domingo, 27 de março de 2011

Petróleo? E água.

Em homenagem ao dia 23, da água, resolvi deixar de lado a Líbia, Kadhafi e seus adversários tribais apoiados pelos aviões franceses, ingleses e quataris sob as ordens do Pentágono e dar um pulo nos dois extremos da península árabe.
Primeiro o Yêmen, cujo presidente Ali Abdullah Saleh, no poder por 32 anos, após dois meses de repressão às passeatas, durante os quais permitiu inclusive o assassinato de cinquenta e três pessoas por caçadores de tocaia em telhados e de dezenas de outros por soldados regulares, resolveu recuar e negociar sua retirada.
Os pontos principais são o destino de sua família – seus filhos e sobrinhos chefiam vários setores, inclusive das Forças Armadas – e o momento de retirar-se, já que sua proposta de terminar o mandato foi rejeitada.
Saleh vai sair, é certo, pois quer se livrar de uma bomba que vai explodir na mão do próximo presidente de maneira inexorável. Sanaa é a primeira capital do mundo condenada, em curto prazo, à seca total.
Daqui a 20 anos, no máximo, não terá mais nenhuma gota d’água nas torneiras. Os dois milhões de habitantes terão exaurido todas as camadas freáticas próximas, e a médio e longo prazo, das proximidades. A situação da capital é crítica, mas o ressecamento atinge o país inteiro. A agricultura consome 90% da água, dos quais 37% são usados para a cultura subsidiada de um arbusto chamado khat, cujas folhas, que têm o efeito da anfetamina, são mastigadas diariamente por mais de 90% da população masculina. Esta, mesmo sabendo que a água é mais valiosa do que o petróleo e que sem ela a morte é certa, prefere a droga diária que os entorpece do que a fonte que os revigora.
Quem sabe um governo democrático deixa de financiar o khat, já que não precisará de uma população quimicamente alienada?

Na Síria, a situação do regime autoritário do presidente Bashar al-Assad, 11 anos no “trono” herdado do pai, Hafez al-Assad, que governou o país por 30 anos, também está periclitante, apesar de sua reação rápida desde janeiro para abafar os focos de revolta.
Não há como esconder a depredação inusitada das fotografias de Bashar e de estátuas do pai em Daraa (onde os protestos começaram), Homs, Sanamim, Latakia. As concessões feitas nos últimos dois meses – subsídio de aquecimento, maior acesso à mídia, redução de três meses no serviço militar, libertação de dezenas de presos políticos e o fim do estado de emergência (em vigor desde 1963) – ainda não bastaram para acalmar as ruas. Porém, por mais que Washington queira ter em Damasco um aliado subserviente como o saudita Abdullah é em Ryad, Assad é autoritário, mas não é um Muammar Kadhafi. E o movimento antagonista não é de massa como no Egito e na Tunísia.
Em Damasco houve uma manifestação muito grande em seu favor e grande parte das passeatas nas demais cidades acontecem após o enterro de um dos mortos (27 oficiais, cem a mais, segundo a voz popular) e a palavra de ordem não é abaixo o regime, mas sim, punição aos culpados.
Não é que os sírios não prefiram um regime democrático, mas a intervenção na Líbia arrefeceu o ânimo dos jovens e foi um balde de água fria no fogo de liberdade que se alastrava pelos países árabes.
Aliás, nos países "incendiados" o que se está ouvindo mais é que não querem nenhum estrangeiro na parada; que roupa suja se lava em casa. Minha impressão na Síria é que as mudanças virão, em um ritmo nacional.

E na Palestina a voz do povo também está sendo ouvida, e respeitada.
Sob pressão constante dos jovens na ruas de Ramallah exigindo união política, o líder do Fatah, Mahmoud Abbas, acabou encontrando Aziz Dweik, líder parlamentar do Hamas e concordou em ir a Gaza dialogar.
Será que foi mesmo por isto que Israel voltou a bombardear a Faixa mais amiúde do que seus bombardeios noturnos aos quais se está acostumado? É o que se conjetura por lá, quando deploram os civis mortos e feridos nos ataques.

E para não dizer que não falei na Líbia, vou falar sem falar, ou melhor, por tabela, sucinta, da Arábia Saudita (fornecedora de mão-de-obra e logística às operações estadunidenses no mundo árabe).
Na década de oitenta do século passado, os EUA treinaram um milionário saudita fundamentalista chamado Bin Laden para combater os soviéticos no Afeganistão, e este mais tarde fundou o AL-Qaida.
Em 2001, um piloto saudita treinado nos EUA jogou um Boeing 757 no Pentágono, a serviço do Al-Qaida.
Em 2011, o Pentágono está com um projeto imediato de levar para os EUA dezenas de jovens sauditas para treiná-los a voar, e matar.
Parafraseando Karl Marx, a história primeiro se repete em tragédia. A segunda, em farsa.

domingo, 20 de março de 2011

A Inês é morta?

A decisão da ONU de autorizar a exclusão aérea da Líbia, por unanimidade, em Paris, chegou tarde.
Em fevereiro teria soado justa para os líbios e para o mundo inteiro. Em março parece interesseira.
A resposta demagógica do ditador máximo veio por rádio: “Chegou a hora de abrir as lojas e armar a massa com todo tipo de artilharia para defender a independência, a unidade e a honra da Líbia!”
Kadhafi reivindicou em seguida seu direito de defesa, estipulado no artigo 51 da ONU, e liberou o caminho da emigração “clandestina” para a Europa. Sua arma secreta contra as Forças Internacionais que marcaram bem nos mapas os poços de petróleo para não serem alvos de nenhuma bomba extraviada. Têm de ser preservados para serem repartidos mais tarde.
As bombas ocidentais visam as defesas e as forças armadas do Coronel, os mercenários e não os soldados. Ingenuidade? Os EUA, que há anos usam esta mão-de-obra no Iraque pelas mesmas razões que Kadhafi (isenção de ética e fidelidade cega ao vil metal) sabem da dificuldade, quando não da impossibilidade, de distinguir quem é quem na hora do ataque, sobretudo quando este é feito do alto.
As bombas caem em pontos estratégicos, mas todos sabem que The End só vai aparecer na tela quando em Trípoli o bunker-palácio virar fumaça.
Por enquanto, o muro deste está com um escudo humano, só se vê na rua homens armados, bombas caem sem que a população apavorada saiba muito bem quem e o que é alvo, mulheres choram mortos enterrados e os que vão enterrar mais tarde, e um senhor idoso, que tem cara de quem passou por tudo que um homem pode passar, mas que apesar de tudo é calmo e amável, fez este comentário: "Até hoje nossos filhos e netos pisam e explodem com os milhões de minas deixadas pelos ocidentais. Se tirarem Kadhafi para voltarem a nos subjugar como fazem no Iraque, vou entregar a alma só depois de esvaziar minha arma."
Se o ataque aéreo não surtir o efeito desejado ter-se-á de ir mais longe e pôr tropas no solo... E aí, o que vai acontecer com os soldados ocidentais neste emaranhado tribal?
Parafraseando William Shakespeare, What's done is done. O que está feito está feito. Só resta torcer para que os danos materiais e humanos sejam limitados.

Neste ínterim,
. No Iraque, os cristãos continuam a ser caçados e o milhão que existia quando os EUA invadiram o país, entre mortos e emigrados, resta menos da metade, dos quais cem mil em Bagdá. Al Qaïda os chama de "alvo legítimo" e há meses abriu a temporada de caça. A Fraternidade Islâmica pediu para os iraquianos protegerem "seus irmãos cristãos".
Ainda tem desavisados que põem ambos no mesmo saco.
. Na Palestina, passeatas reuniram milhares de jovens em Ramallah (controlada pelo Fatah) e na cidade de Gaza (controlada pelo Hamas) para exigir a união dos dois partidos. Em Gaza, o primeiro ministro banido Ismail Haniyeh, do Hamas, declarou que está na hora do processo de reconciliação começar. Em Ramallah, o porta-voz do Fatah, Ahmed Assaf, rejeitou a proposta na terça-feira alegando falta de sinceridade.
Está passando da hora dos EUA tirarem as algemas de Mahmoud Abbas e deixá-lo estender a mão a Ismail Haniyeh para a vontade do povo ser respeitada. O único jeito de negociar uma paz viável e durável com Israel é o Hamas e o Fatah caminharem para a mesa de mãos dadas.
O jogo de dividir para reinar já foi longe demais.

domingo, 13 de março de 2011

Kadhafi contra-ataca; Knesset endurece a linha

A natureza provocou uma tragédia no Japão e em seguida a ameaça de contaminação nuclear apavorou japoneses e os países vizinhos. Todos se lembram do desastre em Tchernobyl 24 anos atrás, cujas consequências os ucranianos sofrem na pele até hoje.

Fora de lá...
No Egito, depois da agressão aos Coptas, cristãos e muçulmanos esclarecidos voltaram a desfilar ostentando a bandeira com a cruz e a lua crescente entrelaçadas. Quem dera o bom senso fosse geral.
Na sexta-feira a União Européia votou contra a exclusão aérea da Líbia, e Nicolas Sarkozy e James Cameron isolaram a França e a Inglaterra dos demais países encabeçados pela Alemanha, que votou conforme à jurisprudência internacional. Esta impõe três condições sine qua non para a exclusão solicitada. Primeiro, “a necessidade óbvia” tem de ser provada, ou seja, que a população está sob ameaça de ataque aéreo e de uso de armas químicas; segundo, tem de haver “base legal clara”, ou seja, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU ou uma condenação por crimes contra a humanidade oficializada pela Convenção de Genebra, contra Kadhafi; e “apoio regional” tem de estar assegurado, que, no caso da Líbia, é da União Africana e da Liga Árabe. Esta terceira condição é primordial. Sem o aval dos africanos e dos árabes, um envolvimento militar da OTAN seria, além dos riscos que a ingerência comporta, irresponsável. A União Africana ficou calada, mas a Liga Árabe concordou com a exclusão aérea. Talvez um pouco tarde.
As tropas de Kadhafi vêm ganhando terreno estratégico, inclusive recuperando Brega e o aeroporto que lhe proporciona abastecimento em víveres e armas, e abrindo caminho para Benghazi. O que não é surpresa, pois a divisão entre os rebeldes é tamanha, e as lideranças tão heterogêneas e sem tática, que mesmo armados de armas pesadas o recuo é diário. Na Cyrenaica alguns habitantes já balançam entre os lados, pois certos grupos também matam civis que não queiram cooperar.
É provável que os mortos sejam contados por milhares, mas as vontades dos grupos rebeldes (fora a de derrubar Kadhafi) são tão variadas ou indeterminadas, que armar essas tribos seria (está sendo?) um grande erro tático a médio e longo prazo. Em vez de baratear, talvez o petróleo saísse custando caro demais. Como no Iraque.

Na França, Nicolas Sarkozy acabou de dar um bom exemplo da necessidade de ter um diplomata de carreira na cabeça do Ministério das Relações Exteriores, para evitar que o presidente faça bobagem.
Seu país já reconheceu o Conselho Nacional Líbio, auto-nomeado em Benghazi, surpreendendo até os aliados com esta urgência em se desincompatibilizar de Kadhafi.
Ora, para o Conselho de Benghazi servir a democracia, tem de ser de transição ou seu poder também seria discricionário, já que não foi eleito por sufrágio universal. E a história contemporaneíssima do Afeganistão e do Iraque estampa em letras vermelhas garrafais o resultado de reconhecer governos que não contam com apoio popular.
Além do mais, esta validação estrangeira precipitada fornece munição verbal a Kadhafi em sua campanha para desacreditar a motivação nacionalista do movimento que quer derrubá-lo.

Os EUA, à procura de uma via torta para intervir e derrubar o Coronel odiado, fizeram apelo ao rei Abdullah, o ditador amigo, da Arábia Saudita (que desceu o cassetete nos súditos que saíram às ruas; mas aos aliados se perdoa tudo?).
Washington sabe do ódio de Abdullah por Kadhafi, que tentou assassiná-lo no ano passado, e recorreu ao rei para armar os rebeldes por tabela. Este “negócio” não seria (está sendo?) o primeiro entre os dois países. A família real saudita já protagonizou vários tráficos de armas para adversários dos EUA, e no final dá sempre errado.
No nosso continente, durante o governo de Ronald Reagan, eles armaram os Contra na Nicarágua; e depois na Ásia, intermediaram o armamento dos afegãos contra a União Soviética – armas leves e pesadas que acabaram nas mãos dos talibã e depois dos tchetchenos e seus aliados no Cáucaso.

Epílogo Tripolitano: Ouvi dizer que Kadhafi nem se preocupa mais com uma intervenção militar ocidental. Pois caso acontecesse, viraria mártir da pátria invadida pelos EUA.
Se facilitar, seu sonho será realizado e vai acabar o reino de terror como herói nacional, “canonizado” por seus piores adversários, na roda-viva da geopolítica do curto prazo.
E,
Em Nablus, na Cisjordânia, cada vez que alguma estrutura proibida é demolida (por policiais, para manter um suposto limite às invasões nos Territórios Ocupados) os colonos israelenses descontam na população local em operações corriqueiras que chamam de “etiqueta de preço” – há pouco jogaram uma bomba incendiária em uma casa em Huwarra que provocou a hospitalização dos filhos do casal por intoxicação. Cansados dos ataques constantes dos invasores que além das terras lhes confiscam a pouca água, há alguns dias os nablusianos saíram às ruas para reclamar das agressões e a passeata pacífica foi reprimida a bala pelos soldados israelenses que feriram dez participantes.
A tensão foi aumentando e neste fim-de-semana, um casal e três filhos que viviam na colônia de Itamar, próxima de Nablus, foram esfaqueados, provocando uma operação militar israelense violenta na cidade: invasões de casas e tudo o que acontece quando o exército ocupante procede a este tipo de razzia.
Para completar, em “represália”, Binyamin Netanyahu informou, Barak Obama por telefone e o resto do mundo em um comunicado, que construirá mais 500 casas lá.
O assassinato da família Fogel é hediondo. Quaisquer que fossem as razões do assassino – asfixia econômica e moral, vida de animal abusado e encurralado – nenhuma é válida, e as autoridades palestinas já estão à busca do culpado.
Crimes de colonos contra os ocupados são mais comuns, inclusive de um bebê de três meses. Quando é um colono que mata um palestino, é tratado como preso comum, julgado em Tel Aviv e chamado de militante extremista.
Por que o assassino desta família está sendo chamado de terrorista?
É um criminoso que tem de ser punido, mas pela Autoridade Palestina. Se não o sentimento de impotência da população ocupada vai aumentar e a tensão mais ainda.
Os palestinos condenam o crime, mas não conseguem entender porquê os bombardeios de civis de todas as idades em Gaza, noturnos e calculados, são chamados de operação militar e os criminosos desfrutam de impunidade enquanto que um assassinato isolado e raro é chamado de ato terrorista e a comunidade toda paga o pato.
O temor que a punição já anunciada não satisfaça a sede de sangue da Linha dura israelense está tirando o sono de adultos e crianças em Nablus e no resto da Cisjordânia.

Invasão de Nablus em 2007: http://www.youtube.com/watch?v=sXxFVlUKsiA
Situação de Nablus em 2010: http://www.youtube.com/watch?v=QGooZvxBqlU


 
Na semana passada falei sobre a manutenção do Congresso estadunidense da ajuda militar de três bilhões de dólares a Israel em detrimento de projetos cruciais na área nacional de saúde e educação. Como ganância pouca é bobagem, Ehud Barak, Ministro da Defesa israelense, anunciou há pouco que vai pedir a Washington mais U$20 bilhões para mais aviões de combate, mísseis, submarinos, etc.
(Para se proteger das pedras que os jovens jogam contra os check-points que os impedem de ir à escola? Ou dos adultos desarmados que manifestam diariamente em B’lim contra o muro que devora suas plantações e quintais?)
O primeiro ministro Binyamin Netanyahu posou então ao lado de soldadas, como fazia Muammar Kadhafi quando se pavoneava, e reiterou que seu exército jamais se retirará do Vale do Jordão, que pertence à Cisjordânia. Voltou a desafiar a ONU publicamente completando que esta faixa é de segurança vital para Israel e coisa e tal. Uma ladainha tão antiga quanto a ocupação que também dura 41 anos. A mais longa da história mundial.
E no dia 8, no Knesset, os parlamentares aprovaram uma lei que proíbe seus concidadãos de protestar contra a ocupação da Cisjordânia. A “Lei anti-boicote” foi condenada massivamente pelas 53 ONGs israelenses de Direitos Humanos. Na carta que enviaram ao Knesset condenando a decisão dos parlamentares, reafirmaram que “o boicote é uma maneira de expressão cívica, não-violenta e legítima de exprimir a opinião e promover mudança social e política”. Esta lei anti-boicote não foi a única lei antidemocrática votada em plenário, mas foi a que provocou reações mais indignadas.

Falando nisto, eis o site do Global BDS, movimento que cresce em Tel Aviv e nos países ocidentais, apesar da vontade da Linha dura do Knesset de erradicá-lo: http://www.bdsmovement.net/.

Ação do BDS em Bruxelas: http://www.youtube.com/watch?v=MJncQ7toX9s
Comitê de Israel contra a demolição de casas: http://www.icahd.org/
Free Gaza Movement: http://www.freegaza.org/; http://gazasiege.org/

domingo, 6 de março de 2011

Ingerência não é assistência

A semana foi marcada por uma ameaça de intervenção da OTAN na Líbia, condenada por Muammar Kadhafi a uma guerra civil de duração imprevisível.
Na semana passada Trípoli parecia perdida, hoje Benghazi retomou a vida normal e a cidade está à deriva administrativa. A população foi pega de surpresa pelo movimento revolucionário e não estava preparada para assumir a gestão e por enquanto nem o trânsito está sendo regulado.
Navios de guerra estadunidenses estão a postos no mar Mediterrâneo, batalhões ingleses idem, e o coronel Kadhafi, que nunca chegou e jamais chegará a general, conseguiu aliados graças à ameaça de intervenção ocidental.
Aviso aos invasores potenciais, tem uma coisa que os líbios detestam mais do que Kadhafi: estrangeiros em suas fronteiras cantando de galo.
A ONU intervir com funcionários para mediar conflito entre duas nações ou com soldados para fazer respeitar as leis internacionais, é perfeitamente justificável, já que um de seus propósitos é manter o equilíbrio mundial entre os Estados.
Porém, ingerência externa em um país para resolver conflito doméstico é um disparate. Por melhor que seja a intenção, a história mostra que o resultado é sempre um desastre. Vide a Indochina, o Vietnam e o Iraque.
Na primeira guerra do golfo em 1991, para “salvar” o Kweite da invasão do Iraque para recuperar terras que o invadido havia ocupado (uma questão de água), George Bush que odiava Saddam Hussein por querelas pessoais, fez sua “Tempestade do deserto” e condenou o Iraque a um boicote draconiano – em teoria, para alienar a população de Saddam Hussein para que ele caísse sem maiores trabalhos... Na prática o tiro saiu pela culatra. O povo se sentiu visado e a carência de gêneros de primeira necessidade o levou a apoiar o presidente em desgraça, em vez de rejeitá-lo.
O resultado foi o bombardeio do Iraque dez anos mais tarde, com a aquiescência até de alguns democratas liberais que acreditaram na mentira das armas de destruição em massa e acharam que embora tivessem deixado Augusto Pinochet aterrorizar o Chile durante anos, Saddam Hussein tinha de ser aniquilado.
Na época insisti que era um erro não apenas por a invasão ser contrária ao parecer da ONU, mas também porque as divisões étnicas e religiosas no país eram ancestrais e só não pareciam graves porque Saddam Hussein mantinha a ordem (à sua maneira drástica). E por outro lado, o país não estava pronto para assumir a liberdade. A fome de liberdade é um processo que pode ser rápido, mas muitas vezes é lento e tem de ser vivido em todas as etapas, pois são elas que levam ao amadurecimento da sociedade.
A sociedade iraquiana não estava preparada para o pós-Saddam Hussein e deu no que tinha de dar. Esta é outra história que abordarei mais tarde.
De uma forma geral, os países árabes atingiram este grau de maturidade e estão lutando pela liberdade sem nenhum “patrocínio” desconfiável. Esta é sua autenticidade e é daí que vem o entusiasmo com um futuro que estão querendo construir com liberdade.
Sei que vou desagradar, mas na Líbia não se sente a mesma unanimidade da Tunísia e do Egito. Não que é que o povo esteja satisfeito com Kadhafi, longe disso! Mas o país é tribal, as tribos são diferentes e não vêm o país e a vida com os mesmos olhos, e o processo revolucionário aconteceu por acaso; por causa da repressão a uma passeata por razões diferentes, em Benghazi e não na capital. Na Tripolitana o movimento ainda não é de massa, embora a população esteja com vontade de avançar, sem o jugo do coronel Kadhafi.
Os rebeldes estão ganhando terreno, estão armados , mas o Coronel dispõe de artilharia pesada e disse que vai lutar até o último homem. Quem duvida? Mas por mais que a perda de vidas seja deplorável, o conflito é nacional. Se Kadhafi sair vitorioso será porque a vontade de derrubá-lo não era majoritária e a determinação não era suficiente para derrubar o palácio. E armar os rebeldes, como cogita Washington depois de Londres, só é uma boa solução para os negociantes de armas.
Estou sendo lúcida, e não advogada do diabo.
Gelar a fortuna dos Kadhafi nos bancos ocidentais? É legítimo. Mais ainda se este dinheiro fosse restituído aos cofres da Nação desfalcada. Mas na real-política isto é só vontade.
Gelar a venda de armas para Kadhafi e policiar o tráfico? É necessário. Que se saiba, seu arsenal não é inesgotável.
Mas atacar Trípoli para botar as mãos na maior reserva de petróleo da África? Aí a estória fica macabra.
Será que não aprenderam a lição do Iraque?
E esta estória de bombardeio “cirúrgico” é uma fábula. No Iraque, dezenas de famílias morreram “por acaso” e vilarejos inteiros foram tirados do mapa. Em Trípoli, não há como bombardear o palácio sem matar homens, mulheres e crianças inocentes. E dizem que o bunker de Kadhafi é à prova de morteiros; de bomba então, nem falar!
Sem contar que combater selvageria com selvageria é o pior recurso para alcançar a paz. A cicatriz ficaria aberta por décadas. E Kadhafi sabe disto. Tanto ele quanto seus compatriotas lembram de pai para filho o período colonial quando eram obrigados a caminhar na sarjeta para deixar a calçada para o italiano passar.
Nenhuma ocupação é desejada e nem justificável.
Líbios exilados pedem intervenção - os iraquianos na mesma situação também pediam - e algumas tribos rebeldes solicitam armas e o bombardeio ocidental de pontos estratégicos, mas eles não representam todas as tribos, e a vondade é pontual.
O certo na Líbia é que os jornalistas não têm acesso a toda informação porque a circulação é restrita. Há duas versões distintas dos acontecimentos e ninguém pode garantir certeza absoluta. A única coisa visível é que o país está dividido. Ninguém pode afirmar com certeza o que querem os líbios. E na dúvida, é melhor eles serem deixados tranquilos.
Uma revolução bem sucedida é a que é feita pelo povo, unido, que consegue a adesão de todos, inclusive das forças armadas.
O então candidato Barack Obama criticou seus adversários políticos por estes terem colocado os EUA do “lado errado da história”. Chegou a hora do presidente de agora ser coerente pelo menos nisso e se colocar do lado certo, sem estória.
O processo revolucionário é árabe ou não será. Neste processo, o resto do mundo só pode ser testemunha, nada mais.

Neste ínterim...
.
No Iraque, as ruas de Bagdá também encheram de gente reivindicando reformas. A passeata pacífica foi reprimida com violência e 29 pessoas foram mortas. Tem 50.000 soldados estadunidenses lá, em princípio, para velar pela instituição de um “regime democrático”. Onde estavam quando o presidente fiel aos EUA mandou bater e atirar em civis desarmados?
. Na noite de sábado, os aviões israelenses bombardearam a cidade de Gaza, o norte da Faixa e um túnel na fronteira com o Egito. Três bombas visavam as bases da brigada de Izzedine al-Qassam, o braço armado do Hamas. Israel repetiu que o bombardeio, noturno, foi retaliativo, por causa de um foguete ter atingido o deserto de Negev de manhã. A chefia política do Hamas voltou a insistir no respeito à trégua.
Aliás, parece até que o lançamento destes foguetes inócuos visa mesmo é dar desculpa a Israel para usar sua artilharia pesada. São foguetinhos que raramente causam perdas humanos, às vezes, materiais, e a retaliação é sempre desproporcional. Além de tirar o sono dos habitantes da Faixa, provoca graves danos emocionais e materiais, quando não de ferimentos graves ou mortais. Está passando da hora do Hamas pôr as mãos nos culpados que servem mais Israel do que a paz.
. Nos EUA, o Congresso aprovou cortes no orçamento para programas vitais de utilidade pública no setor de emprego, educação e saúde, porém, os U$3 bilhões de dólares de ajuda militar a Israel nem entraram na pauta. Este é um dos assuntos em que democratas e republicanos, de uma forma geral, concordam sem pestanejar, graças à força de persuasão lobística da APAIC. É normal que o país ajude um aliado, mas poderia condicionar esta ajuda ao gelo das colônias e ao respeito dos tratados internacionais. Mas isto é uma miragem.

Vou aproveitar a "âncora" para responder uma das várias perguntas que me fazem e que pus de lado desde o início das revoltas árabes.
Como os Estados Unidos conseguem manter duas guerras – Iraque e Afeganistão – sem aumentar os impostos para financiá-las?Porque os EUA as estão financiando com débito. Ou seja, com grande parte dos cerca de U$14.19 trilhões de dinheiro estrangeiro emprestado, o que o coloca em 12° lugar entre os países mais endividados do planeta (o PIB é de U$14.66 trilhões).
Os dez maiores credores dos EUA em bilhões são, China (1160.1), Japão (882.3), Inglaterra (272.1), países da OPEP (211.9), Brasil (186.1), bancos caribenhos (168.6), Hong Kong (134.2), Suiça (107), Taiwan (155.1) e Rússia (151).
Os novos empréstimos previstos para os próximos anos levam a uma projeção de aumento do débito público a U$26 trilhões em 2021. Os especialistas prevêem que neste ritmo, entre 2030 e 2040 gastos obrigatórios, como seguridade social mínima e assistência médica básica, somados aos juros da dívida, vão suplantar o imposto de renda. O que significa que terão de endividar-se mais ainda para gastos com coisas essenciais como educação, defesa e polícia.
Como disse no início do milênio, os EUA estão em um tobogã que só tem um destino. O império está falindo mais depressa do que muitos pensavam. O que os segura na cabeça é o armamento pesado que, paradoxalmente, é um dos grandes responsáveis pelo gasto excessivo e o declínio inevitável. Neste ritmo, daqui a 50 anos o mundo terá um, dois ou quatro novos líderes de direito e de fato.
Este líder vai certamente sair do BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China) a quem os EUA dão um exemplo implícito: Se quiser harmonia social doméstica e hegemonia mundial promissora, segura e duradoura, é melhor não fazer inimigos fora de casa, e dentro, investir em educação, saúde e emprego, em vez de fabricar armas que terão de ser vendidas e cedo ou tarde, usadas.