domingo, 3 de outubro de 2010

O Indo e o Ganges no olho do furacão indiano



No fim do Império Britânico das Índias, o líder da Liga Muçulmana negociou com a Inglaterra a criação do Pakistão, um acrônimo das províncias que o compõem – Punjab, Kashmir, Sindh, Baluchistão – e que também significa País dos Puros.
Sem atropelos até então, a independência deu a luz em 1947 à Índia laica e ao Paquistão dividido em duas partes distanciadas, com línguas distintas (urdu e bengali) e a mesma base religiosa. A Ocidental é o país de agora. A Oriental adquiriu autonomia em 1971 com o nome de Bangladesh.

A outra coisa que os “Pakistão” tinham em comum era e é a dependência dos grandes rios que nascem no Himalaia e passam pela Índia antes de os alcançarem.
A criação da SAARC (South Asian Association for Regional Cooperation www.saarc-sec.org/) não resolveu nada, pois esta privilegia ações comerciais e exclui os problemas controvertidos de partilha da água.
No caso do Paquistão, o problema é o Indo que, como já disse, passa pela Caxemira a caminho da foz no Mar da Arábia. Mas omiti o papel do rio neste país rasgado entre a Índia que tem uma sede insaciável de hegemonia regional e o Paquistão, sobre o qual pesa uma ameaça de desastres provocados pelo aquecimento global.

Ontem recebi um email pedindo esclarecimento sobre a situação hidropolítica da região e resolvi retomar o fio a partir das dezessete províncias que constituíam a Índia britânica.
Doze delas ficaram na Índia, três delas ficaram no Paquistão, duas (Punjab e Bengala) foram repartidas entre ambos, e a parte paquistanesa da Bengala, ficou no Bangladesh. A Birmânia já voava com suas próprias asas.
Vou poupar-lhes as quatro guerras e os conflitos que perduram entre os três países para focar nos problemas que o Indo e o Ganges geram. Ou melhor, protagonizam por intermédio alheio.

Comecemos pela Caxemira onde eclodem. Paradoxalmente, esta é uma das regiões mais bonitas e tranquilas que conheço. A mistura de árvores, montanhas, rios e lagos é uma celebração da natureza no que ela tem de mais rico e perfeito. Na superfície.
Com intermitência, ela continua sendo palco de disputas Indo-paquistanesas que nos últimos sessenta anos têm separado violentamente famílias e amigos. Como acontece em todo país rasgado e ocupado.
O retrato dos dramas humanos que a disputa Indo-paquistanesa encadeia está dentro das casas, nas fotografias cortadas e nas histórias contadas quando os corações partidos se abrem.
Sua capital Srinaga está na área indiana.
Seus lagos que lhe valem o apelido de Veneza oriental são de uma beleza tensa e calma. Abriga ruínas de grande riqueza cultural que valem a pena ser visitadas - apesar da incerteza política em que o país está atolado, é preciso que o destino esteja traçado para sucumbir a um atentado.
Ao contrário do que Hollywood veicula, nenhuma guerra é contínua. Só bombardeios, já que o bombardeador é revezado e só a vítima é atacada.
Na Caxemira não é o caso. Os conflitos armados são pontuais e o país almeja a paz.
Por que então esta disputa desenfreada?
Por que não cumprir a resolução da ONU de 1949 e retomar o processo de referendum há poucos anos relançado e interrompido?
Pois os nativos querem a liberdade de circular por todos os lados sem medo de bombas explodirem e de balas ricochetearem em suas portas e em suas caras.
A resposta (como no Tibete em relação ao outro gigante asiático) é simples e complicada: seus recursos naturais. A região parece um oásis com a natureza quase intacta e a água brotando, potável. E a água volta à pauta... Aqui é a que rola no Indo e os afluentes que abastecem os dois beligerantes que cobiçam o país dos lagos.
Como a China, a Índia tem a supremacia e o Paquistão, apesar de sua bomba atômica, sabe que a curto e longo prazo corre dois riscos letais. Ou morre afogado por inundações causadas pela natureza revoltada ou morre de fome e de sede... caso a Índia resolva por um ato de guerra, de provocação ou de mero desprezo, bloquear os rios que regam o Punjab, o Sindh, e o Paquistão inteiro.

Os paquistaneses ainda não esqueceram o dia 1° de abril de 1948. Neste dia se encontraram com rios esvaziados pelo gigante zangado. À míngua de água, protestaram e acabaram conseguindo um acordo provisório mediado pelo Banco Mundial. Em 1960 o Indus Water Treaty (http://go.worldbank.org/WHGZVDDCB0) foi assinado entre os dois países, mas as construções de barragens e desvios de água continuam provocando atritos. São assuntos que não saem das pautas dos ministérios das relações exteriores de Delhi e Islamabad. E na dos jornalistas, a eventualidade de um sério conflito armado caso o fluxo do Indo realmente seja reduzido (previsões de 50%) pelo aquecimento global.
Por sorte os Estados Unidos mantêm boas relações com ambos os lados. Aliás, o Paquistão é a bola da vez desde 2001 e a caça a Ben Laden.
A Índia desfruta do respeito ganho com o selo de potência econômica emergente (embora seu crescimento lembre o tal “bolo” que o Delfim Neto cozinhava na década de 70 acompanhado do “Ame-o ou deixe-o” dos nossos generais enquanto o povo brasileiro só salivava) e o Paquistão leva a vantagem da vizinhança com o Afeganistão ocupado. Caso contrário, talvez a água por lá já estivesse toda avermelhada.
O outro vizinho que paga caro o inchamento econômico indiano é o Bangladesh, cujo presidente reuniu-se ainda este ano com seu homólogo indiano para encontrar uma solução para o seu estrangulamento.
Mas deste lado o Indo cede o protagonismo ao Ganges.
Outra lenda de 2.510 km que também nasce no Himalaia e tem um delta comum com o Brahmaputra que serve 300 milhões de pessoas.
Delta tombado como patrimônio da humanidade – seus mangues, compostos de várias ilhas de rara biodiversidade, resguardam espécies vegetais e animais únicas, como os famosos golfinhos e o tigre de Bengala.
Lirismo à parte, se não bastasse a subida paulatina das águas que devoram o litoral bangladeshiano, o interior do país vive à mercê das necessidades do vizinho ilustre com seus açudes que o privam de água.
O primeiro foi construído pelos britânicos em 1854 para a irrigação.
O maior é uma hidrelétrica que é fonte de conflito desde sua construção em 1975. Próxima da entrada principal do rio no Bangladesh, ela desvia uma boa parte das águas para Calcutá.

Mas o problema maior do Ganges é sua poluição desde a nascente que aumenta rio abaixo e quando chega ao Bangladesh está cheio de bactérias acumuladas nas diversas províncias indianas que atravessa. O rio é conhecido como o maior esgoto da Terra. Diz-se que recebe diariamente cerca de 475 cadáveres humanos, 1.800 toneladas de madeira usada nas cremações e dez mil carcaças de animais abandonados.
Em Vârânasî e nas imediações de suas centenas de templos, a água é tão poluída que parece uma sopa escurecida por excrementos, restos humanos apodrecidos e detritos industriais e vegetais.
Várias formas de despoluição já foram tentadas. De estações depuradoras de água ligadas a quilômetros de esgoto, privadas e crematórios públicos à última tentativa de soltar tartarugas necrófagas para consumirem os cadáveres. As primeiras foram vãs. Os répteis “sanitários” foram capturados e devorados.
A história do Ganges, e dos seis outros rios sagrados do hinduísmo, é estreitamente ligada à da Índia e seus costumes religiosos e seu conceito higiênico particular.
Sem julgamento de valor de um ou outro, as análises em laboratório afirmam que as águas do rio sagrado contêm sessenta mil bactérias fecais por 100 ml – 120 vezes superior ao limite aceitável.
O que não impede os indianos de imergirem nele pelo menos uma vez na vida em sua cerimônia de purificação espiritual. E nem os meninos de se banharem como se água fosse segura e clara.

Rio abaixo, ou seja, no Bangladesh, noventa por cento da população passaram a ser abastecidas em água potável por canos-cisternas instalados em uma campanha vitoriosa contra a diarréia. Mas no Bangladesh, quando um problema desaparece é para dar lugar a outro mais grave.
A seca provocada pelo desvio do Ganges no Bengali indiano obrigou os bangladeshianos a cavar poços em profundidade. Encontraram água, mas qual não foi a surpresa ao constatarem anos mais tarde, através de feridas e deformações crescentes na população, que estes aquíferos contêm arsênico... cuja fonte parece ser geológica e cuja descontaminação é lenta e complicada.
Enquanto os cientistas não encontrarem antídoto a esta fatalidade, uma das medidas urgentes lógicas seria o retorno às fontes de superfície... se estas não estivessem poluídas com todas as bactérias conhecidas na biologia.
Minha avó diria para ferver a água. Um método caseiro eficiente e simples. Mas não no Bangladesh.
Lá, a simpatia dos nativos no interior e na capital Daca somada à beleza de suas praias convivem com uma miséria de proporções inimagináveis. Até para quem pensa já tê-la vislumbrado em outras paragens.
Lá, até o fogo é inaccessível a uma população que o alto grau de analfabetismo aliena de gestos tidos como primários.
A alternativa em longo prazo poderia ser a descontaminação solar, testada pelo professor Acra e seus colegas da Universidade de Beirute - Puseram no sol um copo transparente com água contaminada três horas antes de tomá-la e redescobriram o milagre da salubridade.
Contanto que a água convertida contenha oxigênio suficiente para que a química seja bem sucedida. (Favor não fazer a experiência em casa!)

Talvez esta seja a resposta científica à poluição desenfreada do Ganges que pela lógica deveria contaminar milhões de hindus que banham em suas águas infestadas de excrementos e restos de cadáveres. Mas não. Pelo menos não a maioria. Ou eles nascem com algum gene que os imuniza ou se há de acreditar na crença hinduísta de que o rio tem poder auto-regenerativo.
O Beatle George Harrison certamente acreditava nisso. Suas cinzas foram despejadas em uma cerimônia discreta na água amarronzada. As cinzas, pois misticismo em mente ocidental não rima com temeridade. Oxalá a natureza e sua química perfeita de sol e oxigênio continuem a proteger os demais que mergulham vivos.

Poluição no Ganges

George Harrison: Bangladesh

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