro fosse uma solução e não uma das razões principais das operações militares da resistência.

No dia 24 de fevereiro a International Court of Justice começou o julgamento da ilegalidade do muro israelense.
Do lado de fora os partidários da ocupação exibiam a carcaça do ônibus 19 como argumento em favor do acusado.
Do lado de dentro, os palestinos demonstravam a ilegalidade do muro que invadia seu território, separava famílias, dividia lavouras, surrupiava as terras mais fertéis herdadas dos antepassados.
Enquanto os juizes internacionais discutiam, a IDF invadia Ramallah com um batalhão de tanques e veículos militares apoiados por Apaches que sobrevoavam a cidade enquanto os habitantes ouviam ordens vindas dos tanques de ir para casa.
Os oficiais israelenses impuseram toque de recolher, cercaram o centro da cidade com arame farpado e, de repente, a Mukata'a de Yasser Arafat estava de novo sitiada e a Autoridade Palestina cerceada.
No dia 28 foi a polícia militar israelense que invadiu Al-Haram al-Sharif, um sítio religioso islâmico. O objetivo era parar uma manifestação pacífica de protesto contra o muro. Os meios foram os mesmos utilizados nas cidades da Cisjordânia que protestavam e pediam intervenção internacional.
O segundo mês do ano acabou assim. A Háguia em discussões diplomáticas; a IDF reprimindo os protestos; Israel clamando vingança por seus 11 mortos em Emek Refaim; a Palestina terminando de enterrar seus 51 mortos no mês de fevereiro.
Na verdade, este mês acabou mesmo com a execução de Ayman Dahdouh, um dirigente do Jihad. No atentado morreram mais dois palestinos e quinze sofreram ferimentos mais ou menos graves.
No mês de março a campanha de assassinatos continuaria. O alvo seria um dirigente do Hamas eminentíssimo. Como se o Hamas existisse por causa de um só homem e não por causa da situação crítica em que os gazauís se encontravam.

Documentário Journeyman: The Dividing Wall - Israel/Palestine (25')

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