A semana foi marcada por uma ameaça de intervenção da OTAN na Líbia, condenada por Muammar Kadhafi a uma guerra civil de duração imprevisível.
Na semana passada Trípoli parecia perdida, hoje Benghazi retomou a vida normal e a cidade está à deriva administrativa. A população foi pega de surpresa pelo movimento revolucionário e não estava preparada para assumir a gestão e por enquanto nem o trânsito está sendo regulado.
Navios de guerra estadunidenses estão a postos no mar Mediterrâneo, batalhões ingleses idem, e o coronel Kadhafi, que nunca chegou e jamais chegará a general, conseguiu aliados graças à ameaça de intervenção ocidental.
Aviso aos invasores potenciais, tem uma coisa que os líbios detestam mais do que Kadhafi: estrangeiros em suas fronteiras cantando de galo.
A ONU intervir com funcionários para mediar conflito entre duas nações ou com soldados para fazer respeitar as leis internacionais, é perfeitamente justificável, já que um de seus propósitos é manter o equilíbrio mundial entre os Estados.
Porém, ingerência externa em um país para resolver conflito doméstico é um disparate. Por melhor que seja a intenção, a história mostra que o resultado é sempre um desastre. Vide a Indochina, o Vietnam e o Iraque.
Na primeira guerra do golfo em 1991, para “salvar” o Kweite da invasão do Iraque para recuperar terras que o invadido havia ocupado (uma questão de água), George Bush que odiava Saddam Hussein por querelas pessoais, fez sua “Tempestade do deserto” e condenou o Iraque a um boicote draconiano – em teoria, para alienar a população de Saddam Hussein para que ele caísse sem maiores trabalhos... Na prática o tiro saiu pela culatra. O povo se sentiu visado e a carência de gêneros de primeira necessidade o levou a apoiar o presidente em desgraça, em vez de rejeitá-lo.
O resultado foi o bombardeio do Iraque dez anos mais tarde, com a aquiescência até de alguns democratas liberais que acreditaram na mentira das armas de destruição em massa e acharam que embora tivessem deixado Augusto Pinochet aterrorizar o Chile durante anos, Saddam Hussein tinha de ser aniquilado.
Na época insisti que era um erro não apenas por a invasão ser contrária ao parecer da ONU, mas também porque as divisões étnicas e religiosas no país eram ancestrais e só não pareciam graves porque Saddam Hussein mantinha a ordem (à sua maneira drástica). E por outro lado, o país não estava pronto para assumir a liberdade. A fome de liberdade é um processo que pode ser rápido, mas muitas vezes é lento e tem de ser vivido em todas as etapas, pois são elas que levam ao amadurecimento da sociedade.
A sociedade iraquiana não estava preparada para o pós-Saddam Hussein e deu no que tinha de dar. Esta é outra história que abordarei mais tarde.
De uma forma geral, os países árabes atingiram este grau de maturidade e estão lutando pela liberdade sem nenhum “patrocínio” desconfiável. Esta é sua autenticidade e é daí que vem o entusiasmo com um futuro que estão querendo construir com liberdade.
Sei que vou desagradar, mas na Líbia não se sente a mesma unanimidade da Tunísia e do Egito. Não que é que o povo esteja satisfeito com Kadhafi, longe disso! Mas o país é tribal, as tribos são diferentes e não vêm o país e a vida com os mesmos olhos, e o processo revolucionário aconteceu por acaso; por causa da repressão a uma passeata por razões diferentes, em Benghazi e não na capital. Na Tripolitana o movimento ainda não é de massa, embora a população esteja com vontade de avançar, sem o jugo do coronel Kadhafi.
Os rebeldes estão ganhando terreno, estão armados , mas o Coronel dispõe de artilharia pesada e disse que vai lutar até o último homem. Quem duvida? Mas por mais que a perda de vidas seja deplorável, o conflito é nacional. Se Kadhafi sair vitorioso será porque a vontade de derrubá-lo não era majoritária e a determinação não era suficiente para derrubar o palácio. E armar os rebeldes, como cogita Washington depois de Londres, só é uma boa solução para os negociantes de armas.
Estou sendo lúcida, e não advogada do diabo.
Gelar a fortuna dos Kadhafi nos bancos ocidentais? É legítimo. Mais ainda se este dinheiro fosse restituído aos cofres da Nação desfalcada. Mas na real-política isto é só vontade.
Gelar a venda de armas para Kadhafi e policiar o tráfico? É necessário. Que se saiba, seu arsenal não é inesgotável.
Mas atacar Trípoli para botar as mãos na maior reserva de petróleo da África? Aí a estória fica macabra.
Será que não aprenderam a lição do Iraque?
E esta estória de bombardeio “cirúrgico” é uma fábula. No Iraque, dezenas de famílias morreram “por acaso” e vilarejos inteiros foram tirados do mapa. Em Trípoli, não há como bombardear o palácio sem matar homens, mulheres e crianças inocentes. E dizem que o bunker de Kadhafi é à prova de morteiros; de bomba então, nem falar!
Sem contar que combater selvageria com selvageria é o pior recurso para alcançar a paz. A cicatriz ficaria aberta por décadas. E Kadhafi sabe disto. Tanto ele quanto seus compatriotas lembram de pai para filho o período colonial quando eram obrigados a caminhar na sarjeta para deixar a calçada para o italiano passar.
Nenhuma ocupação é desejada e nem justificável.
Líbios exilados pedem intervenção - os iraquianos na mesma situação também pediam - e algumas tribos rebeldes solicitam armas e o bombardeio ocidental de pontos estratégicos, mas eles não representam todas as tribos, e a vondade é pontual.
O certo na Líbia é que os jornalistas não têm acesso a toda informação porque a circulação é restrita. Há duas versões distintas dos acontecimentos e ninguém pode garantir certeza absoluta. A única coisa visível é que o país está dividido. Ninguém pode afirmar com certeza o que querem os líbios. E na dúvida, é melhor eles serem deixados tranquilos.
Uma revolução bem sucedida é a que é feita pelo povo, unido, que consegue a adesão de todos, inclusive das forças armadas.
O então candidato Barack Obama criticou seus adversários políticos por estes terem colocado os EUA do “lado errado da história”. Chegou a hora do presidente de agora ser coerente pelo menos nisso e se colocar do lado certo, sem estória.
O processo revolucionário é árabe ou não será. Neste processo, o resto do mundo só pode ser testemunha, nada mais.
Neste ínterim...
. No Iraque, as ruas de Bagdá também encheram de gente reivindicando reformas. A passeata pacífica foi reprimida com violência e 29 pessoas foram mortas. Tem 50.000 soldados estadunidenses lá, em princípio, para velar pela instituição de um “regime democrático”. Onde estavam quando o presidente fiel aos EUA mandou bater e atirar em civis desarmados?
. Na noite de sábado, os aviões israelenses bombardearam a cidade de Gaza, o norte da Faixa e um túnel na fronteira com o Egito. Três bombas visavam as bases da brigada de Izzedine al-Qassam, o braço armado do Hamas. Israel repetiu que o bombardeio, noturno, foi retaliativo, por causa de um foguete ter atingido o deserto de Negev de manhã. A chefia política do Hamas voltou a insistir no respeito à trégua.
Aliás, parece até que o lançamento destes foguetes inócuos visa mesmo é dar desculpa a Israel para usar sua artilharia pesada. São foguetinhos que raramente causam perdas humanos, às vezes, materiais, e a retaliação é sempre desproporcional. Além de tirar o sono dos habitantes da Faixa, provoca graves danos emocionais e materiais, quando não de ferimentos graves ou mortais. Está passando da hora do Hamas pôr as mãos nos culpados que servem mais Israel do que a paz.
. Nos EUA, o Congresso aprovou cortes no orçamento para programas vitais de utilidade pública no setor de emprego, educação e saúde, porém, os U$3 bilhões de dólares de ajuda militar a Israel nem entraram na pauta. Este é um dos assuntos em que democratas e republicanos, de uma forma geral, concordam sem pestanejar, graças à força de persuasão lobística da APAIC. É normal que o país ajude um aliado, mas poderia condicionar esta ajuda ao gelo das colônias e ao respeito dos tratados internacionais. Mas isto é uma miragem.
Vou aproveitar a "âncora" para responder uma das várias perguntas que me fazem e que pus de lado desde o início das revoltas árabes.
Como os Estados Unidos conseguem manter duas guerras – Iraque e Afeganistão – sem aumentar os impostos para financiá-las?Porque os EUA as estão financiando com débito. Ou seja, com grande parte dos cerca de U$14.19 trilhões de dinheiro estrangeiro emprestado, o que o coloca em 12° lugar entre os países mais endividados do planeta (o PIB é de U$14.66 trilhões).
Os dez maiores credores dos EUA em bilhões são, China (1160.1), Japão (882.3), Inglaterra (272.1), países da OPEP (211.9), Brasil (186.1), bancos caribenhos (168.6), Hong Kong (134.2), Suiça (107), Taiwan (155.1) e Rússia (151).
Os novos empréstimos previstos para os próximos anos levam a uma projeção de aumento do débito público a U$26 trilhões em 2021. Os especialistas prevêem que neste ritmo, entre 2030 e 2040 gastos obrigatórios, como seguridade social mínima e assistência médica básica, somados aos juros da dívida, vão suplantar o imposto de renda. O que significa que terão de endividar-se mais ainda para gastos com coisas essenciais como educação, defesa e polícia.
Como disse no início do milênio, os EUA estão em um tobogã que só tem um destino. O império está falindo mais depressa do que muitos pensavam. O que os segura na cabeça é o armamento pesado que, paradoxalmente, é um dos grandes responsáveis pelo gasto excessivo e o declínio inevitável. Neste ritmo, daqui a 50 anos o mundo terá um, dois ou quatro novos líderes de direito e de fato.
Este líder vai certamente sair do BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China) a quem os EUA dão um exemplo implícito: Se quiser harmonia social doméstica e hegemonia mundial promissora, segura e duradoura, é melhor não fazer inimigos fora de casa, e dentro, investir em educação, saúde e emprego, em vez de fabricar armas que terão de ser vendidas e cedo ou tarde, usadas.