Encontro de ditadores. Na primeira fila, Saleh (Yêmen), Gaddafi (Líbia), Mubarak (Egito) |
Esta mensagem foi enviada à ONU por Muammar Gaddafi.
Falava do presidente da Costa do Marfim Laurent Gbaggo, na semana em que os estudantes egípcios ocuparam a Praça Tahrir exigindo Liberdade. O homem que se considera Zaim – um líder guru – e realmente acredita ser o Rei dos Reis da África tinha confiança absoluta no regime de terror que praticava. Tanta, que jogou esta chuva de pedras em telhado alheio pensando que o seu fosse indestrutível e sua fortaleza inexpugnável.
Comecei o mês traçando um paralelo entre o Egito, Hosni Mubarak e três obras máximas do grande Gabriel Garcia Márquez. Por isto vou terminá-lo na mesma linha, mas com a Líbia e Muammar Gaddafi no bunker-Palácio que lembra o livro Das Schloss do tcheco germanófono Franz Kafka.
Das Schloss, traduzido como O Castelo significa também Tranca, trava. O Castelo governa uma cidade e o Palácio governa uma nação tribal da qual é alienado. O Castelo representa uma burocracia, o Palácio uma tirania que também faz incursões esporádicas às ruas mas sem interagir com vivalma, a não ser para explorá-la, na ficção literária, e na realidade Tripolitana, para subjugá-la. Os labirintos do Castelo representam a confusão mental dos homens; as tramas do Palácio, de um só homem desvairado. A verdade do Castelo é impenetrável e fora dele o povoado calcula e especula sobre o que não sabe. A verdade do Palácio é fabricada e fora dele o país teme em massa, pai desconfia de filho e todos servem o déspota do ignorantismo, até há pouco, calados.
Gaddafi, confinado em seu bunker-Palácio, acabou de perder o contato com a realidade.
Trípoli por sua vez lembra Броненосец Потёмкин, O Encouraçado Potemkin. A obra prima cinematográfica do mestre dos mestres Serguei Eisenstein. Neste filme precursor da Revolução de 1917, o cineasta russo reproduz na tripulação do encouraçado os seguimentos da sociedade que se rebela com determinação e coragem. A sequência marcante é a do massacre nos degraus da escada monumental de Odessa, que os soldados descem de maneira ritmada (pela composição de Dimitri Chostakovitch) empurrando a multidão em um frenesi que culmina com a célebre cena do carrinho de bebê que escapa escada abaixo em uma dramaticidade rara.
Gaddafi transformou Trípoli na Odessa do século passado com violência dobrada, pois além de soldados, a região está cheia de mercenários sem nenhuma consideração pela vida humana, apenas por quem os paga. E quem paga é um homem que sabe que está no fim da linha e antes do trem despejá-lo quer esmagar o máximo de pessoas que ousaram desafiá-lo.
Em janeiro esta cena era inimaginável. Não a da matança, mas a da insurreição contra o tirano máximo.
Até janeiro era difícil imaginar que o terror em que os líbios viviam como uma fatalidade à qual tinham se acomodado, desaparecesse da noite para o dia. Pois a brutalidade do Coronel, quase palpável quando estava na mesma sala, fragmentou sua família e a população durante quatro décadas e toda oposição foi, literalmente, esmagada ou exilada.
Os líbios só podiam participar de estruturas organizadas e controladas por Gaddafi, incluindo um comitê que reunia as trinta e duas tribos principais, usado para aplicar a “justiça revolucionária”. Kadhafi conquistou o poder com três tribos (Qadhadhfa, Maghraha, Warfalla) cujos membros dirigiam os comitês e os serviços de segurança que ainda não o abandonaram. Seus inimigos velados eram os Sa’adi, tribos de Cyrenaica, resistentes ferrenhos contra a ocupação italiana entre 1911 e 1927.
Vale lembrar que a Líbia, como o Yêmen, é uma sociedade tribal, diferente do Egito, mas semelhantes a outros países árabes.
O colapso do regime foi acelerado porque grande parte do milhão 759 mil km² das terras que compõem a Líbia é desértica – há regiões em que não chove desde 1998 – e o desenvolvimento econômico proporcionado pelo petróleo somado à aridez do país, fez com que os seis milhões de habitantes se concentrassem na planície de Jefara, ao redor de Trípoli, na região chamada Tripolitana e em Jabal al-Akhdar, atrás de Benghazi na Cyrenaica.
Portanto, a queda de Benghazi, por o Ministro da Justiça, Mustafá Mohamed Abdel Jalil, e o Ministro do Interior, general Abdel Fattah Younes al-Abidi, terem mudado de lado, foi mais do que a queda de uma cidade. Foi a perda concreta de seus dois “funcionários” mais preciosos e da metade do país, a Cyrenaica.
Younes al-Abidi já aconselhou Kadhafi a não usar os aviões de combate e Abdel Jalil já formou um governo provisório.
A deserção é fiável, pois todos sabem que para reinar sem rival, Gaddafi chegou ao ponto de dividir os filhos para que nenhum tivesse força suficiente para substituí-lo sem seu aval. Como os “súditos” e os “amigos”, até sua família vivia em um ambiente de desconfiança, suspeita constante, e de medo do progenitor que os tiranizou até os últimos instantes.
Apesar de tudo que disse acima, para a Líbia e para o mundo, a queda de Gaddafi será um desastre.
Não conseguindo liderar a Liga Árabe, em 1997 Gaddafi resolveu assumir a liderança dos países mais frágeis. Foi aí que se autodenominou Rei dos Reis da África se distanciando dos antigos aliados para rodear-se de novos manipuláveis. E para adquirir poder de barganha com a Europa, abriu as portas às populações subsaarianas provocando graves tensões domésticas, mas atingindo o objetivo principal de pressionar a União Européia com o perigo da imigração clandestina africana a partir de suas águas, para a Itália. Foi no mesmo período que constituiu a 32ª Brigada, a milícia usada na repressão e com a qual conta para terminar seu “reinado” em um banho de sangue memorável que puna os líbios por “não entenderem sua visão política”.
O Palácio é protegido por esta Brigada, apesar da região Tripolitana já acusar vários focos de resistência e de algumas cidades já terem sido liberadas. No exterior, muitas embaixadas já mudaram de lado e a dissensão nas Forças Armadas não se resume mais à região de Benghazi – soldados e oficiais ainda ressentem os insultos de Gaddafi quando foram forçados a se retirar do Tchad em 1987 de cabeça baixa.
E o pós-Gaddafi?
Gaddafi vivo, é uma salva-guarda contra o terrorismo em toda essa região da África.
Gaddafi vivo, é uma salva-guarda contra o terrorismo em toda essa região da África.
A defecção da eminência civil e da eminência militar: Younes al-Abidi e Abdel Jalil em uma hora crucial, prometendo assegurar um processo transitório de três meses antes de eleições presidenciais, dá esperanças - apenas aos incautos - de calma após a tempestade. Fora do círculo de Gaddafi, não há quadros, pelo menos visíveis em Trípoli e Benghazi. Há exilados políticos, mas sem nenhuma influência aparente sobre o processo revolucionário. Dentro do país tem a Fraternidade Islâmica e alguns grupos extremistas, mas estes até agora não manifestaram religiosidade no movimento de libertação nacional. E primeiro teriam de se entender antes de pleitearem uma liderança respeitada. Mas a Líbia tem vários executivos laicos preparados para governar. Trabalharam para Gaddafi..., mas atire a primeira pedra quem não tiver sido cúmplice compulsório de seu “reinado”.
Se tivesse de prever o futuro de Gaddafi nestas páginas, se ele for coerente com a personagem que representava, vai seguir os passos de Hitler e suicidar-se.
Se não, será executado sumariamente pelos "rebeldes" com a bênção dos EUA.
Se não, será executado sumariamente pelos "rebeldes" com a bênção dos EUA.
Curtas. Na segunda-feira a Inglaterra cancelou um carregamento de armas para a Líbia para não ser acusada de cumplicidade no massacre. Só nos últimos meses de 2010 vendeu para Muammuar Kadhafi seis milhões de dólares de equipamento, inclusive fuzis de precisão para os “caçadores” e a munição de controle de multidão que está sendo usada. A Inglaterra não é o único camelô nesta área. Quem vende este tipo de munição a alguém como Kadhafi sabe para quê será usada. Quem comercializa a morte pode dar lição de moral a um tirano deste naipe?
. O crescimento do interesse econômico estrangeiro pela Líbia a partir de 1999 foi concomitante ao da corrupção dos sete filhos de Gaddafi e da filha, excluindo o povo da receita petroleira. O povo quer substituir seu regime pela charia, disse Gaddafi apelando sem vergonha parao medo ocidental da Lei islâmica. Se deixarem os cofres vazios – os bilhões do petróleo estão em Dubai, na Itália (Berlusconi e Gaddafi são íntimos), e em outros países – pode ser mesmo que os sobreviventes da chacina procurem Allah. Em que forma? Como disse, na Líbia há várias. Tantas quantas tribos adversárias.
. Quando perdeu Benghazi, justamente Benghazi onde começou sua ascensão meteórica, Gaddafi recebeu um tapa na cara e um aviso que Trípoli estava a dois passos. Em alguns prédios da capital, grafites o retratam como O Macaco dos Macacos da África. O aeroporto é o espelho do caos da cidade paralisada - fome e insalubridade.
Os funcionários estrangeiros abandonaram o navio dos negócios milionários, o Egito e a Tunísia começaram a ser inundados de refugiados, e Beirute e Malta já negaram várias autorizações de pouso a jatos privados com passageiros não identificados.
Nesta altura do campeonato, talvez nem Berlusconi acolha seus amigos da “família real” em desgraça.
. Com a recusa dos policiais a aumentar o número de mortos a milhares, o coronel Gaddafi só está protegido pelos “comitês populares” que são de fato as milícias dirigidas por membros de suas tribos. Um dos encargos da milícia era vigiar os oficiais militares... Com exceção do bunker-Palácio, Trípoli está cada vez mais próxima de Benghazi.
As horas de Gaddafi estão contadas.
As horas de Gaddafi estão contadas.
No Egito, Amr Moussa, atual presidente da Liga Árabe e ex-ministro do Exterior de Mubarak, anunciou sua candidatura às próximas eleições presidenciais. Passeou com dois parlamentares estadunidenses, John McCain e Joseph Lieberman, na praça Tahrir e enquanto isto, dezenas de manifestantes exigiam, diante do palácio, a demissão de Ahmad Shafiq, o primeiro ministro recentemente nomeado por Mubarak, e algumas greves eclodiram em cidades industriais.
A cúpula do Exército está em linha direta com o Pentágono que formou seus oficiais e quer assegurar a “paz fria” do país com Israel. Além disso, se o processo revolucionário prosseguir em uma linha democrática, os EUA querem conservar a regalia de aceder às reservas petrolíferas do Golfo a baixo custo, continuar a “cooperação” militar e incrementar o neoliberalismo que levou o país à revolta. Longe do que as passeatas reivindicavam.
Com o futuro político incerto e a economia em situação crítica, será que não é hora de dar uma mãozinha em vez de espremer o povo esgotado?
Na Jordânia as passeatas não visam à mudança do regime. A lealdade ao rei Abdullah e a estima pela rainha Rania são incontestáveis e não são contestadas. Mas os jordanianos querem mais do que a cabeça de um primeiro ministro. Abdullah vai ter de lhes dar algo mais; mas o quê? Onde buscar recursos que o país não dá? A repressão policial foi condenada em palácio e o novo primeiro ministro Marouf Makhit ordenou um inquérito. Abdullah sabe que não pode dar nem um passo em falso.
No Bahrein, o sheik Khalifa Bin Salman al-Khalifa liberou os cassetetes antes de se retratar e em seguida libertar vários presos políticos. Os militares foram (temporariamente?) retirados da rua e os manifestantes prometem continuar até que suas reivindicações sejam atendidas: nova constituição, verdadeira democracia e retorno dos “desaparecidos”. Os Khalifa prometeram mudanças concretas rápidas, mas não deram data.
No Yêmen, na terceira semana de protestos que começaram no dia 17, a trégua da repressão foi efêmera. A Anistia Internacional já anuncia 27 mortos, os chefes de Hashid e Baqil, as duas principais tribos, aderiram à revolta e mais cidades contestam a decisão de Alih Abdallah Saleh de continuar na presidência até 2013. Na Universidade de Sanaa os estudantes rebatizaram a praça em que acampam al-Huriya, a Liberdade. Perderam dois colegas e o protesto dobrou de intensidade.
Na Síria, o rei Bashar aumentou o salário do funcionalismo púbico, e "está mantendo" a calma. Será mantida, se os Estados Unidos e Israel não armarem a oposição.
No Sudão, o rei Bashir declarou que não vai se recandidatar à presidência.
Na Argélia, o rei Bouteflika acabou com o Estado de emergência em que o país vivia.
Na Arábia Saudita, o rei Abdullah prometeu U$36 bilhões para os súditos ficarem quietos.
Em Oman, no sábado, jovens manifestantes saíram às ruas de Sohar fazendo reivindicações econômicas, sociais e políticas. Nenhuma repressão foi armada e o sultão Qabos bin Said deu as caras anunciando a demissão de seis ministros, aumento de verba para as universidades e reformas socio-econômicas imediatas. A partir de fevereiro, o salário mínimo já ganha mais 43%, passando a U$520 mensais. Atos institucionais que nem a Tunísia, nem o Egito, nem o Yêmen, nem o Bahein fizeram, até agora. Mas no domingo a polícia atacou os manifestantes que se aproximavam da central de polícia da cidade. Qabos governa Oman desde que tomou o poder do pai em 1970, "para acabar com o isolamento do país e usar a renda do petróleo para modernisá-lo."
Esta revolta em Oman, país relativamente calmo e com um padrão de vida razoável, mostra que as reivindicações socio-econômicas nas passeatas são uma fachada. Os árabes estão com fome mesmo é de Tahrir, Liberdade.
Neste ínterim, no Paquistão, após a condenação à morte em novembro de uma cristã por “insulto ao Islã”, apesar das pressões, o governo continua decidido a manter a Lei da Blasfêmia. O assassinato recente do governador do Punjab Salman Taseer (o “heroísmo” do assassino foi aclamado) por criticar a lei em público, mostra que ela é um instrumento perigoso de Caça às Bruxas das minorias religiosas, mas também dos políticos liberais.
Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein (1925)