sexta-feira, 20 de agosto de 2010

As águas que rolam no Oriente Médio

Oriente Médio normalmente rima com conflito e com petróleo, gás, oleodutos, gasodutos, e outros derivados que fazem a fortuna dos sheiks e das indústrias correlacionadas. A água só preocupa os cidadãos a quem ela falta no dia a dia e aos governos que têm de administrar os magros recursos que a natureza lhes confia.
Na geopolítica hídrica, o Oriente Médio vai do Mar Negro ao Canal de Suez e engloba Iraque, Turquia, Síria, Líbano, Jordânia, Israel e Palestina. Estes países compartilham mais ou menos as mesmas bacias e o mesmo clima, com precipitações anuais relativamente baixas – entre 700 a 100mm das planícies litorâneas a regiões desérticas da Síria e do Iraque e 1 a 3m nas montanhas da Turquia (Taurus), Síria (Djebel Ansariyya), nos montes do Líbano, no Golan e na Alta Galiléia.
A grande privilegiada é a Turquia, país-ponte entre Europa e Ásia que abriga uma Bacia imprescindível aos vizinhos. Os rios Tigre e Eufrates nascem em suas terras, seguem para a Síria e atravessam o Iraque onde as águas de um e outro se encontram e correm para o Golfo Pérsico. Lá formam o estuário Chatt al-Arab que constitue um ecosistema precioso no mundo árabe.
O débito médio do Tigre é mais elevado do que do Eufrates (1.400 metros cúbicos por segundo contra 840) por causa da água que recebe dos montes Zagros (a maior cordilheira do Iraque e a segunda do Irã), dos afluentes Grande Zab que nasce na Turquia e o Pequeno Zab que nasce no Irã. Apesar disto, é o Eufrates que é mais explorado e por isto a diferença do débito dos dois rios tende a aumentar, pelo menos até os projetos de desvio de água de um para o outro se concretizarem.
O Eufrates tem 2.330 km de extensão (455 na Turquia, 675 na Síria, 1.200 no Iraque) e o Tigre 1.850 km (400 na Turquia, 32 na Síria e 1.418 no Iraque). Para um sul-americano e um brasileiro cujos rios Paraná tem 3.160 e apenas o Araguaia, Tocantins e São Francisco alinhados abrangem 8.420 km, estas dimensões podem parecer acanhadas. E são, para o número de pessoas que deles dependem e para quem o Chatt al-Arab representa uma riqueza maior do que todos os poços de petróleo acumulados.
A bacia do Eufrates cobre 440.000 km² nos três países citados e na Arábia Saudita. A do Tigre, 375.000 km² dos quais um terço se encontra no Irã. Estes primos distantes ou irmãos (varia com as circunstâncias) jamais brigaram por petróleo. Pela água, vivem em tensão. E a Turquia é a prima rica da família hídrica da região.
A Síria dispõe de 15 bilhões de metros cúbicos renováveis, o que per capita, por ano, corresponde a 947 metros cúbicos. Seu volume de chuvas está por volta de 318mm, o que é baixo. O país só tem autonomia de 7km cúbicos o que o leva a uma dependência externa bastante elevada. Entre outros, 50% de sua reserva depende do Eufrates que vem da Turquia, 20% do Oronto libanês e 2% do Yarmuk da Jordânia, e a demanda está aumentando com o crescimento da população.
Em comparação com a Síria, o Iraque é teoricamente opulento com seus 106 bilhões de metros cúbicos – 30 do Eufrates e 50 do Tigre. Mas proporcionalmente é pobre, já que 40% de seu território é desértico e que o volume de chuvas, concentradas no mesmo período brasileiro de dezembro a fevereiro, é fraco. Os iraquianos já usam 93% das terras cultiváveis, que constituem 26% de sua superfície global e devido à salinidade elevada da água, somando todas as safras, dos 8 milhões de hectares apenas três a cinco são realmente produtivos.
Nunca houve no Iraque uma política hídrica – exceto o canal de drenagem de 512 km, construído em 1992 para encaminhar água salgada para o golfo. Todos os regimes se concentraram na produção e exploração do petróleo que é a riqueza nacional e representa 95% das exportações. A indústria agrícola ocupa o segundo lugar, mas com o bloqueio que durou da Guerra do Golfo em 1991 à ocupação do país em 2003, ela representa apenas 8% do PIB.
Na época da invasão, 60% da população iraquiana estava desempregada e dependente da distribuição pública de alimentos. Com o desmembramento do Estado, a situação ficou ainda mais grave. Hoje, a reconstrução do Iraque depende essencialmente de educação, de água e de benefiamentos como eletricidade, irrigação, sistema de drenagem, saneamento, encanamento, etc. A água que existe não está sendo nem distribuída e nem é potável – a não ser na Green Zone de Bagdá, onde os ocidentais estão instalados. Apesar do petróleo, nos últimos anos o país contraiu uma dívida de 120 bilhões de dólares para sobreviver e pagar obras, sobretudo das infra-estruturas bombardeadas.
Na Turquia, nos lugares em que tem água à vontade, o governo, com segundas intenções, vem desenvolvendo projetos de exportação para Chipre e Israel – para este último, suspensas até segunda ordem por causa do ataque da Flotilha de ajuda humanitária à Faixa de Gaza e ao assassinato dos 9 turcos durante a operação militar.
Mas em certas regiões também há penúria, como no Brasil, devida à desigualdade de volume e assiduidade de precipitações atmosféricas. E o país tem dificuldades com o aprovisionamento em certas áreas agrícolas e nas grandes cidades como Istambul e a capital Ankara, onde a seca de 2006/07 exigiu cortes no fornecimento de água.
Para resolver o problema interno, a Turquia lançou em 1977 uma obra hidráulica gigantesca na Anatólia do Sul, GAP (Great Anatolia Project, em homenagem ao criador do Estado). Este é composto de 22 açudes, 19 centrais elétricas e dois túneis para transporte de água para uma extensão que cobre 10% do território turco que concentra 9,5% da população.
O açude Atatürk no Eufrates (169 metros de altura e 1,8 quilômetros de comprimento), finalizado em 1990, é o ponto central do projeto. Segundo Ankara, os 32 bilhões de dólares investidos serão recompensados com segurança alimentar, energia elétrica da zona e aumento de 12% do PIB. Em contrapartida, o solo se empobrece a olhos vistos e a poluição aguda de nitratos e fosfatos usados nas plantações é bastante elevada.
Fortuna de uns, infortúnio de outros.
As consequências arqueológicas (destruição de sítios preciosos como Halfeti e Zeugma), humanas (imersão de vários povoados) e ambientais têm sido incalculáveis. Um dos projetos mais controvertidos foi o de Ilisu, no Tigre, cujo volume de estragos – desapropriação de 55.000 pessoas e submersão de 300 km² de terras com vários sítios mesopotâmicos como o de Hasankeyf, que resguarda ruínas trogloditas, romanas e medievais – provocou tamanha polêmica nacional e internacional que no ano passado os investidores alemães, austríacos e suissos acabaram se retirando porque a Turquia desrespeitava os 153 critérios sociais, econômicos, culturais e ambientais fixados pelo Banco Mundial.
Mas não se pôs um ponto final. Os Bárbaros do século XXI, como a China já vem sendo chamada, se prontificaram para susbtituí-los na mesma hora. E la nave va... já dizia o poeta cinematográfico.

É claro que os sírios e os iraquianos se sentem lesados com as represas que amputam o Tigre e o Eufrates de quase um quarto de seu débito de água.
É claro que se rebelaram com a apropriação turca do manancial hídrico comum.
E é compreensível que se fale em um possível conflito entre Turquia e Síria em torno disto.
Mas é difícil para Ankara arriscar a inimizade dos vizinhos com os quais mantém relações cordiais e a quem é ligada, desde a década de 70, por um acordo tácito que vem respeitando, apesar do GAP.
A prova disto é que durante a Guerra do Golfo em 1991, quando os EUA e seus aliados pediram que bloqueasse a água do Eufrates em direção ao Iraque, a resposta da Turquia, membro da OTAN, foi clara: Podem usar nosso espaço aéreo e nossas bases militares para bombardearem o Iraque, mas nós não lhes cortaremos a água.
O fato é que o maior escudo para os países que exploram recursos hídricos próprios ou alheios é o das forças armadas e das vias diplomáticas.
Nesta ordem exata.
No contexto atual, nem a Síria nem o Iraque têm meios de enfrentar a Turquia. Sabem que o combate é desigual. Mas caso Ankara prossiga a mesma política de expansão hidráulica, estima-se que entre 2020 e 2030 não sobre mais água do Tigre e do Eufrates para os demais países meridionais. Aí é possível que o instinto de sobrevivência faça que reajam.
Por enquanto, bem que mal, a prima rica tem conseguido resolver a questão sozinha, de maneira amigável. Muito por não querer indispor-se com Paris, Berlin, Roma, etc. e tal. Um país que já tem o peso de um passado genocida do qual não se redime (massacre de 1,2 milhões de armênios, 1915/16) e que pleiteia assiduamente a integração na União Européia, sabe que precisa do apoio da opinião pública dos países que a criaram. Sabe também que atingindo seu objetivo terá de submeter-se à política e à ética desta Comunidade. Enquanto isto, com a cumplicidade da China, o desvario segue.


Lista de produtos das colônias a serem boicotados:
http://peacenow.org.il/eng/content/boycott-list-products-settlements;
Free Gaza Movement: http://www.freegaza.org/;
Global BDS Movement: http://www.bdsmovement.net/


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