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domingo, 7 de novembro de 2010

O Mar Morto nos passos do Aral


Não é que não tenha gostado, mas por que cargas d’água falar sobre teatro em um blog especializado?!
Esta pergunta chegou por email ontem e me lembrou o que o "seu" Oscar (Niemeyer) me falou sobre a deficiência do sistema universitário que prepara profissionais cada vez mais especializados, porém, sem nenhuma cultura geral e achando que isto é normal.
Eu faço parte de uma minoria que acha a cultura necessária inclusive para enxergar o que não dá na vista e analisar o porquê de um semelhante nosso oprimir, torturar e esquartejar sem que a consciência pese.
Entre Jack Bauer e suas 24 horas de coreografia que legitima a tortura e a banaliza junto ao aficionado e aos GIs e mercenários, e os horrores do filme Saló de Pier Paolo Pasolini, em que mostra a face perserva e degradante do fascismo a fim de provocar o asco que esta ideologia representa, fico com a realidade do poeta italiano assassinado.
Aliás, Pasolini nos legou três frases que eu assinaria embaixo. A primeira é de ser cristã dos três primeiros séculos em que o cristianismo era praticado na íntegra com soldados jogando as armas fora, os abastados compartilhando víveres e os ofendidos dando a outra face. A segunda é que "o verdadeiro pecado não é fazer o mal, mas sim não fazer o bem ou não fazer nada". E o terceiro é que "a cultura é uma resistência à distração".
O caro leitor que se deu ao trabalho de me escrever (e os outros tantos não citados) agradeço pela assiduidade e explico que para conseguir entender melhor o mundo, a vida, a natureza dos conflitos, preciso ler não apenas livros especializadíssimos e encarar o mal in loco, mas também observar a vida e aproveitar a inteligência criativa do artista ou autor comprometido com o mundo em que vive. É em uma reflexão pluri-disciplinar e proativa que consigo enxergar melhor o mal sob todos os prismas e analisar com mais acuidade as pessoas que o fazem e o por quê disto.
A cultura é o motor da humanidade, no sentido próprio e figurado, e a hidropolítica e a geopolítica fazem parte deste meio cultural amplo e irrestrito. Todas as disciplinas estão interligadas e uma enriquece a outra e quem as põe em prática. Veja só o Mar Morto. Aparece na Bíblia, em guias turísticos, em livros de geopolítica e na hidropolítica. O mesmo sítio pode ser abordado sob quatro óticas à primeira vista distintas e se eu só pensasse e só soubesse de geopolítica e hidropolítica, minha abordagem seria manca e nesta crônica de uma morte anunciada faltaria a liga adequada.
No início de agosto falei sobre o mar Aral que conheci ainda com água e segui seu esgotamento rápido entre o Uzbequistão e o Kazaquistão até virar uma cratera desértica, contaminada e fétida. E embora o Aral esteja distante da nossa América, fiquei impressionada com o interesse demonstrado pela matéria que escrevi mais como um desabafo indignado.
O de hoje também é um desabafo que envolve o Oriente Médio, o rio Jordão e o Mar Morto (em árabe; em hebraico o nome é Mar Salgado). Caso o problema de exaustão de suas águas não seja remediado, dentro de quarenta anos estará seco como o Aral.
O Mar Morto se situa entre a Jordânia na margem oriental e na ocidental em Israel e na Cisjordânia. É alimentado pelo rio Jordão e está 422 metros abaixo do nível do mar, o que faz dele o ponto mais baixo do planeta. Na década de 60, estava a 395. A perda hídrica de um terço nos últimos cinquenta anos se deve um pouquinho às mudanças climáticas e muitíssimo aos desvios e à exploração desenfreada das águas para alimentar as indústrias e a agricultura de Síria, Jordânia e Israel – os dois últimos explorando a fundo a indústria turística com complexos hoteleiros imensos em suas margens. Quase totalmente privado de água, o Jordão virou também um esgoto das colônias israelenses ao longo de suas margens.
Em 1950, 1.3 bilhões de metros cúbicos de água corriam para o Mar Morto. Hoje em dia, apenas 300 milhões escapam até lá. A primeira vez que vi o Jordão, vi um rio, pequeno, mas um rio. Depois virou um riacho e hoje não passa de um córrego que perdeu 25 metros de superfície.
Noventa e cinco por cento do fluxo do rio Jordão são captados para fins agrícolas e industriais. A poluição do rio é tão grande que o peregrino cristão que quiser se banhar perto de Jericó, onde Jesus foi batizado, corre o risco de ser contaminado com o lixo industrial e o esgoto em que tem virado.
A Jordânia, preocupada com a morte da galinha de ovos de ouro e sob pressão de ONGs ecológicas, propôs a Israel e à Palestina a construção de um canal para levar água do Mar Vermelho ao Morto para recarregá-lo. Os três aprovaram, mas a Palestina está à míngua e além do mais, seus habitantes não desfrutam nem do Jordão nem das delícias flutuantes do mar de água tão pesada que só dá para boiar. Israel concordou, mas não quer pôr a mão no bolso e o projeto que já tinha sido batizado precipitadamente de Canal da Paz só está sendo bancado pela Jordânia. Por etapas.
Se for levado a cabo, o projeto ambicioso deve quebrar o equilíbrio do Mar Morto que embora viva, perderá suas propriedades e será outro mar. Os hebraicos terão de rebatizá-lo com o nome de Mar Doce, se for o caso. Mas como naquela região sempre aparece um fanático para envolver a religião onde ela não tem lugar e não é chamada, já ouvi até dizerem que está dito em algum escrito religioso que o mar salgado um dia ia adoçar...
Qualquer que seja o desfecho deste Mar faz anos que ele está morto e enterrado para os palestinos, embora detenham uma boa parte. Israel, além de ocupar militarmente o Jordão de cima embaixo, construiu colônias judias ao longo de sua margem na Cisjordânia e a entrada de palestinos é vedada, assim como o aproveitamento de seus recursos naturais.
Aliás, como falei em boicote cidadão e solidário duas semanas atrás, aproveito para passar às leitoras o lembrete de uma israelense militante da Coalizão das Mulheres pela Paz (http://coalitionofwomen.org/home/english). Ao comprar seus cosméticos faciais lembre-se que a empresa Ahava Mar Morto está instalada em uma destas colônias ilegais, portanto além de não ser nada ecológica, infringe as leis internacionais. Aliás, em Paris houve um protesto na loja Sephora dos Champs Elysées no ano passado contra a venda de produtos Ahava (http://vimeo.com/11985419). Cinquenta por cento das vendas desta linha de produtos são feitas em 25 países estrangeiros. Olhe bem a etiqueta no Brasil, antes de comprar. Como dizem as militantes do movimento feminino pela paz, Code Pink: Ahava = negócio enlameado, como mostra o vídeo abaixo.
Voltando ao Mar Morto, sua morte concreta seria um desastre turístico e quebraria o equilíbrio hídrico regional, o que levou organizações européias e norte-americanas a propor fundos a ONGs jordanianas para que tentem um diálogo com Israel. Mas aí veio à tona uma questão elementar: Quem vai representar os palestinos e quanta água lhes será deixada?
Os financiadores fugiram do assunto e as ONGs puseram na balança de um lado sobrevivência e do outro finanças. Não precisaram pensar muito. A sobrevivência hoje não envolve projetos com Israel que descarta toda possibilidade de evacuação das colônias judias que contaminam e desperdiçam a água à qual não têm direito legal. Portanto, o Canal da Paz está longe de merecer o nome com o qual foi batizado.
E se quiser flutuar nas águas do Mar Morto compre logo sua passagem para Amman e se hospede do lado da Jordânia. Assim você contribui ao financiamento das obras do canal e exerce seu direito de boicotar o que você já sabe.
Mar morto

Who profits from Israeli occupation of Palestine?

Salo, o le 120 giornarte di Sodoma (legendado)

sábado, 7 de agosto de 2010

Água, da riqueza à devastação


Há pouco ouvi um especialista repetir que se toda a água da Terra fosse posta em um balde, a potável encheria uma colherzinha de café. Pois é. Como aprendemos na escola, a água cobre 71% da superfície da Terra, mas a percentagem de água doce é de apenas 3%, dos quais 2/3 são concentrados nos polos sob forma de gelo e do terço que sobra, 98% são aquíferos subterrâneos e só 2% são em forma de rios e lagos. Destes 2%, estima-se que 12% se encontram em território nacional.
O que dá ao Brasil e aos brasileiros uma grande vantagem e uma enorme responsabildiade.
Como também se aprende na escola, temos duas grandes reservas; a bacia do Amazonas, rio que compartilhamos com o Peru e que, sozinho, é responsável por 18% da água vertida nos oceanos, e o Aquífero do Guarani. Este é o maior manancial de água doce do mundo – ocupa uma área de 1,2 milhões km², dos quais 840 mil estão no Brasil – 2/3 (em Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), 250 mil na Argentina, e no Paraguai e Uruguai, 58.500 cada.
Talvez devido à fartura, o nosso sub-continente sul-americano tenha vivido em paz relativa na partilha dos recursos hídricos. O que não é o caso na história do mundo em que a geopolítica da água tem gerado guerras desde a antiguidade, embora a única que seja historicamente declarada tenha acontecido há 4.450 anos, na antiga Mesopotâmia (sul do Iraque) em que as cidades de Lagash e Umma se confrontaram para obter o controle dos canais de irrigação alimentados pelo rio Tigre.
Desde então, conflitos hídricos se seguiram, mas menos explícitos e em alguns casos dissimulados em controle territorial ou usados como arma e instrumento de chantagem. Como por exemplo, em 596 AC, o rei da Babilônia, Nabucodonosor, após 13 anos de sítio infrutífero da cidade de Tyr, no sul do Líbano, destruiu uma parte do aqueduto que a abastecia para conquistá-la.
Em 1503, durante a luta de Florência contra Pisa, Leonardo da Vinci e Maquiável pensaram em desviar o curso do rio Arno para tirar de Pisa o acesso ao mar. Mas só ficou em palavras.
Em 1938, Tchang Kai-Chek mandou destruir diques do rio Amarelo na China para conter o avanço das tropas japonesas, e até o fim da Segunda Guerra bombardeou vários açudes com o mesmo objetivo.
Em 1948 e em anos seguintes, Israel protagonizou conflitos que lhe valeram, entre outros, o Golan e o controle do rio Jordão, do qual privou a Cisjordânia em toda a sua extensão.
Em 1960, no Vietnam, os Estados Unidos destruíram sistematicamente os diques do país, causando, segundo os norte-vietnamitas, a morte de 2 a 3 milhões de pessoas por afogamento ou fome.
Entre 1980 e 1988 o Iraque e o Irã guerrearam pela posse do Chatt-el-Arab, o estuário do Tigre e do Eufrates.
Em 1991, no processo de invasão, Saddam Hussein destruiu a maioria das usinas de dessalinização do Kuwait.
Em 1999, durante a guerra, os sérvios fecharam o sistema de distribuição de água da capital do Kosovo, Pristina, e contaminaram várias cisternas. E no mesmo ano, uma bomba destruiu a principal rede de água no lago Lusaka, no Zâmbia, privando 3 milhões de pessoas de água.
Em 2003, durante a invasão do Iraque, os Estados Unidos bombardearam ininterruptamente as instalações de saneamento e de abastecimento em água de Bagdá (com consequências ainda nefastas à população da Zona Vermelha da cidade, reservada aos iraquianos).
A lista exaustiva de litígios hídricos é longa e variada, embora no cômputo bélico propriamente dito, só (!) se tenha combatido pela água 37 vezes. Israel protagonizou 27 destes conflitos.
Deixemos o Oriente Médio para mais tarde. O enfoque de hoje são dois outros problemas que estão prestes a provocar catástrofes em duas regiões opostas do planeta: da opulenta à miserável.
Na mais rica, trata-se de um choque eventual entre os Estados Unidos e o Canadá por causa dos Grandes Lagos que os dividem e separam cada vez mais.
Após a Bacia do Guarani, os lagos que os dois compartilham – o Superior ( o maior do mundo), o Michigan, o Huron, o Erie e o Ontário – representam 20% da água doce do planeta e são alvo de cobiça crescente dos EUA. Como Ottawa não consegue fazer Washington assinar e respeitar um contrato que regulamente o usufruto da Bacia, os canadenses temem que a exploração excessiva e intensiva de suas águas pelos americanos venha a expropriá-los de seus recursos hídricos e ao mesmo tempo provocar uma catástrofe ecológica irremediável.
Estima-se que no ritmo em que a água vem sendo extraída, dentro de 25 a 30 anos este aquífero esteja esgotado. E o que apavora os vizinhos é que os EUA, em vez de remediar para tentar preservar os recursos dos lagos, já está pensando em como desviar água do golfo do Mississipi através de rios e riachos em um projeto oneroso e complicado que preocupa ainda mais as ONGs ecológicas. Estas não param de denunciar esta extração abusiva de água e se o problema não for discutido e resolvido em tempo hábil, a insatisfação canadense pode degenerar em uma confrontação séria entre os dois vizinhos “civilizados” que têm todos os meios financeiros e científicos que precisarem para evitar um desastre.
Enquanto isto, no Paquistão as inundações estão tirando do mapa dezenas de cidadezinhas e deixando atrás de si água contaminada e todas as doenças inerentes à insalubridade; e no Bangladesh, um dos Estados mais pobres e mais expostos ao aquecimento planetário, estima-se que os 140 milhões de habitantes que se apertavam em 143.998 km² tenham perdido nos últimos anos 10% deste território exíguo. Não por litígio fronteiriço, mas por causa do aquecimento global que provocou nos últimos anos uma elevação de 45cm do nível do mar. Ao contrário do desprevenido Paquistão, inundação no Bangladesh é normal. 9,6% de sua superfície é coberta de centenas de riachos e de três grandes rios: o Gange, o Meghna e o Brahmaputre. O país recebe 90% de água proveniente do Tibete, do Butão, da Índia e do Nepal. É uma enxurrada de chuvas que inunda sistematicamente pelo menos um terço do território.
Embora os habitantes tenham aprendido a conviver com os caprichos da natureza, as mudanças climáticas dificultam bastante o esquema há anos ensaiado. O aumento do período de chuvas somado ao derretimento dos glaciais do Himalaia e à elevação do mar, têm tornado a evacuação da água cada vez mais difícil e improvável. E a tendência é piorar. O que se vê hoje no Bangladesh é uma população majoritariamente rural em ruptura com a natureza caprichosa que a obriga a migrar em massa para regiões supostamente calmas.
Até o século passado havia no mundo dois tipos de refugiados: econômicos e políticos. Os problemas de água no Bangladesh inauguraram um terceiro que tende a se banalizar como os demais: os refugiados climáticos. A água invade o país quase todo, se transforma em lama, há escassez de água potável e busca-se refúgio em Dacca, a capital, que não suporta o afluxo e que também corre risco de inundações de grande amplitude, como a de 2004.
E em meio a esta catástrofe climática, aparece uma ameaça política grave para o governo democrático: a miséria e as más perspectivas estão transformando o país em um canteiro de ideias extremistas. Dizem os homens que em vários madraçais (escolas) religiosos já se vê foto de Ben Laden. http://dai.ly/9lqr3z