domingo, 15 de fevereiro de 2015

American Sniper : Apologia de homicídio



Desde que escrevi sobre Argo vêm me pedindo opinião sobre um filme e outro ligado a política. E quando o Oscar se aproxima, são os indicados que vêm à pauta. No fim desta matéria cito um a um de maneira sucinta. Mas o assunto principal é American Sniper. O novo filme de Clint Eastwood, o protótipo do cineasta republicano; reacionário até a alma. Nesta safra sectária 2014 perde os escrúpulos que restavam e chega ao ápice de transformar um criminoso em herói e vileza em heroísmo. Uma vergonha.
American Sniper está batendo recordes de bilheteria nos Estados Unidos. Não me surpreende, considerando as cornetas nacionalistas e a interpretação de Bradley Cooper que faz de Chris Kyle um bom rapaz bem intencionado; enfim, em um "quiet american" no que ele tem de mais funesto ao lugar onde age com as "melhores intenções" ditadas por sua estreiteza de idéias.
É em nome deste "ideal" tacanha do American Way of Life que Kyle entromete-se em vida e país alheio com ignorância voluntária da cultura local, da história nacional, da História Universal, das águas turvas em que seu país navega sempre de ressaca de outras águas limpas que avermelha.
Kyle também é um protótipo, sem o verniz de Yale ou de Harvard, do Quiet American que o grande Grahan Greene retrata em seu livro homônimo (blog de 04/03/12).
Por ser crédulo e com propensões violentas, Kyle é presa fácil da grande mídia inepta ao questionamento de comunicados oficiais que servem os interesses imediatos do Pentágono e a incrassar os 1% que controlam o capital mundial.
A mim, American Sniper deu ojeriza da abertura ao epílogo. Incrível o tecido de fabulações preconceituosas que Clint Eastwood serve às massas como se fossem verdades sobre um cidadão fidedigno e respeitável.
Só conheço este tal Kyle de má-fama em Ramadi, uma das cidades iraquinas em que ele atirou à vontade. Lá, ficou conhecido como Al Shaitan - O Diabo. Era o companheiro da morte e a morte o acompanhava. Puxava o gatilho aleatoriamente e sem piedade.

Faz anos que tomei distância de filmes de guerra hollywoodianos. Desde que entendi como deturpam a história transformando, sem vergonha, os marines em poços de coragem e integridade, sendo que os "pobres" rapazes temem até a sombra e cometem crimes comuns ou/e de guerra às vezes por impulsão assassina (como Kyle), outras por monotonia, e quando são bons meninos, por medo, grande, muito grande no terreno.
Enfim, Hollywood transforma até Jesus em panaca e o público cristão bate palmas na sessão da tarde. Portanto, é normal que bata para predadores em forma de supostos cães policiais, codinome, Chris Kyle. Ou Kyle/Eastwood em simbiose total.
Para quem ainda não assistiu e pretende assistir American Sniper, por favor, assista com um pé atrás. Não se deixe levar pela propaganda de Eastwood que usa todos os ingredientes de um passatempo cinematográfico para aliciar o público para sua cruzada anti-islâmica, anti-árabe, anti tudo o que destoe do American Way of Life.
A estória é mais do que tendenciosa. Não li o livro de Chris Kyle porque não tenho tempo para ler bobagem, sobretudo auto-biográfica de um cara que me era descrito como psicopata. Mas o filme parece ter sido fiel à "obra" tecida de auto-elogios ditados pelo protagonista e co-assinada.
Não sei o livro, mas a obra de Eastwood é pontuada por ufanismo incompreensível quando se sabe que a atuação dos EUA no Iraque nos 10 anos de invasão e ocupação é uma vergonha e não uma honra. Se eu fosse gringa faria meu mea culpa e calaria o bico; ou melhor, criticaria do início ao fim. Eastwood, não, se vangloria de algo que uma pessoa normal, consciente, sensível, repugnaria.
No filme há uma única cena que representa grande parte dos marines desiludidos. Rápida. A do enterro de um Seal em cuja carta, lida pela mãe, questiona o envolvimento de seu país no Iraque - que Kyle refuta e critica illico.
O filtro é tal que não há nada que denigra a imagem do sniper interpretado pelo charmoso e talentoso Bradley Cooper (digno membro do Actor's Studio que engordou para o papel a fim de aproximar-se mais fisicamente de Kyle).
As opiniões contraditórias, as histórias de seus conterrâneos do Texas, seus assassinatos 'errados', sua violência na vida civil, tudo isso é brevemente mencionado e logo desculpado ou negado - embora quem o tenha conhecido diga, off the record, que o PTSD (Desordem de comportamento pós-traumático) que 'justifica' 'alguns' deslizes de Kyle eram mais fanfarronices do que o trauma que o bom rapaz Bradley Cooper desempenha às lágrimas.

Menino iraquiano
alvo errado de um sniper gringo
E como nos EUA mede-se um homem por quanto fatura, Clint Eastwood está no auge.  A Warner Brother está chamando American Sniper de "fenômeno cultural" por causa do número record de entradas vendidas.
Fenômeno de massa seria mais adequado, mas em Hollywood dinheiro é cultura e cultura é só o que dá lucro (não na definição de lucro do escritor francês Michel Montaigne de tornar-se melhor e mais sábio e sim o do usurário, é claro).
A palavra cultura nos estúdios californianos é um conceito desconceituado. De cultura o American Sniper não tem nada. De propaganda, carradas.
Concretamente, Eastwood abre o filme com a chamada para a oração matinal islâmica - o Allah uAkbar correspondente aos sinos de nossas igrejas - que se ouve antes da imagem do tanque invadir a tela.
Em crédito de boa-fé, vi aquilo como uma demonstração da descrepância entre a espiritualidade islâmica e a potência bélica do ocupante. Mas não, Eastwood não é Ben Affleck e não se preocupa em reconhecer crimes e enganos estadunidenses nem en passant. Ele, queria mesmo era criminalizar de cara uma religião apontando o inimigo muçulmano que seu sniper derrubaria um a um a uma que estivesse em sua mira.
A Kyle, o verdadeiro, é atribuída a morte de 160 pessoas; homens, mulheres, crianças. Todas, ao ver do Pentágono, righteous kills; ao ver dos iraquianos, muitos erros de interpretação e muita má-intenção.
Eastwood o isenta destas acusações sumariamente.
O próprio Kyle se gabava de ter assassinado mais de 250 pessoas. Sem arrependimento. Até as mulheres e as crianças de sua lista ele achava que valeram a pena. Acreditava que seus crimes em série salvavam, hipoteticamente, a vida de estadunidenses - o filme deixa claro esta sua opinião. Civis ou combatentes, o importante era matar, matar, para ele ter a ilusão que protegia os marines. Marines que, diga-se de passagem, invadiram o Iraque ilegalmente, oprimindo, matando e torturando indiscrimidamente. Mas isto para Eastwood/Kyle é irrelevante.

Vamos às primeiras cenas do filme. Mostra a desolação que o exército invasor plantou em Ramadi, Fallujah, enfim, onde despejavam bombas e por onde passavam seus tanques esmagando década, séculos, (além de vida urbana) de história arquitetônica (não se há de esquecer que o Iraque é a antiga Mesopotâmia).
Os escombros mostrados correspondem à realidade do que os EUA extirparam do país - civilização transmitida de geração a geração até o início do terceiro milênio.
Os destroços eram comércios e residências de gente como a gente que viu suas construções - em sentido amplo - partirem em fumaça de bombardeios e detritos de cimento de bombas e tanques estrangeiros.
Após a ilustração do cenário pós-"limpeza" aérea, Kyle está para executar mãe e filho, mas antes disso, Eastwood o enfoca em um plano contre-plongé que o engrandece e depois o "humaniza" para que seu ato criminoso seja, a priori, amenizado e justificado. O que ele faz? Volta ao passado, à família do assassino que quer endeuzar. Fabrica-lhe uma identidade emotiva com flashbacks sobre sua infância, sua fé cristã (?), sua formação de soldado-máquina de matar, seus amores, e sobretudo, a metáfora paterna entre homens e animais que insinua que Kyle aprendeu a não ser lobo nem ovelha e sim pastor alemão que vela sobre os mais fracos.
Pronto, Clint Eastwood fisgou o público. O espectador quer ser Kyle/Bradley Cooper porque compartilha estes valores, se não na prática, pelo menos na teoria cristã na qual fomos criados e que poucos aplicamos no dia a dia (ora, amar o próximo como a si mesmo é tarefa difícil, sobretudo quando o próximo difere e diverge de si, reza de outro jeito e fala outra língua...) .
Chris Kyle está longe de questionar-se sobre os ensinamentos de Cristo. Seu combustível é o Antigo Testamento e o Olho por Olho Dente por Dente que o verdadeiro cristão abomina.
Fica claro quando vê o noticiário que o leva a alistar-se no exército US. A cena é breve na telinha, mas eloquente. É a de atentados aos Estados Unidos na África.
Respondendo a perguntas, faço aqui uma digressão histórica a fim de lembrar o acontecido de fato.

Foram dois atentados simultâneos às embaixadas dos Estados Unidos no Quênia e na Tanzânia. Ocorreram às 10h30 do dia 07 de agosto de 1998. Em Nairobi, 243 mortos. Em Dar es Salaam, uma dúzia e dezenas de feridos.
Na época, o Pentágono ficou nocauteado. O modus operandis era novo; o ataque foi arquitetado e organizado minuciosamente, nada vazou, o que era inusitado; e a potência das explosões foi sui generis neste gênero de atentado.
Em Nairobi, a explosão foi tão forte que provocou a implosão de vários prédios do bairro. Daí o número elevado de vítimas.
Washington ficou em polvorosa. "Os EUA também tem pés de barro!" A CIA foi convocada para prestar contas da negligência que os fragilizara e fez mil conjecturas para livrar a cara.
A primeira suspeita caiu nos hutus da vizinha Ruanda - que haviam massacrado seus conterrâneos Tutsi há alguns anos - e dos oponentes ao ditador queniano Daniel Arap Moi, protegido pela Casa Branca. Isto apesar da reivindicação imediata de um certo Exército de Libertação dos Sítios Sagrados Islâmicos.
Na época já havia boatos que o milionário saudita Ossama Ben Laden, ex-comparsa de Bush pai contra os soviéticos no Afeganistão - vinha juntando os grupos extremistas islâmicos em uma única organização mais "eficaz" que ele chamou de Al-Qaeda, que em árabe significa A Base.
A CIA acabou entendendo que o responsável podia ser o "tal" Bin Laden que desde o fim de sua amizade com os EUA não parava de declarar-lhes fatwas - sentenças punitivas.
Bill Clinton, embaraçado então em teias de acusações extra-conjugais, tentou recuperar sua dignidade masculina e gringa ordenando o bombardeio de dois locais "suspeitos":  um campo de treinamento de mujahidine (plural de mujahid - M / mujahida - F, "combatente", em árabe) no Afeganistão e uma usina química no Sudão.
Ambas operações estéreis e  de fachada. A força pluri-nacional do Al-Qaeda e o sigilo imprecedente em que a organização operava inviabilizava a infiltração ou cooptação de agentes. Sem esses recursos de espionagem era dificílimo conseguir informação fiável sobre seu paradeiro e objetivos.
O atentado de 1998 foi um "ensaio" para os atentados em Nova York três anos mais tarde contra as Torres Gêmeas de Wall Street que Kyle segue em direto como o mundo inteiro, chocado.
E por incrível que pareça, Kyle assiste àquilo e resolve ir para onde exercer como sniper? O Afeganistão, que seu país bombardeia em seguida e ocupa semanas mais tarde (até esta data)? Em outro país em que o Al-Qaeda estava estabelecendo sua dita Fundação militar?
Não.
Clint Eastwood salta no tempo e no espaço e manda Kyle para o Iraque.
Nada a ver com o Al-Qaeda; mas nada mesmo. Nenhuma relação de causa-consequência-causa geopolítico-militar.
Saddam Hussein era um dos oponentes mais ferrenhos a Bin-Laden e ao Al-Qaeda. Seu país lhes era vedado, suas fronteiras eram invioláveis. Assim como o Irã dos Ayatolás.
Bush fez um favor para todos os grupos extremistas que hoje polulam no Iraque, poluem o Oriente Médio e ameaçam a Europa.
Mas a miopia reina e na leva do ódio, da paranóia de segurança a curto prazo, da ganância pelos ouros azul e preto, e do ciclo de vingança em que os EUA vivem mergulhados, foi fácil para W. Bush, com a cumplicidade de Tony Blair, induzir um país inteiro a acreditar em uma fabulação inverossímil. Tão inverossímil que até a ONU, tão propensa a apoiar os Estados Unidos, negou autorização de intervenção e condenou o projeto militar.
Apesar da história recente ainda estar na memória até dos jovens (bem-informados), no filme de Eastwood, não é o seu país que desafiou o Direito internacional que é o "bandido" e sim o país que foi vítima de seu devastador ato de pirataria - da abordagem à pilhagem.
É a história maquiada por uma grossa camada de estória que semeie ódio em mentes incautas.

A partir da chegada de Kyle a Ramadi, Fallujah ou outra cidade qualquer arrasada, o maniqueísmo domina o filme e induz a pensar que todas as vítimas de Kyle mereciam ser executadas a sangue-frio. Sendo que na verdade, inúmeras vítimas dos snipers estadunidenses eram civis inofensivos e sofridos. As de Kyle, como disse acima, idem.
Os righteous kills de Kyle, ou seja, os não civis, eram combatentes que consideravam estar no direito de defender sua pátria de invasores bárbaros. O que no fim, dependendo do ponto de vista, inocenta todos os assassinados, menos Kyle e seus superiores que davam as ordens ou inocentavam os "erros" do sniper.
Mas Eastwood, que está longe de ter a ética de um Ben Affleck, irreleva mais issso. Tinha uma mensagem e a transmitiu direitinho.
O sniper iraquiano "Mohammed" usa um turbante preto para assemelhá-lo aos bárbaros para-militares do ISIS. Ora, nesse ano 2004, que eu saiba, os resistentes ainda eram iraquianos. Além isso, por que cargas d'água um sniper local que conhece seu país poria um turbante preto que destoa dos tons de areia do Iraque inteiro? Além de tendencioso é um insulto à inteligência de um povo que resistiu aos ocupantes com coragem e muita ginga.
Até a edição do filme é feita para intelecto aquém da média. Ao retornar às imagens de mãe e filho, a cena é retomada do início como se o público já tivesse se esquecido. É barra. E nesta cena também reforça a lenda que os resistentes usam mulheres e crianças para ações militares. Na verdade, o recrutamento de mulheres e meninos é raríssima. 99 por cento das vezes em que mulher e menino entram em ação é por terem sido deixados sozinhos. Após os homens da casa terem sido assassinados. Aí tentam retribuir a "gentileza" com a violência que aprenderam com seu verdugo.
Tudo se aprende na vida, inclusive amor e crueldade.
Mas Eastwood não para nesta descrepância e nem nesta condescendência com a capacidade intelectual de seu público - ou bom conhecimento... Para que fique claro quem é o iraquiano "bom" e quem é "mau", os "bons" usam toucas brancas e os "maus" usam turbantes escuros. E insatisfeito com todos os clichês negativos dos iraquianos, ousa pôr um combatente nativo usando um compatriota como escudo. E quem salva a vida do menino ameaçado pelo bandido? O cowboy Kyle. Ou seja, o "mocinho".
A este filme de cowboys colonizadores contra índigenas também já assistimos, e muitos. E Hollywood induziu-nos a torcer para os soldados e colonos imigrantes em detrimento dos índios nativos. Como faz Clint Eastwood.

American Sniper não tem nada a ver com The Hurt Locker da Katryn Bigelow, mais próximo do real, menos parcial. De qualidade incomparável. Tanto que ela começa seu filme Oscarizado com uma frase do colega Chris Hedges que sabe do que fala: "The rush of a battle is a potent and often lethal addiction, for war is a drug."
No filme de Katryn este preceito é claro.
No de Eastwood, vago.
O desminador do Hurt Locker salva vidas como todo desminador faz. Sua função é vital. Sua vocação é humanitária. Qualquer que seja seu lado.
O sniper do American Sniper tira vidas como todo sniper faz. É uma arma letal. Sua vocação é quase sempre psicopática.
Katryn nos mostra a face humana de seu protagonista até então anônimo (interpretado por Jeremy Renner com sobriedade), seu ofício perigoso, solitário, altruísta, e em seu exercício demonstra, sem paternalismo, sem simplismo, onde e em quem, em guerra, reside o verdadeiro heroísmo.
Eastwood martela do início ao fim do filme que seu protagonista é um herói, contudo, não consegue mostrar nenhum heroísmo. Só vidas perdidas.
Tudo em seu filme é desumano: cidades "evacuadas"; famílias desalojadas para a segurança dos soldados; violência quotidiana inflingida aos habitantes do Iraque ocupado; pressão para transformar pais de família em informantes, em traidores da pátria - como se fosse normal impor esta indignidade a uma pessoa que só quer ficar em sua terra, com os seus, em paz; enfim, tudo é difícil de engolir sem engasgar.
Kyle trata os iraquianos de selvagens e seus chefes repetem a palavra para que o adjetivo fique claro, penetre na cabeça, fique gravado. Quem sabe é sua maneira de isentar a culpa dos Estados Unidos de ter 'asselvajado" milhares deles (uma minoria dos milhões de iraquianos) com sua própria selvageria.
Faz uma analogia implícita dos patriotas iraquianos com os para-militares - crias de seu programa de tortura em Abu Ghraib - que hoje integram o Isis.
Esta analogia é criminosa e irresponsável, pois até então os combatentes iraquianos só pensavam em livrar sua pátria dos estrangeiros. Al Bagdadi e seu Islamic State são uma aberração consequente da crueldade dos marines e não a causa. Quaisquer que sejam os esforços de Eastwood para insinuar o contrário jamais conseguirá esconder os fatos travestindo a história da destruição do Iraque. Não há heroísmo algum em subjugar o fraco. Quanto menos de espoliá-lo e negar-lhe até o direito de defesa, básico.
Eastwood não mostra os iraquianos como seres humanos e sim como alvos. Ele desumanisa um povo inteiro em imagens tendenciosas. Tudo o que mostra do povo ocupado é negativo. Até a hospitalidade, tão comum nos países árabes, é pervertida.
Já Kyle é descrito como um herói impecável, até louvado por um reservista que sobreviveu a Fallujah, uma das cidades fantasmas mostradas no filme.
Fallujah. Fallujah é um pesadelo para o Iraque inteiro e para os estrangeiros que viram as atrocidades cometidas pelos exércitos anglo-estadunidenses.
Portanto, vou responder uma segunda pergunta fazendo outra digressão histórica para lembrar o que aquelas ruínas do filme representam na geografia política do Iraque. Demos uma volta por Fallujah atacada, invadida, ocupada durante dez anos, e que, destroçada, resistiu até o fim, desmoronada. Fallujah, a indomável. Fallujah, que por os gringos a terem deixado exangue, exaurida, cairia  nas mãos do Isis mais tarde.
Fallujah: Cicatrizes da ocupação

Os Estados Unidos começaram a bombardear Fallujah em abril de 2003. Um mês antes da invasão terrestre.
A cidade foi palco de vários dramas que deixaram muitas sequelas materiais, físicas e morais.
O primeiro drama ocorreu no dia 28 quando os marines atiraram, sem nenhuma provocação, em centenas de participantes de passeata pacífica contra os Estados Unidos. 17 manifestantes morreram na hora, cerca de 70 foram feridos.
Em outra passeata, na mesma circunstância, os marines voltaram a abrir fogo nos habitantes desarmados matando dois iraquianos e ferindo 14.
Ninguém entendeu este ataque gratuito, sobretudo por o prefeito da cidade, Taha Bidaywi Hamed, ter sido eleito por tribos locais e ser pro-estadunidense. A maioria da população era sunita, mas civil; a cidade tinha poucos militares e nada explicava a violência dos soldados gringos.
A partir de então, Fallujah resistiu heroicamente durante meses, até ser esmagada com poderosas armas sofisticadas e químicas - fósforo branco, urânio empobrecido, as mesmas que os israelenses usariam na Faixa de Gaza em maiores quantidades.
Contudo, a resistência não se dobrava.
Em 2004, inconformados com a obstinação dos habitantes em não entregar sua cidade de mãos beijadas, os Estados Unidos a sitiaram e lançaram duas potentes ofensivas militares.
Quando terminou a primeira, em abril, havia mais de 736 iraquianos mortos. 60 por cento das vítimas eram os mais vulneráveis - mulheres, crianças e idosos - e inúmeros feridos.
Mesmo assim não conseguiram dissuadir os resistentes. Quanto  à população, com a investida de abril, a maioria de seus 300 mil habitantes já estava desalojada.
Aí os EUA decidiram esvaziar a cidade de uma vez por todas lançando a segunda ofensiva em novembro seguindo a mesma estratégia. Primeiro os bombardeios aéreos seguidos da operação terrestre e o sítio. Em três semanas, mataram mais de mil habitantes e feriram centenas.
A estimativa da época foi dos marines terem destruído ou danificado 70 por cento dos imóveis e residências da cidade, cerca de 100 mesquitas, 6 mil comércios, enfim, deixaram a cidade naquele estado deplorável que se vê no filme.
O pior de tudo foi o que os marines fizeram durante o sítio. Além das mortes e do vandalismo, evacuaram o hospital principal, o rodearam de sentinelas para bloquearem o acesso ao prédio e instalaram um sniper no telhado para que atirasse nos iraquianos feridos tão desesperados que a presença militar gringa ostensiva não os dissuadia de buscar socorro médico.
Crueldade pouca é bobagem.
Esse sniper de tocaia pode ter sido Kyle. Ou outro assassino do mesmo naipe.

Sniper herói, só conheço um (e olhe lá!). O russo Vassili Grigoryevitch Zaytsev (o da esquerda na foto ao lado), que durante o sítio de Stalingrado conseguiu defender sua cidade do exército alemão matando 11 snipers da Wehrmacht e 256 oficiais dos exércitos alemão, japonês e italiano.
História que o cineasta suiço Jean-Jacques Annaud transformou em estória em Enemy at the Gates com Jude Law no papel de Vassili e Joseph Fiennes no de seu maior rival, o major alemão Erwin König.
Só que, ao contrário de Eastwood com seu compatriota Kyle, o cienasta suiço não desumaniza o ofocial alemão e faz tudo para denegrir a imagem de Vassili  induzindo o público a acreditar que suas motivações não tinham sido patrióticas e sim medrosas. Como se o jovem de 28 anos tivesse oferecido seus préstimos à Красная aрмия, ou KA, como a Krasnaya Armyia, Exército Vermelho, é chamado, por medo de Josef Vissarionovitch Stalin e não para defender seu país do invasor nazista.
Annaud e Eastwood abordam o mesmo tema por ângulos opostos que convergem ao mesmo objetivo sectário-partidário 'anti' em vez de 'pró' algo válido.
Na história do Iraque, em 2012, quando os Estados Unidos se "retiraram", deixaram atrás de si mercenários a seus serviços, uma "embaixada" maior do que o Vaticano, governantes corruptos até os ossos, o petróleo e a água do Tigre e do Eufrates sob seu controle, e cidades arrasadas no sentido próprio e figurado.
Fallujah carregava cicatrizes abertas dos dois sítios e dos anos de ocupação. O bairro Nazzal estava em escombros; como os israelenses deixaram Shujayea em 2014, em Gaza.
Os clérigos, ao contrário do que os gringos diziam, eram moderados e previram que piores dias viriam. Isto por causa do estado caótico em que se encontrava o Iraque após dez anos de ocupação nos moldes napoleônicos que são os dos Estados Unidos: invadir, ocupar e botar tudo abaixo, em vez de construir como os romanos que melhoravam a infra-estrutura de todos os países que conquistavam.
Os marines deixaram rastros de sangue no Iraque inteiro e ódio unânime até entre a população cristã deixada desprotegida nas mãos dos bandidos que os Kyles da morte haviam fabricado dia a dia.
Pois ao partir os EUA prometeram um novo hospital, bilhões em compensação pelas perdas e danos, mas o dinheiro foi parar nas mãos dos corruptos que puseram no poder e o povo mesmo ficou ao Deus dará.
No fundo, Al-Bagdadi, chefe do Isis, saiu das câmaras de tortura estadunidenses uma besta humana, uma máquina de matar, como Kyle. Só muda o modus operandis. Ambos são obtusos, desalmados, bitolados em uma lógica perniciosa da razão absoluta que justifica a barbaridade de seus atos.
Nem Al Bagdadi nem Kyle são heróis. São criminosos. Cada um em seu nível de barbaridade mais ou menos controlada.
E Clint Eastwood usa a arma cinematográfica para incitar mais rancor em um mundo que precisa mesmo é de reconiliação e fraternidade. Shame on himAmerican Sniper é um panfleto de um homem cheio de pré-conceitos que nunca presenciou os efeitos de uma guerra; nunca sofreu uma ocupação na carne; que ignora que quem mata um ser humano sem arrependimento perde sua humanidade e o direito de ser celebrado.

Trocando em miúdos, Clint Eastwood tem de assistir com urgência o grande filme do cineasta alemão Ersnt Lubitch, Broken Lullaby, baseado na peça L'Homme que j'ai tué, do escritor francês Maurice Rostand (filho de Edmond, autor de Cyrano de Bergerac). Trata-se de um veterano da Primeira Guerra Mundial de coração apertado pela culpabilidade, estrangulado pelo remorso de ter matado, um homem. Um outro soldado, de carne, osso e sentimentos iguais aos seus e amado por entes queridos como os que sofrem pela morte do alemão de quem tirou a vida em combate.
O panfleto de Kyle é a antítese da peça de Rostand.
E quem nasce para Clint Eastwood jamais chegará a Ernst Lubitch, mas também não precisa piorar o mundo propagando preconceito e ódio!
A tendência é que os atentados contra as mesquitas aumentem - na França, nas últimas semanas pós-Charlie Hebdo, cerca de 40 foram depredadas ou queimadas.
Nos Estados Unidos, os atentados contra sítios islâmicos e contra estadunidenses muçulmanos aumentaram mais de 50 por cento desde a saída do American Sniper. Já houve até assassinatos.
O incrível nisso tudo é que com esta islamofobia galopante, os lobbies judeus consigam alimentar seu estatuto de vítima ao ponto de estarem  forçando a barra para que a Europa aprove uma lei que criminalise atos anti-semitas. Não contra os semitas árabes e sim contra os israelitas. É incrível!
É aquela velha injustiça dos dois pesos e duas medidas, tão nociva.

Trailer de Eyes of a Thief, da cineasta palestina Najwa Najjar

Enquanto American Sniper é manchete global na mídia internacional um outro filme sobre o mesmo tema só está sendo relevado em festivais: Eyes of a Thief, da jovem cianeasta palestina Najwa Najjar.
Eyes of a Thief também é baseado na vida de um sniper, o palestino Thaer Hamad que durante a segunda intifada, no início do terceiro milênio, matou 10 soldados israelenses em um checkpoint na Cisjordânia. Thaer se pôs de tocaia nas folhagens das colinas vizinhas e respondia com balas bem visadas contra os soldados que humilhavam e matavam seus compatriotas.
Eyes of a Thief - "Olhos de um Ladrão" tira seu nome dessa região  - Wadi al-Haramieh (Vale dos Ladrões, em árabe) situada entre Nablus e Ramallah e que ganhou este apelido por causa do número excessivo de roubos. Durante o Mandato britânico o lugar era um posto militar; depois os israelenses instalaram lá um checkpoint permanente da IDF - Forças Israelenses de ocupação.
Thaer era do vilarejo de Silwad, era esmero atirador, como Kyle. Só que acabou sendo sequestrado pela IDF e posto no cárcere porque foi denunciado por um informante. Um dos muitos que Israel coopta com chantagens e ameaças. Hoje, por ter matado soldados que ocupavam sua terra, Thaer se encontra atrás das grades em Israel condenado a onze sentenças de prisão perpétua consecutivas.
Enquanto que Kyle matou dezenas de civis e voltou para os EUA como herói, livre e celebrado por Clint Eastwood e muitos críticos cinematográficos mal-intencionados.
Uma palavrinha sobre Najwa, que vive na Palestina, em Ramallah, antes de continuar.
Ela começou como Fernando Meirelles, fazendo filmes de publicidade. Passou à telona em 1999. Fez vários documentários e um filme, Pomegranates and Myrr (2008), que foi apresentado em mais de 80 festivais internacionais de cinema e ganhou 10 prêmios.
Eyes of a Thief é fiel aos fatos do ofício de seu protagonista, mas romanciza sua vida pessoal. Najwa muda seu nome e aspectos de sua história real. Ela chama Thaer Hamad de Tarek Senno, dá-lhe o físico de outro ator famoso (não no Ocidente como Bradley Cooper e sim nos países árabes), o egípcio Khaled Abol Naga (Goodwill Ambassador da ONU e engajado na defesa dos direitos infantis e humanos junto à UNICEF); e dramatiza um romance e coisinhas mais que não comprometem a história dos feitos pelos quais Thaer ficou conhecido e obteve reconhecimento nacional.
Thaer continua enjaulado em Israel, mas o Tarek do filme é solto após 10 anos de prisão e volta para Nablus em busca da mulher e da filha. Aí Najwa usa o mesmo recurso de flashback que Eastwood, passando de hoje a 2002, ano culminante na Segunda Intifada quando Israel realizou operações militares sanguinárias na região de Belém, Nablus, Jenin, Hebron e Ramallah. Que vimos neste blog na história do conflito Israel vs Palestina na ODS - Operação Defensive Shield.
O presente mostra as mudanças na Cisjodânia, a particularidade do estatuto bastardo da Palestina e a perversidade da ocupação israelense no quotidiano.
O filme foi feito inteiramente na Palestina, sobretudo na bela Nablus e alguns planos em Belém, já que o sniper em questão é cristão.
Na dramatização, Najwa também deturpa algumas verdades. Todo palestino que é libertado das prisões israelenses é acolhido com celebrações - no filme Tarek não encontra ninguém à sua espera.
E embora os palestinos sejam mantidos muitas vezes incomunicáveis e sejam constantemente mudados de um presídio para outro a fim de dificultar o contato com parentes, amigos e advogado, é quase impossível que um prisioneiro não acompanhe os passos da família que vive fora, em semi-liberdade. Pois a comunidade cuida um pouco dos familiares dos presos políticos. Portanto, Tarek deveria saber o paradeiro da filha Duniya (Nisreen Faour, que trabalhou em Amreeka de Cherien Dabis ) e da esposa Lila (début cinematográfico da cantora argelina Souad Massi).
Ao contrário de Eastwood que heroiza seu sniper Kyle, Najar questiona onde está o verdadeiro heroísmo: em homens com armas ou em mulheres e crianças que desafiam o ocupante sobrevivendo apesar de seus esforços em esmagá-los?
Um dos fatos interessantes em torno deste filme palestino é que durante sua projeção no Palm Springs Internacional, várias pessoas se retiraram da sala acintosamente dizendo em voz alta: "This kind of thing should not be glorified!"  Referindo-se ao ofício de matar, imagino. Pois é. E por que glorificar The American Sniper?
Algumas vozes em Israel acusaram Najwar da mesma coisa, de "glorifying violence" contra as forças de ocupação. Um "pouco" injusto não apenas pelo contexto como também por sua maneira de apresentar o assunto. Além disso, e a violência onipresente dos soldados e dos colonos contra mulheres e crianças palestinas?
Ao contrário de Eastwood, que mostra EUA e "EUAenses" imaculados (em vez de mostrar os que se entregam a todo tipo de tráfico), Najwar ousa abordar o tema dos colaboradores palestinos. Não dos que são submetidos a chantagem de vida ou morte para denunciar um compatriota, mas o pior, o corrupto, que trai para fazer negócio em benefício próprio. Este é Adel, o empresário venal que faz negócios sujos com Israel desviando água palestina para uma invasão/assentamento/colônia judia ilegal.
E para ir mais longe em sua denúncia, quando a traição de Adel vem à tona, ele faz um discurso lembrando que continua sendo a mesma pessoa a quem todos acorriam quando precisavam de favor, autorização de trabalho, enfim, solução às dificuldades quotidianas de locomoção, de estudo e de ganha-pão que Israel impõe aos palestinos em geral. E o traidor Adel cita exemplo: "Um córrego não vai fazer muita diferença no encolhimento crescente do território palestino".
Najwar põe o dedo na ferida aberta na Palestina e desagrada algus compatriotas. O Shin Bet (serviço israelense de inteligência interna) é um dos maiores "empregadores" na Cisjordânia. E a traição, a má-ação de virar informante para poder pôr comida na mesa da família ou para que um familiar receba o necessitado tratamento médido, é uma das cicatrizes mais doloridas na Palestina.
Noam Chomsky disse recentemente que as guerras de drones armados de Barack Obama transformam a maioria de seus compatriotas em cúmplices como "American Snipers". Pois é, como os israelenses que deixaram Netanyahu "podar a grama" em Gaza no ano passado.
Os dois filmes de sniper levam a pensar na violência de ambas as ocupações - a estadunidense no Iraque e a israelense na Palestina - e os dramas que os ocupantes protagonizam.
American Sniper é mais eloquente no que deixa de fora do que na dramaturgia.
Primeiro, as vidas perdidas de ambos os lados sem nobreza nenhuma - 4.491 marines mortos em um combate desnecessário e mais de 500 mil iraquianos. Dentre eles, cerca de 123 mil civis - idosos, mulheres e crianças.
Segundo, na invasão ilegal que transformou ex-aliado da CIA Abu Musab al-Zarqai em antena do Al-Qaeda no país e "justificou" o aniquilamento de cidades inteiras, como Fallujah, com fósforo branco, fomentou a violência e cimentou o caminho para grupos como o Isis.
Eyes of the Thief é eloquente nas imagens e no dia a dia que relata com simplicidade. Embora também desumanise os dez soldados israelenses executados da mesma forma que American Sniper desumaniza toda a população do Iraque. Aí os filmes estão quase quites.
Trocando em miúdos, 13 anos após Thaeb Hamad ter atirado nos soldados e ser preso e maltratado, os assentamentos/colônias/invasões judias ilegais continuam a proliferar de maneira assustadora na Cisjordânia e Israel continua esfomeando 1 milhão e oitocentos mil palestinos na Faixa de Gaza. 10 anos após os EUA terem "regado" Fallujaj com armas químicas, o Isis a dobrou por outros meios igualmente selvagens.
Concluo este capítulo sonhando com um filme sobre as heroínas do dia a dia. As viúvas, as mães e as filhas que batalham para alimentar, vestir e educar seus filhos nas ruínas de suas cidades no Iraque, na Síria, ou no frio rigoroso da Faixa de Gaza, onde continuam desabrigadas.
No final das contas, heroísmo mesmo é resistir sobrevivendo contra a corrente de violência criando filhos decentes em ambiente contaminado pela iniquidade de ocupantes sanguinários.

Parênteses vídeos
Dia 19/01/15 : Deputado George Galloway desmascara Tony Blair, de novo
Dia 05/02/15 
Deputado britânico George Galloway "crucificado" na BBC por postura anti-sionista e anti-islamofóbica
 Lembrança: No dia 09/08/14, judeus se pronunciam sobre o amálgama entre anti-sionista e anti-semita
durante a passeata em Londres contra a Operação israelense Protective Edge na Faixa de Gaza

Abaixo, vídeos sobre a ocupação do Iraque
para botar uns pinguinhos nos iis no discurso de Clint Eastwood.

Documentário de Feurat Alani: Roadtrip Iraq, pós-10 anos de ocupação.

Documentário Al Jazeera World: Shattered Heritage
De Norte a Sul, os bombardeios estadunidenses do Iraq em 1991 e 2003 
destruíram museus, livrarias, teatros e patrimônios universais

Listening Post: Brad Manning vs US Military

Inside Story: Did US use chemical weapon in Iraq

Democracy Now: Iraq invasion - Ten years later

Documentário Deep Dish: The Real face of occupation
After the 'student' Saddam Hussein, after the 'teacher' USA, came Al-Bagdadi and his Islamic State... Iraq people was oppressed by the student, crushed by the teacher, slaughered by al Bagdadi, in whom some want to believe. 

Documentário de Rory Kennedy : Ghosts of Abu Ghraib

Journeyman Pictures: Shocking stories of Abu Ghraib prisoners

Iraq war crimes: Depleted uranium

Entrevista com Chris Hedges sobre seu último livro: 
The America Empire is Dead
 

Saiamos dos horrores da realidade para amenidades cinematográficas de qualidade.
Antes de falar nos outros concorrentes aos Oscar, vou falar sobre os meus dois filmes preferidos que concorrem, mas em outra categoria, a de língua estrangeira. 
Eu daria o Oscar de melhor filme, sem limitações de língua, a Leviathan  ou a Ida. Acho que foram os melhores filmes que assisti no ano passado. Partindo do princípio que um bom filme é aquele que deixa rastro, que durante o desfilar dos créditos a cabeça e o coração continuam a palpitar de reflexão e emoção, que eu saia da sala com um conhecimento a mais. Pode ser um conhecimento relativo, intelectual, cultural, ou um conhecimento absoluto inexplicável. É o caso dos dois filmes que cito abaixo.
Leviathan é do siberiano Andrey Zvyagintsev, puro produto russo - tanto na escolaridade, quanto na cultura e na expressão de sua arte. Andrey fez três filmes memoráveis antes deste: Возвращение (O Retorno), Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2003; Изгнание (O Banimento) em 2007; e Elena que mostra a vida dura na Rússia emergente com a mesma atriz de Leviathan, Elena Lyadova. Leviathan é a somatória destes três filmes e tem todos os bons ingredientes de uma obra cinematográfica russa de qualidade: da fotografia, à dramaturgia, à leitura da alma humana, da Moral, do Bem e do Mal. Prefiro não dizer mais nada porque Leviathan é melhor como uma descoberta. Nele se reconhece toques de Serguei Eisenstein, Nikita Mikalkov e seu irmão Andrei Kontchalovski, Serguei Bodrov, Andrei Tarkovski, Alexandre Sokurov, enfim, não vou enumerar todos os grandes cineastas russos, mas Andrey Zvyagintsev, em Leviathan, confirma que merece fazer parte da nobre lista e Aleksei Serebryakov, o protagonista, confirma sua proeminência artística. Leviatã é imperdível. 
Ah! se tivéssemos um cineasta capaz de fazer o mesmo tipo de filme sobre o nosso Patropi!   
    

Ida é do polonês Pawel Pawikowski. O filme acabou de ganhar o BAFTA (o Oscar britânico) 2015 e em 2014 ganhou o Festival de Londres, o prêmio de melhor filme da Polônia, e de melhor filme da Europa.   Pawel é um dos raríssimos diretores que faz filmes nacionais de alta qualidade e quando se exporta à Inglaterra e à França mantém a qualidade; talvez por continuar na Europa. Ida é uma pérola de simplicidade em sua mensagem de Fé inabalável. O roteiro também é de Pawel co-escrito com uma das melhores dramaturgas atuais, a inglesa Rebecca Lenkiewicz. Ambos primam por dizer tudo com gestos, olhares e palavras na quantidade e qualidade exatas. Em Ida não há cenas melodramáticas nem suspense pré-fabricado. Porém, o drama e o suspense estão presentes em todas as cenas da vida desta noviça criada em um convento que vai à cidade reconciliar-se com seu passado, encontra a mundaneidade, o amor de um homem e se encontra diante do dilema entre ficar e voltar para ordenar-se. Pawel é o Andrej Wajda do século XXI. 
Pawel já ganhara dois BAFTAS. O primeiro com Last Resort, o segundo com o My Summer of Love. Seu filme anterior a Ida, de 2011, La Femme du Cinquième - com Ethan Hawke e Kristin Scott Thomas, foi uma aula de como transformar o livro de um escritor "popular" (para não ofender George Kennedy mais do que merece) em uma obra elegante e nuanciada. Prova que ele é bom mesmo. 
Os outros concorrentes ao Oscar são bons, mas não tanto quanto estes dois.

Agora, passemos aos demais concorrrentes ao Oscar 2015.
Vou começar pelo meu preferido: Birdman. Inteligente e certo como Alejando Iñarritu, bem-in/formado, bem-lido, bem tudo o necessário a um formador de opinião no século XXI. Sua leitura da vida e do mundo é ampla e consegue conciliar o individual e o coletivo como poucos cineastas contemporâneos - o que é compreensível, já que Ken Loach é o seu ídolo (este direitos britânico é um estranho no ninho da indústria cinematográfica; é o único que jamais, em momento algum, vendeu a alma para o diabo).
Birdman no tema lembra também os de Robert Altman, mas no estilo próprio de Alejandro Iñarritu de ir fundo no assunto que trata. Michael Keaton está ótimo e o grande Edward Norton está no ápice.

Boyhood é um empreendimento a longo prazo e talvez por isso tenha agradado, além da simplicidade e das mensagens antagônicas à American Sniper.
A ideia não é tão original como falam. Filmagem de vidas com os mesmos atores em etapas cronológicas já foi realizada pelo cineasta britânico Michael Winterbotton. Aliás, um dos dez primeiros da minha lista de bons cineastas éticos vivos que Ken encabeça e na qual Alejandro se destaca.
Michael Winterbotton começou sua carreira com um documentário sobre Ingmar Bergman e na BBC trabalhou com o grande Jimmy McGovern - o segundo da minha lista ética. Sua mini-série se chama Everyday. Em um período de cinco anos, conta a relação de um presidiário com sua família atrás das grades e após ser solto.
Acabei falando em outra pessoa em vez de falar no Richard Linklater que aprecio e cujo filme acho uma brisa políticamente correta, no bom sentido do termo, importante no contexto atual.
Boyhood é um bom filme. Uma boa estória. Sem artifícios. Mas não é inesquecível.  



The Grand Budapest é mais uma diversão esmerada de Wes Anderson que vive em um mundo à parte e seus contos de fadas para adultos são geniais. Sem contar os atores, todos impecáveis na seriedade cômica que personificam sem afetação desnecessária.

Whiplash é um filme típico da onda do primeiro filme do harvardiano Damien Chazelle, que sonhava em ser músico e virou cineasta. Assisti seu primeiro filme, Guy and Madeline on a Park Bench, por recomendação de um colega do Village Voice que adorara. Eu não sou ligada em filme musical e assisti por insistência e por curiosidade intelectual em descobrir este rapaz que seguia os passos de um de meus cineastas preferidos, Nick Cassavettes. Gostei. De Whiplash também. Pela irreverência simples e inteligente que transparece em quase todas as cenas. Respira inteligência. Aliás, Damien é filho do cientista informático francês Bernard Chazelle professor de Ciência de geometria de computação em Princeton. Sua mãe é escritora. Nasceu e cresceu pensando. Vê-se em seus filmes. Mas são também bastante divertidos.  

Depois vêm os chamados biópicos sobre personalidades famosas.
Este ano, Martin Luther King Jr., Stephen Hawking, Alan Turing.
Um herói estadunidense e dois heróis ingleses.
Os três interpretados por atores britânicos conhecidos de quem assiste os bons seriados da BBC e frequenta os teatros de Londres: David Oyelowo,  Eddie (Edward) Redmayne e Benedict Cumberbatch.
Comecemos por Selma.
Selma é um filme na linha de In the Middle of Nowhere, o anterior da mesma cineasta, Ava DuVernay. Ela ficou célebre em Holywood por ter sido a primeira diretora afro-estadunidense a ser premiada no Festival de Sundance (2012). Daí este presente que ganhou dos produtores que "adoram" Robert Redford e a elegância intelectual do Sundance Festival.
Ava DuVernay mostrou-se à  altura da tarefa que lhe foi confiada e com a qual sonhava. Selma é um filme tipicamente estadunidense. Com todos os ingredientes para emocionar e conquistar simpatizantes à causa que defende. Os dois protagonistas ingleses estão impecáveis em gringos. Tanto David Oyelowo no papel de Martin Luther King Jr. quanto Tom Wilkinson no papel de Lyndon Johnson.
Selma me fez lembrar meu período de High School nos Estados Unidos, na década de 70, em uma escola pública de qualidade (ainda existia nessa época). Os alunos negros chegavam para a aula em ônibus que os traziam de seus bairros distantes e as salas de aula do bairro de classe média alta e seu refeitório eram divididos em dois, nitidamente, com os brancos sentados de um lado e os negros do outro sem se misturarem em nenhum momento. O racismo era mútuo, assim como a hostilidade latente.
Mais tarde, vi o apartheid na África do Sul e fiquei chocada com a capacidade de maudade dos homens. Depois vi a cruel ocupação israelense da Palestina, as humilhações, os maltratos, o genocídio em marcha acelerada, e entendi que a vileza humana é inesgotável.
Selma me emociona na luta, mas não me toca profundamente. Já vi coisas piores e continuo vendo, no presente.
Por que não um filme sobre Yasser Arafat, George Habash, Marwan Barghouti, Mahmoud Darwish, heróis de uma luta atual contra uma iniquidade que suja toda a humanidade?

The Theory of Everything aborda época e pessoas ainda presentes que têm boa influência sobre a evolução das mentes.
Vale por Stephen Hawking, seu intelecto, sua determinação em viver em fase com seu tempo e com o universo que nos cinge. O filme retrata bem tanto ele - figura emblemática no mundo científico e também da defesa da causa palestina - quanto seus feitos e defeitos humanos.
É um filme inglês (portanto, sem condescendência com público nem protagonista), feito por um inglês, James March, fascinado pelo insólito e pela Evolução, simplesmente. Sua obra parece com ele. E Eddie Redmayne, que vi pela primeira vez no palco jovenzinho em 2002 interpretando Shakespeare, já merece ser chamado de Edward. Cumpriu as promessas do talento que era então incipiente. No filme reafirma o que já demonstra nos palcos e na telinha da BBC há anos.

The Imitation Game conta parte da vida de Allan Turing, o "avô" do computador moderno. Mistura guerra, espionagem e os prejuízos físicos e morais que a lei anti-homossexuais causou na Inglaterra até 1967, quando a  homossexualidade foi despenalizada.
O diretor norueguês Morten Tyldom parece inspirar sua montagem no filme Tynker Taylor Soldier Spy (baseado no livro homônimo de John Le Carré, protagonizado por Gary Oldman e no qual Benedict Cumberbatch, ainda em construção de popularidade, fez papel secundário). Com a diferença dos efeitos mais dramatizados, Hollywood oblige.
Não é que o diretor escandinavo não esteja à altura da tarefa, seus filmes anteriores, feitos em sua terra natal - Buddy, Fallen Angels e Headhunters (baseado no livro homônimo de seu famoso compatriota Jo Nesbo) - provam sua competência cinematográfica.
Só que sofre da mesma 'popularização' inflingida aos bons diretores estrangeiros cooptados por Holywood. Os estúdios os contratam pela qualidade de sua obra artística mas exigem que a popularizem a fim de torná-la acessível ao 'grande' público e ser lucrativa. Aí fica difícil manter o nível com certos diálogos recheados de clichês melodramáticos.
O filme é produzido pelos Weinstein, eficientes lobistas que conseguiram até um Oscar para Gwineth Paltrow em Shakespeare in Love. Talvez consigam algo para The Imitation Game. Porém, não vai ficar para a História. Nem a interpretação de Benedict Cumberbatch, que, como sempre, é credível nas nuâncias da personalidade do protagonista, mas às vezes falta-lhe alma. E neste caso específico, falha nas partes obscuras; que existem, mas não são enfocadas, por causa da  necessidade gringa do maniqueísmo 'educativo' do bem e do mal, aqui despejado sem nuância quando aponta que o mundo seria aquém do que é sem pessoas como as interpretadas por Benedict Cumberbatch e Keira Knightley. Esta, diga-se de passagem, está bem melhor em papel de coadjuvante do que é em papéis de protagonista. E pela primeira vez está com sua cara real.
O resto do elenco é de primeira qualidade irlando-britânica - Charles Dance, Mark Strong, Rory Kinnear, Matthew Goode, Allen Leech, Matthew Beard fazem bem seu trabalho e Benedict Cumberbatch acaba não sobressaindo. 
Vale lembrar que em 2004 Cumberbatch ganhou o prêmio de melhor ator em mini-série na Inglaterra por sua inerpretação de Stephen Hawing no filme da BBC Hawking
Benedict Cumberbatch passou de grande ator de teatro, com grandes interpretações inclusive uma inesquecível de Frankestein, a um dos atores mais influentes do cinema anglosaxão. Graças ao seu papel de Sherlock Holmes no seriado homônimo da BBC que ele continua fazendo, pois sabe que fama em leviana Hollywood é efêmera, que sucesso é uma onda, mas que a BBC lhe garante emprego perene.


The making of Norman Finkelstein: Reality asserts itself
Real News   V

Carta enviada a Norman Finkelstein no dia 07/02/15 
sobre o uso em Gaza das mesmas armas químicas que os EUA usaram no Iraque
com os mesmos efeitos drásticos
"Hi Norm,
There was an informative article published recently in the International Journal of Environmental Research and Public Health by Manduca, Naim, and Signoriello. It reported a study on the association between metals delivered by IDF weaponry during Cast Lead and birth defects in Gazan newborns born 20-25 months after the attack. The investigators compared the metal content of the hair of 48 newborns with birth defects to the hair of 12 newborns without birth defects, and found significantly higher levels of selenium, mercury, and tin in most of the babies with birth defects compared to the normal controls. That’s not surprising, but what was unexpected is that newborns with birth defects whose parents were directly exposed to attacks during Cast Lead (meaning they were in a building that was attacked, next to a building that was attacked, or they searched through rubble immediately after an attack) did not have significantly different levels of mercury, selenium or tin than newborns with birth defects whose parents were not directly exposed. Furthermore, newborns with birth defects whose parents were not directly exposed to attacks had significantly higher levels of mercury, selenium, and tin than normal newborns.
What all of that means is that toxic and teratogenic metals delivered by IDF weaponry contaminated large parts of Gaza: even mothers who weren’t directly exposed to Israeli bombings during Cast Lead gave birth to newborns with birth defects and with the same elevated levels of selenium, mercury, and tin as mothers who were directly exposed. There is the very real possibility that Cast Lead (and no doubt the following attacks) contaminated large parts of Gaza with teratogenic and toxic metals, and that Gazan children will be born with birth defects at higher rates well into the future.
Prior research has shown that mercury and tin (along with other teratogens and toxic metals like lead, uranium, aluminum, titanium, copper, barium, cobalt, cesium, and vanadium) were delivered by IDF attacks. Selenium has not been tested for before in bomb craters. As you know, Human Rights Watch (“Rain of Fire”) reported that all white phosphorous shells found in Gaza were supplied by the United States. As far as I know there is little information available on DIME weapons, but Amnesty International (“Fuelling Conflict”) reported that 1000 GBU-39s (suspected DIME weapons) were ordered by Israel from Boeing in September 2008."
Feroze Sidhwal


Escândalo nos EUA: Professor palestino Sami Al-Arian deportado 

Um comentário:

  1. A meu ver um filme que não tem pontas soltas, do início ao fim oferece uma hisoria qualidade. Sniper Americano um dos melhores filmes HBO , consegue conquistar com ação, suspense e emoção em suas cenas. Tenho visto em várias ocasiões e eu continuo a dizer que é a melhor guerra.

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