domingo, 25 de agosto de 2013

Israel vs Palestina: História de um conflito XXXVIII Bis Rachel, Tom, James (2003)


O escritor português nobelizado José Saramago foi crucificado anos atrás por causa das declarações indignadas que fez sobre a ocupação da Palestina ao retornar da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.
É claro que as críticas vieram de pessoas que ainda não conseguem ver que grande parte dos judeus que emigraram para o Oriente Médio viraram algozes dos nativos. Ou/e de pessoas que nunca puseram os pés nos territórios ocupados e não querem enxergar o que está na cara.
Na época ouvia colegas brasileiros criticarem Saramago, engolia em seco, pensava que ignorância é mesmo cega e só limitável pelo conhecimento, pensava. Tentava explicar o porquê de concordar com Saramago e no final deixava a pessoa de lado porque, perdoe o clichê, o pior cego é o que não quer ver, mesmo. A vida me ensinou a calar a boca socialmente e fazer o meu trabalho em vez de polemicar. Tem mais utilidade.
Mas não baixo os braços.
Pois como dizia outro homem de letras, Vaclav Havel - escritor-poeta-dramaturgo tcheco perseguido, maltratado, resistente durante o período negro da ditadura stalinista na então Tchecoslováquia: "Até um ato puramente moral que não tenha nenhuma esperança de efeito político imediato e visível pode, gradual e indiretamente, com o tempo, ganhar em importância política." E servir a Justiça.
O tempo e a história provaram que Vaclac estava certo. O muro de Berlin caiu e ele foi eleito presidente da República Tcheca que é hoje uma democracia.
É claro que todos sofrem neste conflito entre Israel e a Palestina. Isto é indiscutível. Porém, a vítima é o que sofre a ocupação, o arbítrio, que é humilhado e despojado e não o ocupante que pode (e deve) ir embora pra casa do outro lado da Linha Verde.
O ocupante é fora-da-lei, contra a Organização das Nações Unidas que foi criada após a Segunda Guerra Mundial justamente para proteger o mundo de limpeza étnica e iniquidade de Estado sobre Estado.
Quer queira quer não, o infrator é o que infringe as leis que regem a justiça entre os povos. A razão está do lado do que o Direito Internacional apoia. Direito que tem de vigorar com imparcialidade em toda circunstância quaisquer que sejam os beligerantes.
Se não, tem de ser extinto de uma vez por todas e as Nações desunidas se submeterem ao jugo da força aterrorizante do país mais armado do planeta, sem piscar nem mexer um dedo. Aí ficaremos todos aos EUA dará.
Mas isto é roteiro de filme hollywoodiano de catástrofe máxima. Ainda não chegamos a este ponto. Enquanto tiver Justos na Terra ela tem chance de ser humana.
Justos como os que lutam por causas universais além das próprias.      
Na Cisjordânia e na Faixa de Gaza há vários estrangeiros assim, que fazem trabalho anônimo em prol dos Direitos Humanos e da justiça; um labor de formiga de conscientes cidadãos do mundo que querem fazer algo pela humanidade e por sua própria evolução humana.
Uns lá estão a trabalho engajado, outros de passagem, e muitos agregados ao ISM (International Solidarity Movement), ONG que defende a causa da Justiça na Palestina.
No capítulo anterior da história do conflito Israel vs Palestina, terminamos 2003 com Rachel. Como fico emocionada com estes jovens e menos jovens que se opõem aos soldados da IDF, aos bulldozers armados, à opressão quotidiana do muro e da violência dos colonos judeus contra os palestinos em seus territórios ocupados civil e militarmente pelos israelenses, resolvi homenagear todos eles acedendo aos pedidos de lembrar os que tombaram durante a Intifada no ano que concluí na semana passada.
Rachel Corrie, Tom Hurndal e James Miller faziam parte desse grupo de Justos e ficaram para a história do conflito porque, além de serem seres mais humanos do que o normal, suas vidas foram encurtadas por um caterpillar armado ou uma bala de sniper bem mirada.
São dignos de respeito e respeitados por quem teve o privilégio de conhecê-los e pelos que valorizam atos morais mais do que moralismo discursivo e militância de bar.
Durante a Segunda Intifada, o ISM perdeu dois ativistas e o mundo perdeu três seres que honram o gênero humano.
ISM reune pacifistas israelenses, palestinos e estrangeiros que trabalham pela libertação da Palestina. Utilizam métodos não-violentos de resistência e de ações diretas de afrontamento às forças ilegais de ocupação na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
Apoiam o direito de resistência à ocupação - previsto no Direito Internacional; reivindicam o fim imediato da ocupação, o respeito e a aplicação das resoluções da ONU e intervenção internacional imediata a fim de proteger o povo palestino e exigir que Israel respeite as leis internacionais. http://palsolidarity.org/join/
O blog de hoje é em homenagem a James, Juliano, Rachel, Tom, Vittorio, a todos os ativistas e idealistas ativos dentro e fora da Palestina, e a José Saramago que foi injusta e malevolentemennte difamado.

"A man's moral conscience is the curse he has to accept from the gods in order to gain from them the right to dream."
William Faulkner

Aliás, já em 2002 a IDF matara um funcionário das Nações Unidas.
Iain Hook nasceu na Inglaterra em 1948, era casado, tinha dois filhos e trabalhava na UNRWA, Agência da ONU encarregada de refugiados.
Em outubro foi enviado a Jenin, na Cisjordânia,  como diretor do projeto de reconstrução de campo de refugiados para treze mil palestinos cujas casas foram destruídas na Operação Defensive Shield, de Ariel Sharon.
Iain foi assassinado por um atirador especial da IDF no dia 22 de novembro.
Após investigação, o veredito da justiça da Inglaterra foi de assassinato desleal. O país submeteu o caso à ONU que estabeleceu uma Resolução condenando Israel, esta foi vetada pelos Estados Unidos e o crime ficou impune.

"Perfection of moral virtue does not wholly take away the passions, but regulates them."
São Thomas de Aquino

Em 2003 a primeira vítima da IDF foi Rachel, a primeira ativista do ISM a ser friamente assassinada.
Rachel Corrie nasceu em Olympia, no estado de Washington, nos Estados Unidos, em uma família normal de classe média.
Entrou na Universidade, trabalhou em uma ONG de ajuda a crianças com problemas mentais, e de ato em ato desinteressado, acabou aderindo ao ISM para tentar fazer algo para mudar o status quo que Israel impusera nos terrirórios ocupados.
Primeiro, montou um projeto de intercâmbio solidário entre as crianças de Olympia e de Rafah e no ano de sua formatura propôs um programa de estudo independente que compreendia pesquisa de campo.
Viajou em janeiro de 2003 para a Palestina, seguiu um curso de dois dias no ISM na Cisjordânia, foi para Rafah e lá descobriu o quanto era privilegiada e quão aquém da imaginação era o horror da situação em que os palestinos se encontram.
Eis um extrato de email enviado aos pais. 
"Faz duas semanas e uma hora que estou na Palestina e continuo com poucas palavras para descrever o que vejo. É mais difícil ainda pensar no que está acontecendo aqui quando me sento para escrever para os Estados Unidos - algo como um portal virtual para o luxo.
Não sei se muitas das crianças aqui já viveram sem rombos de bombas nas paredes e torres de um exército ocupante os vigiando constantemente. Acho, sem certeza, que nem a criança menorzinha entende que a vida não é assim em todo lugar.
Dois dias antes da minha chegada um menininho de oito anos foi morto por um soldado israelense e muitos meninos murmuram o nome dele, "Ali", quando me vêem ou apontam os cartazes nas paredes.
Eles gostam de praticar o árabe comigo e me perguntam Kaif Sharon? Kaif Bush? e eu respondo Bush majnun Sharon majnun (Como vai Bush, Sharon? Bush Sharon são loucos) e alguns adultos me corrigem: Bush mish Majnun... (Bush é um homem de negócios). Hoje tentei dizer Bush é uma ferramenta.
Os meninos de oito anos aqui sabem mais da estrutura do poder mundial do que eu sabia até poucos anos atrás - no tocante a Israel.
De qualquer jeito, acho que nenhuma leitura, conferência, documentário e relatos poderiam ter me preparado para a realidade. Não dá para imaginar, sem ter visto, e mesmo assim ainda não é a realidade: o que aconteceria com a IDF se atirasse em um cidadão dos EUA desaramado, e o fato de eu ter dinheiro para comprar água quando os soldados destroem os poços, e, é claro, tenho a opção de ir embora. Ninguém na minha família foi bombardeado e ninguém é visado de uma guarita na rua principal da minha cidade.
Tenho casa. Tenho direito de ver o mar. É difícil me prenderem durante meses e anos sem julgamento, já que sou cidadã estadunidense. Quando saio para a escola tenho certeza de não encontrar soldados armados até os dentes em um checkpoint com o poder de decidir se posso ou não seguir em frente e se puder, se vou poder ou não voltar para casa depois.
É revoltante chegar e entrar breve e incompletamente no mundo destas crianças, e me pergunto como seria para eles, chegar no meu mundo. Eles sabem que não é comum nos Estados Unidos os pais serem baleados e sabem que de vez em quando vê-se o mar, sobretudo quando está do lado. Mas quando se vive em um lugar tranquilo em que nem se cogita no valor da água e ela não é roubada por bulldozers durante a noite, e quando se passa uma noite sem se preocupar se você não vai acordar com soldados invadindo sua casa ou as paredes sendo derrubadas, e quando se conhece pessoas que perderam tudo - quando se vive a realidade de um mundo rodeado de assassinos, tanques, colonos armados e um muro gigante de metal, pergunto-me se dá para perdoar o mundo pelos anos de infância gastos existindo - apenas existindo - resistindo ao constante estragulamento da quarta potência militar do planeta apoiada pela maior potência mundial - em sua tentativa de apagá-lo de sua casa.
Isto é algo que me pergunto sobre estas crianças.
Pergunto-me o que aconteceria se eles realmente soubessem.
Estou em Rafah, uma cidade de 140 mil pessoas, 60% das quais são refugiados - muitos pela segunda ou terceira vez de êxodo forçado.
Rafah já existia antes de 1948, mas a maioria dos habitantes atuais são descendentes de famílias relocalizadas aqui de suas casas na Palestina - hoje Israel. Rafah foi cortada na metade quando o Sinai foi devolvido ao Egito. O exército israelense está construindo um muro de 14 metros de altura entre Rafah e o Egito, construindo uma no-mans land no lugar de residências que se encontram na fronteira. Seiscentas casas já foram destruídas pelos bulldozers e o número de casas parcialmente destruídas é maior ainda.
Além da presença constante de tanques nas fronteiras, tem tantas guaritas que perdi a conta. Não existe enhum lugar aqui sem guaritas com soldados vigiando seus passos. E é claro que não tem nenhum lugar inacessível aos helicópteros apache ou às câmeras de zepelins invisíveis cujo barulho se escuta durante horas em cima da cidade.
Espero que vocês venham aqui. Meu grupo internacional é de seis pessoas. Nossa presença foi solicitada nos bairro Yibna, Tel El Sultan, Hi Salam, Block J, Zorob, Block O e Brasil. Eles precisam também de presença noturna constante em um poço perto de Rafah para que a IDF não o bombardeie, já que acabaram de destruir duas fontes de água em Rafah. Fiquei sabendo que a cisterna que a IDF destruiu na semana passada fornecia a metade da água que a população usava. Depois das dez horas da noite é muito difícil sair na rua porque os soldados israelenses atira em qualquer um. Muitas comunidades solicitram presença internacional para formar escudos que impeçam a demolição de mais casas. Somos pouco demais.
Os palestinos seguem a mídia internacional e me disseram que está tendo marchas de protest nos Estados Unidos e na Inglaterra. Então obrigada por não me fazer sentir uma completa Polyanna quando tento dizer às pessoas aqui que tenho muitos compatriotas que não concordam com a política governamental e que estamos aprendendo, com exemplos estrangeiros, a resistir."
Foi um dos bulldozers que Rachel condenava que a esmagou no dia 16 de março de 2003.
Foi seu caso que foi julgado após uma longa campanha feita pela família e o soldado foi absolvido "pelo acidente" que os ocidentais presentes garantiam ter sido proposital.  
"I feel like I'm witnessing the systematic destruction of a people's ability to survive ... Sometimes I sit down to dinner with people and I realize there is a massive military machine surrounding us, trying to kill the people I'm having dinner with," disse Rachel, dois dias antes de ser esmagada.

"It is curious that physical courage should be so common in the world and moral courage so rare."
Mark Twain

O assassinato de Rachel não foi dissuasivo, e sim um motivo para outros jovens estrangeiros abraçarem a causa palestina.
Em abril do mesmo ano 2003 a IDF fez outra vítima, o inglês Tom Hurndall, de 21 anos.
Tom era estudante de fotografia, daqueles jovens afoitos que abraçam o idealismo crítico de Kant e o idealismo absoluto de Hegel com sofreguidão e não discansam enquanto não tiverem posto ambos em prática e em profusão.
Os jornalistas cansados de guerra, céticos, empedernidos, costumam tratar com condescendência estes jovens quando cruzam caminho - os que ainda acreditam que dá para mudar o mundo costumam ajudá-los o quanto possível.
Seu primeiro ato militante foi em Bagdá, onde junto com dezenas de outros cidadãos ocidentais anônimos, transformou-se em escudo humano contra o bombardeio de Inglaterra e Estados Unidos. Em vão.
De lá para a Palestina foi um pulo compreensível em sua trajetória idealista.
Chegou como voluntário do ISM e o choque com a realidade quotidiana dos palestinos foi brutal.
Foi para Rafah e lá seguiu os passos de Rachel, tentando evitar demolição de casas e outras arbitrario-iniquidades da IDF e dos colonos.
Logo conquistou os adultos e a meninada gazauí com sua alegria e determinação de não ser cúmplice de Israel em nada.
No dia 11 de abril em que foi baleado, ele estava andando na rua com um grupo do ISM, em Rafah, vestido com o colete laranja fluorescente dos ativistas estrangeiros, facilmente identificável de longe, quando franco-atiradores da IDF abriram fogo contra os moradores.
Tom viu que três crianças de 4 a 7 anos ficaram paralisadas de medo e voltou para salvá-las. Pôs o menino a salvo e foi buscar as duas menininhas. Estava claramente desarmado e usando o colete de cor espalhafatosa inconfundível dos ativistas - facilmente identificável à distância até por miopíssimos. Quando estendeu os braços para pegá-las, levou um tiro na cabeça.
Seus companheiros prestaram socorro imediato, mas a ambulância teve de esperar duas horas na barragem antes que ele fosse levado para o hospital em Be'er Sheva, de onde foi transportado para a Inglaterra. Ficou em estado de coma até os aparelhos serem desligados nove meses mais tarde.
O Tribunal britânico declarou o assassinato ilegal, mas em Israel, após meses de finta e trâmites surreais, o tribunal militar condenou o soldado por obstrução à justiça, ou seja, por ter mentido sobre os fatos e por morte acidental. A sentença foi de onze anos e meio de prisão. O assassino foi solto em 2010 por "bom comportamento", sem servir nem metade da pena.
 Um dia, Tom escreveu em seu diário:
"Acordei por volta das oito horas em Jerusalém e saímos às dez horas. Desde então, já fui atacado com gás, bala, perseguido por soldados, granadas foram jogadas do meu lado e fui atingido por estilhaços... quando nos aproximamos da área foi estranho, com as balas voando, senti um frio na barriga, mas foi só. Tinha certeza que estávamos sendo vigiados, seguidos, e que minha vida dependia da decisão de um soldado ou de um colono puxar ou não o gatilho..."

"The darkest places in hell are reserved for those who maintain their neutrality in times of moral crisis".
Dante Alighieri

A terceira vítima estrangeira do ano 2003 fatídico foi o produtor-documentarista gaulês James Miller, várias vezes premiado inclusive com o Emy nos Estados Unidos.
James também foi vítima de tiro mortal de outro sniper da IDF, no dia 02 de maio, em Rafah.
A investigação britânica concluiu em assassinato ilegal.
O Tribunal israelense absolveu o assassino argumentando que não havia provas de quem tinha sido responsável pelo crime. Os advogados ingleses contra-argumentaram com provas, mas as autoridades israelenses ignoraram os apelos.
James tinha 34 anos e estava em Rafah trabalhando em um documentário (abaixo) que passou na HBO mesmo sem ter sido terminado.

"Moral excellence comes about as a result of habit. We become just by doing just acts; temperate by doing temperate acts, brave by doing brave acts."
Aristóteles

POST SCRIPTUM:
Por causa dos assassinatos citados acima, mais o de Vittorio Arrigoni e Juliano Mer-Khamis, os ativistas estrangeiros são menos visados e não correm nem um milésimo do perigo que corre um palestino no dia a dia. Atualmente os soldados andam correndo dos coletes laranja fluorescentes porque não querem problemas internacionais. Pois embora a justiça israelense só puxe as orelhas dos assassinos que viram herois para os extremistas sionistas, os assassinatos geram má publicidade que os persegue a vida inteira. Querendo ou não, matar não é assim tão fácil como se pensa; sobretudo quando o assassino é apontado com o dedo; como acontece quando um soldado mata um estrangeiro.
Vittorio: http://mariangelaberquo.blogspot.fr/2011/04/vittorio-arrigoni-o-martir-que-faltava.html
Juiano: http://mariangelaberquo.blogspot.fr/2012/12/teatro-da-liberdade-de-jenin-lava-alma.html

"The hope of a secure and livable world lies with disciplined nonconformists who are dedicated to justice, peace and brotherhood.
Injustice anywhere is a threat to justice everywhere."
Martin Luther King

Documentário: Rachel, an American Conscience

Documentário Journeyman: Dying for Palestine (Tom Hurndall)

Documentário de James Miller: Death in Gaza

Livro : The Only House Left Standing - The Middle East Journals of Tom Hurndall
De Tom Hurndall e Robert Fisk. Editora Trolley Books
          Filme do Channel 4 britânico (trailer): 
The Shooting of Thomas Hurndall 8)
Direção de Rowan Joffe, com Kerry Fox, Stephen Dillane, Bader Alami, Ziad Backry, Mark Bazeley.  


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