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domingo, 7 de novembro de 2010

O Mar Morto nos passos do Aral


Não é que não tenha gostado, mas por que cargas d’água falar sobre teatro em um blog especializado?!
Esta pergunta chegou por email ontem e me lembrou o que o "seu" Oscar (Niemeyer) me falou sobre a deficiência do sistema universitário que prepara profissionais cada vez mais especializados, porém, sem nenhuma cultura geral e achando que isto é normal.
Eu faço parte de uma minoria que acha a cultura necessária inclusive para enxergar o que não dá na vista e analisar o porquê de um semelhante nosso oprimir, torturar e esquartejar sem que a consciência pese.
Entre Jack Bauer e suas 24 horas de coreografia que legitima a tortura e a banaliza junto ao aficionado e aos GIs e mercenários, e os horrores do filme Saló de Pier Paolo Pasolini, em que mostra a face perserva e degradante do fascismo a fim de provocar o asco que esta ideologia representa, fico com a realidade do poeta italiano assassinado.
Aliás, Pasolini nos legou três frases que eu assinaria embaixo. A primeira é de ser cristã dos três primeiros séculos em que o cristianismo era praticado na íntegra com soldados jogando as armas fora, os abastados compartilhando víveres e os ofendidos dando a outra face. A segunda é que "o verdadeiro pecado não é fazer o mal, mas sim não fazer o bem ou não fazer nada". E o terceiro é que "a cultura é uma resistência à distração".
O caro leitor que se deu ao trabalho de me escrever (e os outros tantos não citados) agradeço pela assiduidade e explico que para conseguir entender melhor o mundo, a vida, a natureza dos conflitos, preciso ler não apenas livros especializadíssimos e encarar o mal in loco, mas também observar a vida e aproveitar a inteligência criativa do artista ou autor comprometido com o mundo em que vive. É em uma reflexão pluri-disciplinar e proativa que consigo enxergar melhor o mal sob todos os prismas e analisar com mais acuidade as pessoas que o fazem e o por quê disto.
A cultura é o motor da humanidade, no sentido próprio e figurado, e a hidropolítica e a geopolítica fazem parte deste meio cultural amplo e irrestrito. Todas as disciplinas estão interligadas e uma enriquece a outra e quem as põe em prática. Veja só o Mar Morto. Aparece na Bíblia, em guias turísticos, em livros de geopolítica e na hidropolítica. O mesmo sítio pode ser abordado sob quatro óticas à primeira vista distintas e se eu só pensasse e só soubesse de geopolítica e hidropolítica, minha abordagem seria manca e nesta crônica de uma morte anunciada faltaria a liga adequada.
No início de agosto falei sobre o mar Aral que conheci ainda com água e segui seu esgotamento rápido entre o Uzbequistão e o Kazaquistão até virar uma cratera desértica, contaminada e fétida. E embora o Aral esteja distante da nossa América, fiquei impressionada com o interesse demonstrado pela matéria que escrevi mais como um desabafo indignado.
O de hoje também é um desabafo que envolve o Oriente Médio, o rio Jordão e o Mar Morto (em árabe; em hebraico o nome é Mar Salgado). Caso o problema de exaustão de suas águas não seja remediado, dentro de quarenta anos estará seco como o Aral.
O Mar Morto se situa entre a Jordânia na margem oriental e na ocidental em Israel e na Cisjordânia. É alimentado pelo rio Jordão e está 422 metros abaixo do nível do mar, o que faz dele o ponto mais baixo do planeta. Na década de 60, estava a 395. A perda hídrica de um terço nos últimos cinquenta anos se deve um pouquinho às mudanças climáticas e muitíssimo aos desvios e à exploração desenfreada das águas para alimentar as indústrias e a agricultura de Síria, Jordânia e Israel – os dois últimos explorando a fundo a indústria turística com complexos hoteleiros imensos em suas margens. Quase totalmente privado de água, o Jordão virou também um esgoto das colônias israelenses ao longo de suas margens.
Em 1950, 1.3 bilhões de metros cúbicos de água corriam para o Mar Morto. Hoje em dia, apenas 300 milhões escapam até lá. A primeira vez que vi o Jordão, vi um rio, pequeno, mas um rio. Depois virou um riacho e hoje não passa de um córrego que perdeu 25 metros de superfície.
Noventa e cinco por cento do fluxo do rio Jordão são captados para fins agrícolas e industriais. A poluição do rio é tão grande que o peregrino cristão que quiser se banhar perto de Jericó, onde Jesus foi batizado, corre o risco de ser contaminado com o lixo industrial e o esgoto em que tem virado.
A Jordânia, preocupada com a morte da galinha de ovos de ouro e sob pressão de ONGs ecológicas, propôs a Israel e à Palestina a construção de um canal para levar água do Mar Vermelho ao Morto para recarregá-lo. Os três aprovaram, mas a Palestina está à míngua e além do mais, seus habitantes não desfrutam nem do Jordão nem das delícias flutuantes do mar de água tão pesada que só dá para boiar. Israel concordou, mas não quer pôr a mão no bolso e o projeto que já tinha sido batizado precipitadamente de Canal da Paz só está sendo bancado pela Jordânia. Por etapas.
Se for levado a cabo, o projeto ambicioso deve quebrar o equilíbrio do Mar Morto que embora viva, perderá suas propriedades e será outro mar. Os hebraicos terão de rebatizá-lo com o nome de Mar Doce, se for o caso. Mas como naquela região sempre aparece um fanático para envolver a religião onde ela não tem lugar e não é chamada, já ouvi até dizerem que está dito em algum escrito religioso que o mar salgado um dia ia adoçar...
Qualquer que seja o desfecho deste Mar faz anos que ele está morto e enterrado para os palestinos, embora detenham uma boa parte. Israel, além de ocupar militarmente o Jordão de cima embaixo, construiu colônias judias ao longo de sua margem na Cisjordânia e a entrada de palestinos é vedada, assim como o aproveitamento de seus recursos naturais.
Aliás, como falei em boicote cidadão e solidário duas semanas atrás, aproveito para passar às leitoras o lembrete de uma israelense militante da Coalizão das Mulheres pela Paz (http://coalitionofwomen.org/home/english). Ao comprar seus cosméticos faciais lembre-se que a empresa Ahava Mar Morto está instalada em uma destas colônias ilegais, portanto além de não ser nada ecológica, infringe as leis internacionais. Aliás, em Paris houve um protesto na loja Sephora dos Champs Elysées no ano passado contra a venda de produtos Ahava (http://vimeo.com/11985419). Cinquenta por cento das vendas desta linha de produtos são feitas em 25 países estrangeiros. Olhe bem a etiqueta no Brasil, antes de comprar. Como dizem as militantes do movimento feminino pela paz, Code Pink: Ahava = negócio enlameado, como mostra o vídeo abaixo.
Voltando ao Mar Morto, sua morte concreta seria um desastre turístico e quebraria o equilíbrio hídrico regional, o que levou organizações européias e norte-americanas a propor fundos a ONGs jordanianas para que tentem um diálogo com Israel. Mas aí veio à tona uma questão elementar: Quem vai representar os palestinos e quanta água lhes será deixada?
Os financiadores fugiram do assunto e as ONGs puseram na balança de um lado sobrevivência e do outro finanças. Não precisaram pensar muito. A sobrevivência hoje não envolve projetos com Israel que descarta toda possibilidade de evacuação das colônias judias que contaminam e desperdiçam a água à qual não têm direito legal. Portanto, o Canal da Paz está longe de merecer o nome com o qual foi batizado.
E se quiser flutuar nas águas do Mar Morto compre logo sua passagem para Amman e se hospede do lado da Jordânia. Assim você contribui ao financiamento das obras do canal e exerce seu direito de boicotar o que você já sabe.
Mar morto

Who profits from Israeli occupation of Palestine?

Salo, o le 120 giornarte di Sodoma (legendado)

domingo, 3 de outubro de 2010

O Indo e o Ganges no olho do furacão indiano



No fim do Império Britânico das Índias, o líder da Liga Muçulmana negociou com a Inglaterra a criação do Pakistão, um acrônimo das províncias que o compõem – Punjab, Kashmir, Sindh, Baluchistão – e que também significa País dos Puros.
Sem atropelos até então, a independência deu a luz em 1947 à Índia laica e ao Paquistão dividido em duas partes distanciadas, com línguas distintas (urdu e bengali) e a mesma base religiosa. A Ocidental é o país de agora. A Oriental adquiriu autonomia em 1971 com o nome de Bangladesh.

A outra coisa que os “Pakistão” tinham em comum era e é a dependência dos grandes rios que nascem no Himalaia e passam pela Índia antes de os alcançarem.
A criação da SAARC (South Asian Association for Regional Cooperation www.saarc-sec.org/) não resolveu nada, pois esta privilegia ações comerciais e exclui os problemas controvertidos de partilha da água.
No caso do Paquistão, o problema é o Indo que, como já disse, passa pela Caxemira a caminho da foz no Mar da Arábia. Mas omiti o papel do rio neste país rasgado entre a Índia que tem uma sede insaciável de hegemonia regional e o Paquistão, sobre o qual pesa uma ameaça de desastres provocados pelo aquecimento global.

Ontem recebi um email pedindo esclarecimento sobre a situação hidropolítica da região e resolvi retomar o fio a partir das dezessete províncias que constituíam a Índia britânica.
Doze delas ficaram na Índia, três delas ficaram no Paquistão, duas (Punjab e Bengala) foram repartidas entre ambos, e a parte paquistanesa da Bengala, ficou no Bangladesh. A Birmânia já voava com suas próprias asas.
Vou poupar-lhes as quatro guerras e os conflitos que perduram entre os três países para focar nos problemas que o Indo e o Ganges geram. Ou melhor, protagonizam por intermédio alheio.

Comecemos pela Caxemira onde eclodem. Paradoxalmente, esta é uma das regiões mais bonitas e tranquilas que conheço. A mistura de árvores, montanhas, rios e lagos é uma celebração da natureza no que ela tem de mais rico e perfeito. Na superfície.
Com intermitência, ela continua sendo palco de disputas Indo-paquistanesas que nos últimos sessenta anos têm separado violentamente famílias e amigos. Como acontece em todo país rasgado e ocupado.
O retrato dos dramas humanos que a disputa Indo-paquistanesa encadeia está dentro das casas, nas fotografias cortadas e nas histórias contadas quando os corações partidos se abrem.
Sua capital Srinaga está na área indiana.
Seus lagos que lhe valem o apelido de Veneza oriental são de uma beleza tensa e calma. Abriga ruínas de grande riqueza cultural que valem a pena ser visitadas - apesar da incerteza política em que o país está atolado, é preciso que o destino esteja traçado para sucumbir a um atentado.
Ao contrário do que Hollywood veicula, nenhuma guerra é contínua. Só bombardeios, já que o bombardeador é revezado e só a vítima é atacada.
Na Caxemira não é o caso. Os conflitos armados são pontuais e o país almeja a paz.
Por que então esta disputa desenfreada?
Por que não cumprir a resolução da ONU de 1949 e retomar o processo de referendum há poucos anos relançado e interrompido?
Pois os nativos querem a liberdade de circular por todos os lados sem medo de bombas explodirem e de balas ricochetearem em suas portas e em suas caras.
A resposta (como no Tibete em relação ao outro gigante asiático) é simples e complicada: seus recursos naturais. A região parece um oásis com a natureza quase intacta e a água brotando, potável. E a água volta à pauta... Aqui é a que rola no Indo e os afluentes que abastecem os dois beligerantes que cobiçam o país dos lagos.
Como a China, a Índia tem a supremacia e o Paquistão, apesar de sua bomba atômica, sabe que a curto e longo prazo corre dois riscos letais. Ou morre afogado por inundações causadas pela natureza revoltada ou morre de fome e de sede... caso a Índia resolva por um ato de guerra, de provocação ou de mero desprezo, bloquear os rios que regam o Punjab, o Sindh, e o Paquistão inteiro.

Os paquistaneses ainda não esqueceram o dia 1° de abril de 1948. Neste dia se encontraram com rios esvaziados pelo gigante zangado. À míngua de água, protestaram e acabaram conseguindo um acordo provisório mediado pelo Banco Mundial. Em 1960 o Indus Water Treaty (http://go.worldbank.org/WHGZVDDCB0) foi assinado entre os dois países, mas as construções de barragens e desvios de água continuam provocando atritos. São assuntos que não saem das pautas dos ministérios das relações exteriores de Delhi e Islamabad. E na dos jornalistas, a eventualidade de um sério conflito armado caso o fluxo do Indo realmente seja reduzido (previsões de 50%) pelo aquecimento global.
Por sorte os Estados Unidos mantêm boas relações com ambos os lados. Aliás, o Paquistão é a bola da vez desde 2001 e a caça a Ben Laden.
A Índia desfruta do respeito ganho com o selo de potência econômica emergente (embora seu crescimento lembre o tal “bolo” que o Delfim Neto cozinhava na década de 70 acompanhado do “Ame-o ou deixe-o” dos nossos generais enquanto o povo brasileiro só salivava) e o Paquistão leva a vantagem da vizinhança com o Afeganistão ocupado. Caso contrário, talvez a água por lá já estivesse toda avermelhada.
O outro vizinho que paga caro o inchamento econômico indiano é o Bangladesh, cujo presidente reuniu-se ainda este ano com seu homólogo indiano para encontrar uma solução para o seu estrangulamento.
Mas deste lado o Indo cede o protagonismo ao Ganges.
Outra lenda de 2.510 km que também nasce no Himalaia e tem um delta comum com o Brahmaputra que serve 300 milhões de pessoas.
Delta tombado como patrimônio da humanidade – seus mangues, compostos de várias ilhas de rara biodiversidade, resguardam espécies vegetais e animais únicas, como os famosos golfinhos e o tigre de Bengala.
Lirismo à parte, se não bastasse a subida paulatina das águas que devoram o litoral bangladeshiano, o interior do país vive à mercê das necessidades do vizinho ilustre com seus açudes que o privam de água.
O primeiro foi construído pelos britânicos em 1854 para a irrigação.
O maior é uma hidrelétrica que é fonte de conflito desde sua construção em 1975. Próxima da entrada principal do rio no Bangladesh, ela desvia uma boa parte das águas para Calcutá.

Mas o problema maior do Ganges é sua poluição desde a nascente que aumenta rio abaixo e quando chega ao Bangladesh está cheio de bactérias acumuladas nas diversas províncias indianas que atravessa. O rio é conhecido como o maior esgoto da Terra. Diz-se que recebe diariamente cerca de 475 cadáveres humanos, 1.800 toneladas de madeira usada nas cremações e dez mil carcaças de animais abandonados.
Em Vârânasî e nas imediações de suas centenas de templos, a água é tão poluída que parece uma sopa escurecida por excrementos, restos humanos apodrecidos e detritos industriais e vegetais.
Várias formas de despoluição já foram tentadas. De estações depuradoras de água ligadas a quilômetros de esgoto, privadas e crematórios públicos à última tentativa de soltar tartarugas necrófagas para consumirem os cadáveres. As primeiras foram vãs. Os répteis “sanitários” foram capturados e devorados.
A história do Ganges, e dos seis outros rios sagrados do hinduísmo, é estreitamente ligada à da Índia e seus costumes religiosos e seu conceito higiênico particular.
Sem julgamento de valor de um ou outro, as análises em laboratório afirmam que as águas do rio sagrado contêm sessenta mil bactérias fecais por 100 ml – 120 vezes superior ao limite aceitável.
O que não impede os indianos de imergirem nele pelo menos uma vez na vida em sua cerimônia de purificação espiritual. E nem os meninos de se banharem como se água fosse segura e clara.

Rio abaixo, ou seja, no Bangladesh, noventa por cento da população passaram a ser abastecidas em água potável por canos-cisternas instalados em uma campanha vitoriosa contra a diarréia. Mas no Bangladesh, quando um problema desaparece é para dar lugar a outro mais grave.
A seca provocada pelo desvio do Ganges no Bengali indiano obrigou os bangladeshianos a cavar poços em profundidade. Encontraram água, mas qual não foi a surpresa ao constatarem anos mais tarde, através de feridas e deformações crescentes na população, que estes aquíferos contêm arsênico... cuja fonte parece ser geológica e cuja descontaminação é lenta e complicada.
Enquanto os cientistas não encontrarem antídoto a esta fatalidade, uma das medidas urgentes lógicas seria o retorno às fontes de superfície... se estas não estivessem poluídas com todas as bactérias conhecidas na biologia.
Minha avó diria para ferver a água. Um método caseiro eficiente e simples. Mas não no Bangladesh.
Lá, a simpatia dos nativos no interior e na capital Daca somada à beleza de suas praias convivem com uma miséria de proporções inimagináveis. Até para quem pensa já tê-la vislumbrado em outras paragens.
Lá, até o fogo é inaccessível a uma população que o alto grau de analfabetismo aliena de gestos tidos como primários.
A alternativa em longo prazo poderia ser a descontaminação solar, testada pelo professor Acra e seus colegas da Universidade de Beirute - Puseram no sol um copo transparente com água contaminada três horas antes de tomá-la e redescobriram o milagre da salubridade.
Contanto que a água convertida contenha oxigênio suficiente para que a química seja bem sucedida. (Favor não fazer a experiência em casa!)

Talvez esta seja a resposta científica à poluição desenfreada do Ganges que pela lógica deveria contaminar milhões de hindus que banham em suas águas infestadas de excrementos e restos de cadáveres. Mas não. Pelo menos não a maioria. Ou eles nascem com algum gene que os imuniza ou se há de acreditar na crença hinduísta de que o rio tem poder auto-regenerativo.
O Beatle George Harrison certamente acreditava nisso. Suas cinzas foram despejadas em uma cerimônia discreta na água amarronzada. As cinzas, pois misticismo em mente ocidental não rima com temeridade. Oxalá a natureza e sua química perfeita de sol e oxigênio continuem a proteger os demais que mergulham vivos.

Poluição no Ganges

George Harrison: Bangladesh

sábado, 11 de setembro de 2010

E o Danúbio valsa na politicagem

  

Eis um rio diferente dos outros. Ele faz sonhar acordado até quem nunca percorreu suas margens. Talvez por ter inspirado poetas como o romano Ovídio na Antiguidade, por ter sido herói de romance contemporâneo de Claudio Magris, por despertar emoções em todos os salões em que a valsa de Johann Strauss é tocada.
E ele encanta quem navega seus 2.850 quilômetros da Alemanha onde ele nasce na Floresta Negra, desce à Áustria e embeleza Viena antes de cortar a Eslováquia e Bratislava para banhar a Hungria – Buda e Pesta – separar a Croácia da Sérvia e regar Novi Sad para chegar a Belgrado, às Carpatas romenas e à península balcânica antes de traçar a fronteira entre a Romênia e a Bulgária e os três braços de seu delta se unirem para aflorar a Moldávia, a Ucrânia e desembocar no sombrio Mar Negro.
O Danúbio é o segundo rio da Europa, após o Volga, banha dez países e no total, dezessete são diretamente ligados a suas águas tempestuosas.
Tiberius, que governou Roma até 37 DC, foi o primeiro a contratar engenheiros para proteger o Império dos caprichos do rio que matava a sede e de vez em quando inundava. Mas foi só no século XX que a energia se uniu à tecnologia necessária para domá-lo.
Em 1951 a União Soviética elaborou projetos para a construção de uma série de barragens na Hungria e na Tchecoslováquia para regularizar seu fluxo que perturbava o transporte de produtos para a Europa do Leste.
Nessa época não se falava em ecologia, ecossistema menos ainda, e a água parecia placidamente inesgotável. Portanto ninguém questionou a “correção” da natureza pelos técnicos moscovitas quando decretaram que um rio como o Danúbio precisava de não apenas uma, mas de várias barragens. Caso contrário, diziam, acumulará sedimentos, a navegação será perturbada, suas margens se degradarão e suas pontes desabarão com facilidade.
Era claro que três meses por ano as águas baixavam prejudicando a flora e deixando centenas de barcos encalhados por 250 quilômetros.
Por isto, vinte anos mais tarde as finanças e a tecnologia se encontraram e em setembro de 1977, a Hungria e a Tchecoslováquia assinaram um tratado, hoje inválido, para a construção do complexo hidráulico de Gabcikovo-Nagymaros. Mas foi na época do “choque do petróleo” e este deu à barragem a função de produzir também eletricidade.
Um açude imenso seria construído entre os dois países e dele sairia um canal de 17 quilômetros que desviaria cerca de 95% das águas do Danúbio para um complexo hidrelétrico em Gabcikovo, na Tchecoslováquia, e para outro a uma centena de quilômetros rio abaixo em Nagymaros, na Hungria. O objetivo era regularizar o fluxo do rio. As plantas foram feitas por engenheiros austríacos, húngaros e tchecos. No campo técnico a concórdia reinava. No campo político, a discórdia não tardaria a mostrar a cara.
No fim da década de oitenta, em um ataque indireto ao Kremlin, passeatas se multiplicaram nas ruas de Budapeste contra a construção da barragem. Lembro que quem estivesse implicado no projeto ou defendesse sua utilidade era logo tratado de stalinista e repudiado. A pressão da opinião pública foi tão forte que quando a direita tomou o poder em 1990, o presidente simplesmente revogou o tratado sem nenhuma consulta bilateral.
E as águas do Danúbio se turvaram.
A retaliação de Praga foi imediata. Ignorando a decisão de Budapeste, resolveu, também de maneira unilateral, prosseguir as obras desviando 25 quilômetros do Danúbio para seu território para construir outra barragem menos potente para substituir a interditada. Houve protestos como na Hungria, mas o país já estava dividido, e em 1993, Bratislava erigiu Gabcikovo como símbolo da Eslováquia.
O Danúbio em Budapeste
No ano anterior o leito principal do Danúbio na Hungria havia perdido da noite para o dia mais de 90% de suas águas.
Os postes indicadores de nível secaram, as camadas freáticas perderam três metros em poucos dias, a queda do fluxo foi tão brutal que os peixes morreram asfixiados na lama na qual o Danúbio foi subitamente atolado.
Os húngaros ficaram estupefatos, extremistas ameaçaram explodir a barragem, e a Comunidade Européia interveio para evitar a carnificina anunciada.
Um presidente de esquerda foi eleito na Hungria e o caso foi levado à Corte de Justiça da Háguia para ser julgado. Era a primeira vez que a Corte legislava sobre um conflito hídrico e o resultado foi ambíguo. O tratado de 1977 foi validado e as duas partes foram repreendidas. A Hungria por tê-lo rompido e a Eslováquia por ter continuado as obras.
Após o tapinha nas mãos, a Corte pediu que negociassem. Sem nenhuma vontade de se entenderem, mas sonhando com um lugar na União Européia, ambos concordaram a meia-voz para mostrar aos vizinhos ocidentais abastados que eles também eram civilizados.
Após discussões intermináveis, decidiram continuar o projeto comum e resolver os problemas ambientais mais graves.
A Europa respirou aliviada, mas a direita húngara fez uma aliança improvável com o partido verde para organizar mais passeatas para intimidar seus adversários, e acabou conseguindo que o governo recuasse uma vez mais.
Em 1998 o partido socialista foi derrotado nas eleições legislativas por uma direita que prometia curar o Danúbio de todos os males.
Quatro anos depois o estado do Danúbio havia piorado e milhões de dólares haviam sido gastos para destruir a barragem inacabada.
O resultado desta querela politiqueira é que de um lado a Eslováquia prosperava, do outro, a Hungria se cobria de mato, e no meio, as águas do Danúbio escorregavam.
Treze anos depois da decisão da Háguia, a discórdia ainda reina, nas rédeas da União Européia que não quer um conflito dentro de casa.
Danúbio invernal em Viena
A situação do Danúbio entre estes dois vizinhos representa um conflito hídrico clássico.
A ciência pode fornecer fundamentos objetivos para as tomadas de decisão, mas estas quase sempre se baseiam em julgamentos subjetivos e atendem interesses sócio-político-econômicos imediatos que extrapolam fronteiras e negligenciam a proteção dos recursos naturais.
Estima-se a trezentos o número de bacias fronteiriças de água doce no mundo. O crescimento demográfico, a poluição e a degradação constante aumentam o risco de conflitos ligados à água nestas regiões precárias.
O Danúbio, cuja bacia abrange 817 mil km² de oeste a leste até o mar Negro, constitui o recurso econômico essencial dos dezessete países que percorre e que seus afluentes molham.
A bacia do Danúbio é a mais fragmentada do mundo em relação às fronteiras políticas. E tirando contendas como a que vimos acima, os países ribeirinhos vêm experimentando instrumentos de gestão comum para proteger o rio, sobretudo no tocante à qualidade da água. Pois no final das contas a preocupação é a mesma do resto do mundo: água potável.
O Tratado de Paris de 1856 havia instituído uma Comissão Européia do Danúbio que garantia liberdade de navegação por todos os países que ele atravessava, mas em 1948, a Convenção de Belgrado substituiu a noção de “liberdade de navegação” por “navegação controlada”. A dialética aplicada à água.
Esperava-se que as transformações geopolíticas da região danubiana apaziguassem as rivalidades por maiores porções de água, mas o fim do Comunismo acentuou o nacionalismo e reanimou conflitos étnicos que dormiam. Nos últimos vinte anos, várias comissões foram reunidas para acalmar ânimos alterados.
Em 1985, a declaração de Bucareste, visando melhorar a qualidade da água, foi assinada; dois anos mais tarde a Alemanha e a Áustria assinaram um acordo de gestão comum das águas e em 1991, a Comunidade Européia financiou, com outras entidades, um programa ambiental para a Bacia danificada.
Poluição de metais no Danúbio
A Convenção de Belgrado caducou com o Comunismo e em 1994 um acordo de cooperação e uso durável do Danúbio foi assinada em Sofia e quatro anos mais tarde uma comissão internacional foi instalada (http://www.icpdr.org/).
Desde então a qualidade da água tem melhorado embora ainda haja problema rio abaixo.
Cinquenta a oitenta por cento das águas do Danúbio estão em bom estado ecológico no ponto de vista químico e biológico, mas apenas 40% no tocante à hidro-morfologia. Leia-se estações hídricas obsoletas nos países do Leste e certas obras poluidoras alemãs e austríacas rio acima.
No início do milênio um plano financeiro caro e arrojado foi lançado para reduzir a eutroficação, ou seja, o aumento de nutrientes na água do Danúbio e do Mar Negro. Apesar disto, o Conselho da Europa teve de intervir dois anos atrás para evitar um desastre ecológico: o Danúbio despeja no mar 280 toneladas de Cádmio, 60 de mercúrio, 4.500 de chumbo, seis mil de zinco, mil de cromo e 50 mil de hidrocarbonetos.
Por isto, em 2009 representantes de quatorze países ligados pelo Danúbio se reuniram para tomar medidas de contenção de enchentes, e em fevereiro deste ano, reiteraram em Viena a “Declaração do Danúbio” após avaliarem os progressos na proteção durável das águas e outros recursos ecológicos que estão sendo aplicados.
No final adotaram um “Plano administrativo da bacia do Danúbio” com medidas concretas para melhorar sua salubridade até 2015. Ou seja, infra-estruturas de tratamento de detritos que reduzam a poluição orgânica que intoxica o mar e maltrata o rio celebrizado.
(Como se sabe, na busca de eficiência de lavagem e amaciamento da água, é comum usar fosfatos nos detergentes domésticos e industriais; embora estes mesmos produtos que nos dão conforto imediato aumentem os nutrientes e reduzam a biodiversidade. Um custo alto que não precisa mais ser provado.)
Aqui paro. E os vídeos de hoje são sem conflito. Têm a doçura lúdica que este rio inspira em todos os nomes que origina; de Donau a Dunaj, Duna, Dunav, Dunărea a Дунай, até Tuna na Turquia, versões linguísticas do latim Danubius, o deus romano dos rios. O Irã o chama de dānu que em farsi significa algo como água corrente. Em grego, ele é conhecido pelo nome de Ἴστρος Istros, uma das 25 crias da união entre Tétis e Oceano, citados por Hésiodo na Teogonia onde relata a criação do mundo.
O Nosso Amazonas, que vive um ano fatídico em que suas águas baixaram mais de cinquenta centímetros, merecia fazer parte desta lista na qual o próprio Hesíodo dizia faltar no mínimo três mil rios. Proteger a mata, proteger suas águas, é vital. Nós sabemos disto. Aí não há conflito geopolíto – só desmatamento e cobiça. Com determinação política, ambos podem ser contidos.
Enquanto isto, despeço-me do Danubius lhe desejando pronto restabelecimento e uma beleza perene que continue inspirando obras artísticas, literárias e os românticos de hoje e de sempre.

Para os românticos

Para os experimentalistas

Para os melômanos