domingo, 4 de março de 2012

"The Quiet American"



The Quiet American é uma das obras mestras de Graham Greene, escritor que prima pela pena virtuosa e pela meticulosidade nas estórias de espionagem que desfia com precisão e sobriedade; sempre preocupado com a fronteira que separa a cumplicidade tácita da imparcialidade.
Foi subeditor do London Times até as páginas do jornal ficarem pequenas demais para seu talento e aí, para o bem de todos e felicidade dos leitores, passar à literatura deixando pérolas para a posteridade.
É um clássico.
Por que falar em um escritor britânico que morreu em 1991 com 86 anos em um blog que trata de geopolítica?... Calma. Vou chegar lá.
Graham Greene encarnava, de certa forma e na medida da física e da lógica, a geopolítica na base dos homens que a põem em prática.
Seus livros repercutem o dilema que é sempre notícia, o da moralidade - Como manter a ética na peleja interna contra o instinto de preservação e a comodidade?
The Quiet American poderia ser título de matéria sobre os funcionários do Pentágono e da Agency (CIA) em ação mundo afora.
O contexto do livro é a guerra da Indochina (Vietnã durante a colonização francesa), mas poderia ser o Afeganistão, a Rússia, o Brasil nas garras da Operação Condor, o Iraque, Líbia,... Irã, Síria, Palestina...
Lá se encontram um correspondente de guerra sem ilusões e um espião estadunidense cheio de "boas intenções".
As batalhas são pano de fundo ao quotidiano do repórter de princípios gastos mas cuja consciência ainda lhe dá picadas esporádicas para inspirar atos que o redimam do descaso. 
O quiet american é o agente secreto repleto de teoria, ignorante do contexto em que aterriza  e da terra em que pisa, iludido que a sua é A causa merecida e que sua alternativa é A única saída. Convencido que o remédio que manipula e ministra, apesar dos danos colaterais indeléveis e fatais que origina, contém A cura para os males locais com os quais não se identifica.
Ele não é venal e não tem nenhuma má intenção própria. É desprovido da cobiça dos 1% que lucram com o conflito, mas é tão ou mais perigoso do que estes tubarões que financiam sua empreitada.
Ele se julga um missionário. Imbuído de pré-conceitos, dogmas e fé inabaláveis de que sem ele, o mundo se afoga em peso.
É ele que acha que com seu apoio militaro-logístico o "inferno" virará paraíso des/armado e pacífico da noite pro dia, e por/para isso, escolhe o lado que apraz à aplicação de seu way of life e acaba dando com os burros n'água.
É ele que investe confiança e fundos em um "rebelde" que quando chega ao poder faz o contrário do que combinam e o deixa a ver navios; o ingrato!
Ora, o quiet american é sem malícia propriamente dita; capaz de atos inomináveis, mas cometidos em nome da doutrina da qual está impregnado por ser bitolado, coitado.
Pois é.
quiet american está no Oriente Médio trançando os pauzinhos para derrubar Bashar el-Assad; que, por acaso, é o único líder árabe que contraria a cobiça expansionista de Israel.
Quando a Arábia Saudita afirma que "precisa armar os rebeldes sírios", para bom entendedor, ela admite que há meses as Tropas Especiais dos países do Golfo estão fazendo o mesmo trabalho sujo que fizeram na Líbia, armando e fomentando o combate do quiet american.
E como dizem os estadunidenses, não existe almoço grátis; a conta chega sempre, cedo ou tarde.
Quem está dando ou vendendo a preço de banana uzis e balas, vai cobrar com juros e correção monetária pela "solidariedade".
Estão tão apressados que na ONU, Ban Ki-moon (aquele sul-coreano fantoche dos EUA) estigmatizado como porta-voz de Washington, pediu até socorro ao ex-secretário geral Kofi Annan para legitimar uma decisão de ingerência rápida. Que com certeza ele não dará porque já é um cidadão bem-informado livre de amarras.
Kofi Annan sabe que seria precipitação irresponsável livrar-se de Bashar com tantos perigos maiores que rondam a região e ameaçam espedaçá-la. A ONU e a OTAN ainda nem se deram ao trabalho necessário de analisar os efeitos nefastos da "ajuda" prestada aos rebeldes líbios e à Líbia hoje desgovernada.
Sem contar que Israel, de repente, está em dividido entre os que querem e os que não a queda de Assad. Tem uma ala do governo que prefere o inimigo conhecido do que o cerco da Irmandade Muçulmana (ou coisa bem pior) por todos os lados. Mas estes israelenses esclarecidos são, infelizmente, minoria. A maioria sionista é míope, como o quiet american e sua hierarquia.
Barack Obama, o indeciso, dobra-se a uns e a outros de saia justíssima. E deixa o quiet american agir à vontade distribuindo favores e arsenal leve e pesado a quem, nem ele mesmo sabe. Só sabe que hoje elas serão usadas contra outrem e quando elas explodirem amanhã, ele estará em outras paragens.
Como a história teima em repetir-se cada vez mais depressa, em uma, duas décadas, ou nesta mesmo de dez, as armas e o ódio semeado explodirão em sua cara, coitado; aí vai culpar quem? Os ingratos.

Os grupos civis e militares sírios de oposição a Assad estão mais separados do que nunca, cada um com objetivo e meios próprios.
O único denominador comum entre a Direita e a Esquerda é a raiva dos Assad. Por não mamarem.
Dentro e fora das fronteiras a ameaça de intervenção acabou aproximando as duas alas normalmente distantes.
Porém, a Esquerda, falante em 2011 no começo do levante, anda economizando críticas a Bashar el-Assad, pois teme muito mais os EUA e seus aliados regionais.
Assad, podem tirar do cargo amanhã, depois, ou daqui a um ano ou dois.
Mas tirar os gringos de lá depois de entrarem e porem o país abaixo, ou tirar extremistas fanáticos... é mais difícil do que reembolsar dívida alta com salário cada vez mais escasso. 
Sim senhores, o governo da Síria é corrupto e repressivo, mas ruim com ele pior com os estrangeiros, ouve-se cada vez mais aqui e acolá nos bares de Aleppo e Damasco.
Não apenas das elites financeiras e intelectuais, mas também do homem do povo, que sente na carne a violência dos al-Nusra e de "rebeldes" do mesmo naipe que querem pôr a ordem atual abaixo a ferro e a fogo.
Além desses dados, além dos contra e dos pró Assad, há um fator relevante pouco mencionado: o "povo" que não participa de nenhuma passeata.
A Direita e a Esquerda tradicionais o subestimam e até menosprezam porque o passado prova que a maioria calada costuma seguir quem quer que encabece o governo.
E o quiet american?
Ele sequestrou o movimento popular para radicalizá-lo à vontade porque também conta com este fatalismo sócio-político para instalar-se e perpetuar-se em Damasco.
Só que o quiet american sofre de miopia crônica político-sociológica brava.
Quando ele achar que a Revolução está acabada e que derem as costas ao povo para o 1% começar a espoliar, é aí que ela vai começar. (No Iraque, com certeza, idem).
Pode ser impressão, mas acho que os sírios foram contaminados pelo vírus da liberdade que pegaram da Tunísia e do Egito e não vão conformar-se com uma marionete gringa de Assad. Vão querer tahrir de verdade. Se os extremistas não os subjugarem.
Ah! Se o quiet american aprendesse lições do passado, saberia que conquistar a cavalo uma terra martirizada, é fácil; o difícil é que para governá-la, tem de apear.
Aí a porca torce o rabo e ele começa a contar cadáveres também do seu lado.

Nesse ínterim, o deputado francês Jean Glaviany, do Partido Socialista esteve na Palestina com uma comissão parlamentar, pesquisou, andou, viu, e fez um relatório que está dando pano pra manga na Europa.
O relatório não traz nenhuma novidade.
A novidade é ele ter sido escrito e publicado sem aviso prévio à Embaixada de Israel, e ter dito a verdade nua e crua que é sempre calada.
O relatório fala um pouco o que eu já disse em 2010 e por incrível que pareça, apesar das aberrações que ele denuncia, o que fez o lobby israelense saltar de raiva foi o uso da palavra apartheid para definir a situação óbvia em que os palestinos foram reduzidos na terra dos antepassados.
Glaviany acusa Israel de desrespeitar (mais uma vez) os Acordos de Oslo e chama atenção para o confisco da água, lembrando que os 450 mil colonos judeus que ocupam a Cisjordânia dispõem de muito mais água para o consumo quotidiano do que os 2 milhões e 300 mil palestinos que são donos dela e que só desfrutam de 10% dos recursos hídricos do território ocupado.
O relatório foi feito imparcialmente, com a Comissão de Inquérito entrevistando inclusive autoridades competentes israelenses que na época não acharam chocante as informações que davam ou não acreditavam que fossem ser realmente publicadas sem censura preliminar.

Além da água, o relatório fala sobre o apartheid causado pela divisão arbitrária da Palestina em zonas cheias de checkpoints aleatórios em que homens, mulheres e crianças são constantemente humilhados e maltratados.
Parece que a Europa está acordando para a situação insustentável que envergonha quem tem pátria, que não tem casa invadida de madrugada e que pode matar a sede com água potável.
Os parlamentares franceses criticam a prioridade dada aos ocupantes, o fato do muro impedir aos palestinos acesso aos poços e suas cisternas serem sistematicamente destruídas pela IDF e pelos colonos.
O fim do relatório foi categórico: A água é uma arma.
Eu acrescentaria, a pior delas, pois é o único alimento realmente indispensável à sobrevivência física.
O ministro israelense das Relações Exteriores, o invasor mais célebre da Cisjordânia, se disse "indignado. O relatório é carregado de terminologia venenosa", disse, ..."em vez de contribuir à concórdia e à cooperação, aumenta as tensões com dados falsos e afirmações partidárias."
Além de viver na ilegalidade, se o ministro Avigdor Lieberman não fosse tão perigoso, seria uma piada.
O que não tem mesmo é vergonha na cara.

Voltando ao princípio, aprecio Graham Greene como escritor  e como ser humano.
Acho que idealismo de verdade não morre nem se acanha. A experiência de vida o solidifica em atos e ofícios desinteressados.
Pessoas indiferentes e/ou venais, gostam de repetir que idealismo depois dos 50 (ou é 40?) é bobagem e que todo homem tem um preço, resta saber qual.
O preço do quiet american é o da pátria blindada e supostamente inabalável.
Eu, graças a Deus, ainda não descobri qual é o meu.
E por isto vou terminar o blog de hoje com o Graham Greene do começo. Ou melhor, com outra obra do mestre, The Heart of the Matter, sobre a derrota do Bem sobre o Mal. Sobre o preço que se paga pelo individualismo que impossibilita a compreensão do outro. Sobre a traição de princípios e valores da vida toda em um momento de fraqueza que custa caro demais, além do suportável.
Graham Greene converteu-se do anglicanismo ao catolicismo aos 22 anos e era bipolar. Talvez por isso, (pelo catolicismo profundo dos "três primeiros séculos", como o do grande Pier Paolo Pasolini)  fosse atormentado pelo Bem e o Mal, pelos males que corroem os homens e sobretudo, pela força da fragilidade. No seu caso. No de outros, o contrário.
Neste mundo em que uns suam sangue para obter o que temos naturalmente - da liberdade, à cidadania à água - e que outros derramam sangue para obter cada vez mais na mais perfeita ilegalidade, vou concluir com uma paráfrase de Graham.
Todos nós nos envolvemos em um momento de emoção e não conseguimos mais nos desvencilhar. E em situações extremas, cedo ou tarde o observador tem de tomar partido, se  quiser preservar sua humanidade.


Na semana que vem continuo a história do conflito Israel vs Palestina, lembrando que a greve de fome dos prisioneiros palestinos continua e está se alastrando. Já são dezenas e podem chegar a centenas, pelo direito mínimo a tratamento humano e julgamento.
Até lá, se o assunto lhe interessar, dê uma olhada no blog de 2010 que trata desta questão da água denunciada pelo deputado francês.
O muro da vergonha

PS. Graham Greene escreve e pensa tão bem que vale a pena ser lido na íntegra. Quem quiser também assistir aos filmes, as adaptações abaixo são as que prefiro.
The Quiet American tem duas versões.
A primeira é de 1958. O roteiro é do próprio Graham Greene e o filme é dirigido por Joseph L. Mankiewicz. É para colecionador. Michael Redgrave (pai da Vanessa) interpreta o jornalista e Audie Murphy o quiet american.
A segunda, de 1992, é dirigida por Philip Noyce. Michael Kane está impecável no papel do jornalista; Brandon Frazer é o quiet american.

Documentário Journeyman sobre Graham Greene e a gestação do Quiet American no Vietnam 


The Fallen Idol (1948)
Direção de Carol Reed, com Ralph Richardson e Michèle Morgan

The Third Man  (1949)
Direção de Carol Reed/Orson Welles; com Joseph Cotten e Orson Welles

The Power and the Glory (1961)
Direção de Mark Daniels; com Laurence Olivier, Julie Harris e George C. Scott

The End of the Affair também tem duas versões. Uma de 1955 e outra de 1999. Ambas boas. 
A primeira é dirigida por Edward Dmytryk, com Van Johnson, Debora Kerr e Peter Cushing.
A mais recente é muito boa. É dirigida pelo irlandês Neil Jordan e seus protagonistas - Ralph Fiennes, Julianne Moore, Stephen Rea - são de primeira.  

Brighton Rock (2010)
Direção de Rowan Joffe; com Sam Riley, Andrea Riseborough e Helen Mirren

The Heart of the Matter (1953). Direção de George More O'Ferral; com Trevor Howard, Elizabeth Allan e Maria Schell
It would be my greatest sadness to see Zionists do to Palestinian Arabs much of what Nazis did to Jews.”  Albert Einstein

A Anistia Internacional acabou de fazer 50 anos de combate às iniquidades de seres desumanos.
Eis o vídeo comemorativo desta ONG irlandesa que mudou a face do mundo.
Parabéns I.A.!


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