domingo, 24 de fevereiro de 2013

Oscars 2013: Oriente Médio perde para o insólito


Hollywood e os grandes estúdios cinematográficos estadunidenses, são ostensivamente anti-palestinos.
Porém, na Academia dos Oscars, esta estatueta que faz sonhar artistas e "cartolas" do cinema nos Estados Unidos e mundo afora, a história vem evoluindo positiva e paulatinamente.
Talvez pela mudança do perfil dos seis mil "eleitores" das 15 áreas que compõem a cinematografia.
A maior evolução tem sido na categoria de documentário.
Sem dúvida graças aos novos membros - inclusive o documentarista Michael Moore - que vêm integrando o grupo de eleitores nos últimos anos.
Aliás, foi graças a Michael Moore e a uma artilharia de advogados que o palestino Emad Burnat, co-diretor de um dos documentários em competição, conseguiu entrar nos Estados Unidos com a mulher Soraya e o filho Jibril de oito anos. No dia 17 de fevereiro, a caminho de Los Angeles, a família foi barrada no aeroporto por oficiais de imigração desconfiados.
Palestino?
"É terrorista, na certa!" pensaram os gringos ignorantes e bitolados.
Não, Emad Burnat não é terrorista. É um documentarista talentoso. Casado com uma palestino-brasileira, por falar nisso. A família toda adora o Brasil, a casa ostenta a nossa bandeira e é cheia de lembranças tupiniquins. Um pouco como a minha em Paris. Coisa de brasileiro que mora fora, mas que conhece o mundo, sabe da sorte de ter nascido no PaTropi e tem realmente orgulho de ser brasileiro.

Pois bem, este ano a Academia de seis mil membros que selecionam e elegem a obra e o obreiro que ficarão para a história, selecionou dois documentários políticos que revelam bem o Oriente Médio e o conflito Israelo-Palestino.
Um deles é de um diretor israelense. O outro é de direção mixta, israelo-palestino.
Vou começar pelo documentário israelense: The Gatekeepers. Literalmente, Os Porteiros.
O diretor do Gatekeepers é Dror Moreh.
Dror faz parte da "turma" de Ari Folman (Valsa com Bashir) e de Hagai Levy (In Treatment).
Seu último documentário foi sobre o general ex-primeiro ministro Ariel Sharon. Esta é outra história que faz parte da mesma História - que saltamos hoje justamente para abordar o Conflito de outra forma.
The Gatekeepers - mostra o lado "secreto" do conflito, através de entrevistas com seis ex-diretores do Shin Bet ou Shabak (como é conhecido inernamente), o serviço secreto israelense "doméstico".
Visualmente, o documentário passa das entrevistas ao desenho animado.
No conteúdo, revela a opinião dos últimos chefes do Shin-Bet sobre a evolução do conflito. São homens que falam de peito aberto dos horrores que cometem porque se sabem ao abrigo das punições internacionais que merecem. A montagem não é duvidosa como outros - aliás, nem Dror, nem ninguém, é bobo de fazer inimigo nesta área.
Apesar da verdade que sai da boca desses homens do Estado, encarregados de proteger Israel de qualquer jeito, a qualquer preço e toda hora, Dror foi muito criticado em seu país. Pela ala dura ligada a Netanyahu e pela extrema mais direita ainda. Alegaram que Dror estava fazendo uma má publicidade de Israel.
O documentário não é má publicidade de ninguém nem de nada. Revela os fatos vistos e decididos pelos sucessivos governos israelenses de 1980 a 2011.
A meu ver, o documentário peca por uma omissão compreensível para pessoas como Dror Moreh, Ari Folman, Hagai Levy. Insatisfeitos e até indignados com a situação de ocupação, cheios de boas intenções éticas, porém, intelectualmente asseptisados pela bolha intelecto-liberal em que vivem em Tel Aviv. Longe dos fatos e das consequência reais dos atos destes homens sobre outros homens, mulheres e crianças de carne, osso e sangue que os entrevistados derramam à vontade.
Embora Dror interpele seus compatriotas de vez em quando, de trás e na frente da câmera, para que o espectador escute bem o que esses homens estão contando, acho que o público internacional, sobretudo estadunidense, vai ter dificuldade em compreender esta nuância.
O pecadilho que o Gatekeepers comete é a ausência de perspectiva palestina.
Nele, os palestinos são reduzidos a entidade étnica abstrata em um cenário de bomba-relógio. E no final, temo que a mensagem que Dror tenta passar seja entendida errado. Ou seja, que quem não conhece a realidade saia do cinema com a imagem dos palestinos arquitetos de terrorismo em vez de resistentes que defendem sua terra e sua identidade.
Por exemplo, no capítulo de Ami Ayalon (1996-2000), ele cita uma frase supostamente dita por Jabril Rajoub, da Autoridade Palestina: "Vitória é vê-los sofrer", resumindo grosseiramente a luta da resistência palestina. O paradoxo disto é ele dizer em seguida que foi ouvindo esta suposta frase de Jabril que ele começou a empatizar com a luta palestina.
A alma humana é um mistério absoluto.
O documentário tinha tudo para ganhar o Oscar. O assunto é bem atual. As entrevistas são "furos" jornalísticos. Enfim, vê-se que a produção dispôs de toda grana que precisava e a montagem é um fogo de artifício intercalado de palavras.
O contrário do documentário palestino. Que prima pela sobriedade ditada pela simplicidade das imagens.
Para mim, deu empate.

O documentário feito do lado oriental da Linha Verde se chama 5 Broken Cameras - 5 câmeras quebradas.
Foi feito pelo israelense Guy Davidi e pelo palestino Emad Burnat.
A filmagem começou em 2005. No fim da Segunda Intifada. Com a primeira câmera de segunda mão. Presenteada por um cinegrafista estrangeiro para quem ela não tinha mais serventia.
Emad era um dos centenas de camponeses cisjordanianos que têm suas lavouras desapropriadas para a construção de invasões judias ou são separados de suas hortas por checkpoints, muros e arames farpados.
Começou a filmar o nascimento do filho Gibril e terminou documentando o dia a dia em sua cidadezinha. O combate diário dos habitantes contra um muro que os israelenses teimavam e teimam em construir.
(Já virou tradição. Todas as sextas-feiras, desde 2005, Bil'in vira palco de manifestações que reuniões palestinos e estrangeiros engajados em Direitos Humano. A cidade virou um símbolo da resistência palestina pacífica ao Muro da Vergonha que vem devorando terras dos nativos ao longo da Cisjordânia.)
"As Cinco Câmeras" é um condensado de emoção, riso, e revelação da alma palestina e do palestino. Longe das manchetes de jornais e do coletivo. O documentário mostra os indivíduos, a vida, as expectativas, a coragem, a luta do Golias anão contra o gigante David que trocou o estilingue por aviões de combate, drones e caterpillars armados e fusis de gatilho facílimo.
Como no documentário da brasileira Julia Bacha "Budrus", o espectador segue a realidade da vida. Nua e crua. É a emoção emotiva e a emoção da expectativa que envolve o público do início ao fim; que não termina.
Para o brasileiro tem ainda esta identificação com Emad através de sua mulher Soraya. Nossa compatriota. Palestina filha de pais refugiados na nossa pátria da qual ela tem saudade, mas que não era dela. A dela, de seus ancestrais, é a Palestina. Está em sua cara e em suas lágrimas.
Além dela, tem Jibril. Que vemos nascer e crescer ao longo dos anos e das câmeras que os soldados israelenses destroem uma atrás da outra e que é substituída por outra que continua a filmar inexoravelmente.
Uma marca da resistência. Uma é quebrada, outra aparece. Como na sociedade palestina e seus líderes.
Para quem é seguidor deste blog e da História do conflito israelo-palestino, assistir o Cinco Câmeras Quebradas é como conhecer pessoalmente alguém em quem se ouviu falar. Pôr cara em nome e concretizar o abstrato. Pois vemos e ouvimos pessoas reais que vivem, conversam, a quem acabamos nos apegando simplesmente pelo fato de eles e nós sermos humanos.
Já o Gatekeepers completa a informação deste blog pelo outro lado. O dos comandantes dos atentados israelenses contra os palestinos que encontramos ao longo da história do conflito. Relatam em detalhes como realizaram o assassinato de personagens legendárias da resistência.

Alguém me perguntou se estes documentários terão algum efeito na opinião pública israelense e fui obrigada a responder com o ceticismo de sempre.
O Gatekeepers foi recebido com indiferença até em Tel Aviv. Só afetou os que já são convencidos que a ocupação e a opressão são um mau caminho.
Quanto ao 5 Broken Cameras, Guy Davidi vem penando para conseguir mostrá-lo nas escolas de seu país. Pelo menos em Haifa e Tel Aviv, cidades mais liberais e com habitantes mais instruídos. Nas dominadas pelos ultra-sionistas, corre até perigo.
Porém, há esperança que cumpram seu objetivo, se forem assistidos e compreendidos no exterior, onde a real-política é realmente decidida e a opinião pública tem poder sobre o que os presidentes decidem.
Os dois documentários concorrem com dois outros de alta qualidade.
E nos filmes, sabe-se que Argo (http://mariangelaberquo.blogspot.fr/2013/02/argo-historia-e-estoria-do-ira.html) sempre foi o favorito do público internacional.

POST-SCRIPTUM
No final das contas, o documentário vitorioso do Oscar não foi nem  The Gatekeepers, nem 5 Broken Cameras, nem The Invisible War (mencionado no blog da semana passada). Três obras potiticamente engajadas e sim Searching for Sugar Man, uma obra de igual qualidade, mas sem controvérsia que atrapalhasse a festa holywoodiana.
O protagonista de Sugar Man é um ilustre desconhecido nos Estados Unidos que fez um sucesso extraordinário na África do Sul no período do apartheid.
O cantor-compositor Sixto Rodriguez. Lançou dois discos em 1970 e 1971 de música folk-rock de alta categoria, mas, talvez por ser latino, a imprensa e o público estadunidense ignoraram totalmente.
Quem esteve na África do Sul na década de 80 ainda deve ter ouvido nas rádios as músicas do primeiro disco Cold Fact que entrou no país em uma bagagem e pouco a pouco chegou no primeiro lugar das paradas.
I wonder, por exemplo, tocava em todas as rádios e casas. E por isso ficou na cabeça dos estrangeiros atentos, que pisaram em terras "apartheidianas" até a mudança do regime.
O documentário do sueco Malik Bendjelloul é ótimo. Mereceu, como qualquer um dos três acima, ser premiado na roleta russa do Oscar.   
E vai certamente dar a Sixto a oportunidade que não teve quando era jovem.
Além disso, é sempre bom lembrar, à geração atual, as origens do apartheid que vem sendo aplicado na Palestina. Embora este não seja o foco do documentário.


Documentário de Dror Moreh: The Gatekeepers
Íntegra: http://www.teledocumentales.com/the-gatekeepers/
Trailer
"The settlements are the biggest obstacle to peace. If there is something that will prevent peace, it's the settlements and the settlers. I think this is the largest and most influential and most powerful group in Israeli politics. They're basically dictating the policy of Israel in the last years. I think that definitely for the Palestinians, the settlements are the worst enemy in their way to the homeland. When they see everywhere, in Judea and Samaria now, the settlements that are built like mushrooms after rain, they see how their country is shrinking."  Dror Moreh
Entrevista com Dror Moreh

Documentário de Guy Davidi e Emad Burnat: 5 Broken Cameras
English subtitles
Subtitulado en español

"Durante as duas primeiras semanas de filmagem, senti o peso crescer no meu estômago, inchar, pronto para explodir em um ato violento. Entendi que a violência dos homens aqui na Palestina não é uma pulsão mortífera. É uma explosão que cresce paulatinamente, alimentada pela frustração. Mas nunca baixei a câmera para usar meus punhos. Continuei a filmar até quando meu irmão foi preso. As imagens têm mais impacto. A câmera é a única realidade do meu engajamento. Ela quase causou minha morte. É um escudo moral, mas também uma ameaça física, pois ela chama a atenção do atirador sobre quem quer testemunhar a realidade no terreno."
Emad Burnat

Trailer do documentário da brasileira Júlia Bacha: Budrus

Al Jazeera, Riz Khan : The story of Budrus

Trailer do coumentário sueco-britânico de Malik Bendjelloul : Searching for Sugar Man


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