domingo, 31 de outubro de 2010

Чeхов, em Teatro Ecológico de um Visionário

  
Tchekov e Tolstoi em Yalta, em 1900
Alguns dias atrás me perguntaram a quem este blog é destinado. A pessoa disse que embora não entendesse nada de hidropolítica, geopolítica ou algo que as valha, entendia o que eu contava e se sentia mais sabido no ponto final.
Na hora só respondi que também aprendo sem parar e o pouco que sei gosto de compartilhar.
Pelo meio eslavo em que tenho estado e por o curioso ser um amador de teatro, resolvi retornar à pergunta hoje, nesta página, dando um pulinho fora d’água para respondê-la lembrando os quilômetros de florestas russas há poucas semanas incendiadas.
Em vez de reportar dramas e política de reflorestamento, para ser fiel à alma e à erudição do povo atingido por esta tragédia ambiental, prefiro falar em um filho da terra que inaugurou a ecologia no teatro: Антoн Пaвлович Чeхов, conhecido entre nós por Anton Tchekhov - o visionário que criou uma personagem preocupada com o meio-ambiente duzentos anos antes do assunto ser banalizado.
Tchekhov é mais conhecido pela Gaivota, em que questiona o estatuto do artista e sua vaidade; pelas Três Irmãs, em que mostra o tempo passar e a inércia atropelar sonhos e vidas cheias apenas de expectativa vaga; por Platonov e o cinismo que corrói o seu melhor lado; por Ivanov e a pequenez da burguesia sedentária; pela Cerejeira, este jardim secreto das boas lembranças que protegemos a um custo às vezes mais alto do que valem; pelo Tio Vânia, onde as ilusões financeiras e afetivas são destroçadas em silêncios e diálogos cruzados em que os desejos de uns e outros se perdem de maneira irreconciliável até a célebre frase final: My otdokhniom – Nós descansaremos, que inspirou o belo concerto homônimo de seu compatriota Sergei Rachmaninof.
Nenhum destes dramas bem orquestrados, em que as personagens são coadjuvantes e protagonistas sem maior ou menor realce e vilões mais pela irremediável humanidade que Tchekhov destrincha sem condescendência ou piedade, faz parte das suas obras que mais me agradam.
Uma destas é Sakhalina, uma série de cartas redigidas durante sua temporada engajada contra a prisão e sua desumanidade. Nela se sente uma urgência emocional e narrativa em que Tchekhov mostra realmente a cara.
Mas a pergunta que me fizeram só dá para ser respondida em uma peça que talvez seja a menos interpretada: Леший. O nome está em russo não pelo respeito linguístico com o dramaturgo e sua língua materna, mas por uma razão prática. O título Selvagem com o qual batizou o livro publicado em sua terra, foi traduzido em vários idiomas de maneiras variadas.
É conhecida também como o Gênio da Floresta, por causa da mensagem do Bem que realça.
É uma peça do tempo em que Tchekhov caminhava para a celebridade em sua alimentícia carreira literária. Sua filosofia existencial é exposta de peito aberto na figura do jovem médico idealista (como ele mesmo nessa idade) que atravessa os quatro atos tentando despertar os demais para o que realmente conta na vida e para a natureza e suas vantagens.
O Selvagem foi escrita em 1888, representada em dezembro do ano seguinte e tirada de cartaz no sexto dia. Um fiasco. Pior do que o de Ivanov, também rejeitada por causa da crítica acerba à burguesia – a versão atual é a modificada e ovacionada em 1889, após ter sido enxugada dos diálogos que incomodavam.
O desastre de crítica e de público levou Tchekhov a fazer no Selvagem, sete anos mais tarde, mudanças que deformaram sua exuberância idealista ao ponto de torná-la irreconhecível e o título ser mudado para Tio Vânia, celebríssimo em todos os teatros. A partir daí o Selvagem ou o Gênio da Floresta foi engavetado.
Sem querer denegri-la, Tio Vânia, apesar da maturidade dramatúrgica que a caracteriza, é uma cópia pálida e pessimista da vivacidade filosófica da peça da qual deriva. No Selvagem o entusiasmo sopra um humor quase desesperado na mensagem ecológica e premonitória da indiferença humana ao bem não material, aquele que não parece logo rentável.
O gênio Selvagem é Mikhail Krutchev, médico jovem de origem modesta, trabalhador e dedicado a uma filantropia ecológica surpreendentemente contemporânea na qual se lê uma metáfora entre a floresta e a humanidade. O Selvagem luta contra a tendência auto-destrutora do homem que derruba árvores que lhe são vitais. Ele usa a força da floresta para salvá-la e plantar e plantar sem recuar diante das dificuldades. Segue a luz que o leva até o cume onde vê o amor que “é a recompensa de quem trabalha, luta e sofre” até alcançá-lo.
No Selvagem Tchekhov já mostra a burguesia interiorana com sua hipocrisia, mesquinhez, baixeza e monotonia. Ele a expõe sem condená-la com discursos moralistas. Em vez disso escolhe o riso para disfarçar a realidade que denuncia. A moral da estória é que embora a maioria dos homens se autodestrua por inércia e covardia, todos têm a oportunidade de mudar ou pelo menos esforçar-se para conseguir.
É nessa busca do ideal que reside a grandeza humana e na qual o Gênio se destaca e sacode o Selvagem: Tem um selvagem em mim, mesquinho... Não sou um herói? Sê-lo-ei! Farei crescer em meu âmago asas de águia. Se as florestas queimarem plantarei mais árvores. Se não me amarem amarei alguém mais...
No Tio Vânia, Tchekhov flagela seu humanismo e renega seu íntimo. Tira a influência do gênio sobre o selvagem e o que resulta deste vandalismo moral é Ástrov, um médico que também tenta salvar florestas, mas em um papel secundário. Embora continue lúcido, ele não se questiona mais para avançar, consola suas derrotas no álcool e se destrói paulatinamente dando certa incoerência à sua personagem ao repetir um dos discursos idealistas originais do Selvagem. Exaltar a beleza das florestas que inspiram e estão sendo arrasadas; falar sobre enchentes e secas que se multiplicam, reclamar de espécies animais sendo exterminadas e do clima que hostiliza o homem em seu habitat, perde o sentido nos lábios desse gato escaldado incapaz de lutar pelos ideais que no final das contas, quase abate em vez de elevar.
No Tio Vânia a alegria e a crença no homem e em seu potencial foram abolidas. Encená-la tanto e ocultar o Selvagem é dar uma idéia errada de Tchekhov e de sua filantropia literária. Ele não era nem cínico nem melancólico nem desencantado. Era um humanista sem a força do Selvagem e por isto acabou se dobrando à lei do mercado.
Apesar deste lapso, o Selvagem foi criado e mostra que no seio da floresta escura toda árvore cresce em direção ao céu para puxar o homem para cima, para o auge.
Enquanto o Selvagem mirava o alto visando à luz que o iluminava, Ástrov não consegue ver ninguém nem nada. Ástrov é o ébrio que vive a vida como um devaneio e acaba atolado na lama em que se desgarra.
O Selvagem é o operário da humanidade. Que pergunta o que não sabe, aprecia a diversidade em todas suas formas e caras, consome com discernimento e tenta acertar o errado.
É a quem se abre ao gênio que combate o selvagem em si que este blog é destinado.

domingo, 24 de outubro de 2010

Água e saneamento viram Direitos Humanos oficiais

No fim de julho a Assembléia Geral da ONU declarou em voz alta que o acesso a água potável e a saneamento básico era (finalmente!) um direito essencial ao pleno gozo da vida e dos outros direitos humanos já adotados.
A notícia era preciosa e teria valido uma nota sobre esta aprovação majoritária – 122 votos a favor e nenhum contrário. Porém resolvi esperar o fim da novela que durava desde 2008 antes de cantar uma vitória talvez efêmera considerando a força política de alguns dos 41 países que não votaram contra, mas se abstiveram, com alarde ou calados.
Um dos que se abstiveram calados foi Israel, por motivos óbvios. Para quem não os conhece, a Palestina (que sedia na ONU como Observador e não como Estado) explicou em um aparte: O acesso a água potável e a saneamento básico deveria ser um direito de todos os povos, inclusive os ocupados. As violações dos direitos dos palestinos de aceder à sua própria água impede que desfrutem de outros direitos fundamentais. O delegado israelense se fez de desentendido e o assunto foi encerrado.
Outros como a Inglaterra e os Estados Unidos justificaram seu não-voto. Alegaram que estes já eram direitos e que a decisão dependia de Genebra, ou seja, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos.
Agosto e setembro passaram e nesse ínterim a portuguesa Catarina de Albuquerque, especialista independente contratada pela ONU para estudar o tema, foi trabalhando, analisando e acelerando o veredito divulgado há dez dias pelo Alto Comissariado: Estes direitos já estão contidos nos atuais tratados, portanto já são Direitos Humanos reconhecidos pelas leis internacionais.
É a primeira vez que o Conselho pelos Direitos Humanos se manifesta sobre o assunto e Catarina acha que esta decisão tem o potencial de mudar a vida de muita gente. Ela se refere às 900 milhões de pessoas sem acesso a água potável, às 2.6 bilhões sem saneamento básico, às 1.5 milhões de crianças que morrem antes dos cinco anos de doenças decorrentes da insalubridade e aos 443 milhões de dias de escola perdidos por causa dos danos causados pela água não potável.
O passo dado pelo Conselho é importante porque a resolução de julho da Assembléia da ONU, embora já tivesse proclamado tais direitos fundamentais, não havia especificado que eram uma obrigação legal. A lacuna foi preenchida em Genebra em letras garrafais: O direito à água e a saneamento básico é um direito humano igual aos demais, portanto justiçável e aplicável.
O entusiasmo de Catarina poderia ter me contagiado se eu não conhecesse um pouco de hidropolítica e um pouco mais de geopolítica e da realpolítica que privilegia os interesses dos que têm mais força, mais armas e aliados mais influentes.
Anteontem mesmo Richard Falk, enviado da ONU à Palestina para avaliar a situação dos territórios ocupados desde 1967 pelos israelenses, foi categórico quanto ao alto custo humano das destruições de lares, da expansão das colônias e do bloqueio da Faixa de Gaza.
No meio do relatório humanitário catastrófico conhecido por todo jornalista que já trabalhou na Cisjordânia e em Gaza, acabou dizendo que a ocupação ilegal dificulta a viabilização de um Estado Palestino e que quaisquer compensações israelenses seriam aquém do que Israel tirou dos nativos em terra... e água.
Dito isto e por outros motivos já abordados, apesar da fé de Catarina no recente Direito Humano à água potável e a saneamento básico, a expropriação impune dos recursos hídricos e outros recursos naturais palestinos mostra que a eficiência dos órgãos internacionais está ligada aos interesses do G8 e hoje em dia também do G20 no qual está Brasil e Argentina. Ambos Grupos por sua vez só defendem uma causa nobre quando pressionados pela própria opinião pública.
E pressionar é facílimo. Está ao alcance de qualquer pessoa que queira dizer Não inclusive calado. Pelo menos desde 1880 quando os irlandeses inventaram o famoso boicote.
Benditos irlandeses! que legaram uma voz potente a todo e qualquer cidadão anônimo e frágil diante de grandes poderes financeiros e forças armadas.
O boicote também é uma arma, pacífica, individual, coletiva, persuasiva e solidária. Abala pequenos e grandes infratores. Já foi usada com sucesso contra a política de apartheid na África do Sul até Nelson Mandela sair das grades e os negros gozarem de seus direitos inalienáveis. Nessa época os governos e algumas federações esportivas internacionais acabaram aderindo aos protestos dos numerosos João e Maria Ninguém como você e eu espalhados mundo afora.
Israel é imune a todas as leis internacionais e não teme ninguém e nada. Ou melhor, teme uma só palavra e seu resultado. Boicote é a palavra mágica. Ao ouvi-la os sionistas extremistas recorrem aos insultos de anti-semita e tremem nas bases.
Daí a resposta ambígua de Richard Falk a uma pergunta sobre a adesão cidadã galopante à campanha do movimento Bocytott, Divestment and Sanctions (BDS http://bdsmovement.net/) contra os produtos de Israel: O movimento reflete a mudança da caução moral, que passou de Israel para a Palestina após o bombardeio do Líbano em 2006, do ataque de Gaza em 2008 e da abordagem da flotilha humanitária em maio.
Concluo aqui, com pesar pelas famílias dos nove turcos assassinados e pelos feridos nos quais não se fala.
Pode ser que pareça que comecei com um assunto e terminei com outro, mas no Direito Internacional um e outro estão interligados. Não há como celebrar uma nova lei quando várias outras correlatas são violadas todos os dias publicamente sem nenhuma reação oficial.
Fora a ocupação, ou dentro dela, os palestinos da Cisjordânia só usufruem de 10 por cento de sua água. Os outros 90 por cento são desviados por e para Israel e os colonos israelenses que a esbanjam nos territórios ocupados enquanto os donos da terra estão sedentos do lado.
Na Faixa de Gaza o problema atinge proporções insuportáveis para quem vive e para quem sabe: os 1.5 milhões de habitantes só têm acesso a uma média de 140 litros diários.
Para que servem leis seletivas ou não aplicadas? O futuro dirá se a nova resolução onusiana mediática sairá do papel em todos os lugares do mundo, com equidade.
Enquanto isto, se você quiser fazer sua parte, é só perguntar a origem do produto que consome antes de comprar. Aí você escolhe o seu lado e faz ou não a ONU agir e avançar. No sentido do Direito, dos Direitos Humanos e no final das contas, da moral para a qual foi criada.

domingo, 17 de outubro de 2010

Água potável só para os abastados?



“Dever-se-ia dar liberdade total de consumo ao usuário de água e deixar os mecanismos de preço equilibrarem a oferta e a demanda”.
Esta manhã esta frase me veio à cabeça sem razão explícita. Mas ao contrário da de Frontinus sobre os aquedutos, ela jamais poderia ser minha. Eu a li em um jornal econômico respeitadíssimo e quem a escreveu é simpatizante do ultra-liberalismo que acha que a água é uma mercadoria à qual deveria aceder (sem comedimento) apenas quem pode pagar pelo ouro azul o que paga pelo que doura cofres, dedos e orelhas da elite financeira do mundo.
Para estes capitalistas irredutíveis a educação do consumidor chateia porque acham os gestos básicos quotidianos cansativos e desnecessários para os ocidentais que (ainda) não foram atingidos pela penúria que reina em outros lugares do planeta. Acham que estão livres do perigo, que a água potável correrá sempre em suas torneiras e que as garrafas de água mineral que compram no supermercado ou nas lojas especializadas vêm de fontes inesgotáveis, e puras. E se estas se esgotarem, restar-lhes-á o recurso de baldear a da Bacia Platina, da Bacia Amazônica ou de qualquer outra fonte alheia conquistável. Pois o capital que não tem ética não tem cultura e nem fronteiras.
Ele sabe e ignora que causa e efeito não é uma teoria teórica e sim concretíssima e que quanto mais se consome água, mais barragens e mais usinas têm de ser construídas, pessoas desalojadas, água desviada, poluída e escasseada para quem dela necessita e que acaba sem acesso a um simples copo por dia.
Para os que pensam diferente do autor desta frase acima, ou seja, que sabem que a água é um patrimônio universal e a água potável um direito inalienável de todos os cidadãos com meios e sem meios para adquiri-la, segue um lembrete de como preservar nossas duas pródigas bacias e nossos belos rios os protegendo de hidrelétricas que os danifiquem.
Você já deve saber que economizando água economiza energia, já que o aquecedor elétrico do chuveiro pode consumir até 50% da que gasta. Mas a água-energia usada por uma família é irrisória comparada com a quantidade usada nas próprias usinas que a tratam para que ela chegue potável até nossas casas. A maioria destas só funciona com muita água. As elétricas e as nucleares. Estas últimas então ingurgitam cerca de 685 bilhões de litros diários.
Economizando água se economiza energia. Economizando energia se economiza água. É a relação causa e efeito que os ultra-liberais não querem que façamos nunca. Mas fazemos, no mínimo fechando a torneira ao escovar os dentes, tomando banhos curtos, e ao sair de casa, desligando o computador, conferindo as torneiras, apagando as luzes, e comprando um filtro de barro cuja água é mais gostosa do que a engarrafada.
Com os garrafões que chegam em casa (com água vinda de onde mesmo?) o brasileiro acabou esquecendo o filtro de barro, mas garanto que eles ainda existem. Se não no supermercado, no mercado central ou em lojas populares de pratos, talheres e panelas no centro da cidade.
Não é só na Europa e nos Estados Unidos que a água da torneira é potável. Nas capitais brasileiras também ela é segura. Se não for ou se você achar que não é, peça contas à companhia de saneamento que está aí para fornecer água salubre. É assim que as condições de vida melhoram e as coisas evoluem. A reivindicação do direito a um bem público básico vale mais do que um voto de desagravo sem uma postura quotidiana cívica.
Aliás, acho que o antigo Filtro, objeto típico que foi posto fora de casa pela "marquetada" água industrializada, dá um ar sadio a qualquer cozinha. Mostra também que não se vota Verde só por modismo, mas para um Brasil são em todos os sentidos.

http://www.youtube.com/watch?v=dULLWb4EFPw
http://www.youtube.com/watch?v=Se12y9hSOM0

domingo, 10 de outubro de 2010

Mausoléus e Edificações


À massa, tão numerosa e tão necessária de tantos aquedutos, como comparar as pirâmides egípcias que não servem para nada ou as obras dos gregos, inúteis, porém célebres!
Esta frase que diferencia o mausoléu de um monumento notável poderia ser minha, mas se fosse não teria a mesma autoridade de quem a escreveu no fim do primeiro século. Sextus Julius Frontinus, Curator Aquarum imperial do ano 97 até 104, um tipo de senhor das águas na Roma antiga, a teria repetido várias vezes com a mesma indignação antes de escrevê-la para as gerações futuras.
Das Sete Maravilhas do Mundo conhecido na antiguidade – Pirâmide de Keops, Jardins suspensos da Babilônia, estátua de Zeus, templo de Artêmis, mausoléu de Halicarnasso, Colosso de Rodes e Farol de Alexandria, a única que sobreviveu às catástrofes naturais foi a Pirâmide de Giza. E esta ficou fora das Sete Novas Maravilhas. Frontinus deve ter sorrido desta ironia da história, embora seu critério de utilidade continue fora das pautas.
Neste espírito utilitário que Frontinus inspira, das Sete Novas Maravilhas, o Taj Mahal, em Agra, é uma obra faraônica que em vez de me extasiar arrepia. No estado em que está situado, o Uttar Pradesh com seus 175 milhões de almas, o que sempre me tocou foi a política racista e reacionária que inspirou atos de violência intercomunitária e que levou à organização gradual dos sem casta até a ascensão da advogada Mayawati, candidata do partido Dalit (os intocáveis) à chefia do ministério de um estado em que 57% das mulheres são totalmente analfabetas. As que só desenham o nome não são contadas.
Aliás, a espiritualidade que atrai os turistas à Índia (como ao Brasil são atraídos por nossa cordialidade), embora intrínseca, do ponto de vista jornalístico parece um mito distante da realidade deste país recordista de conflitos inter-religioso-raciais e inter-estados. Estes últimos, além das rixas anteriores à unificação do país, também por causa da distribuição desigual da água.
O nosso Cristo Redentor faz parte do clube restrito e vela pelo Brasil inteiro do litoral do Rio de Janeiro desde 1922. Imponente e apaziguador com seus braços abertos em um abraço protetor.
Na Ásia tem outra Nova Maravilha que é a Grande Muralha da China. Construída, destruída e reconstruída entre os séculos III AC e II DC e chamada wàn lǐ chángchéng, o que significa literalmente Grande Muralha de Dez Mil lǐ – uma medida infinita. A parte mais turística data da dinastia Ming, já que com a mobilidade fronteiriça o país ergueu e desmantelou várias ao ritmo das guerras expansionistas bem e mal sucedidas.
Na Muralha, a jornalista em mim rememora estas batalhas consecutivas que constituem a história do que a China é e que revelam bastante o temperamento que vigora. Ela me impressiona tanto quanto qualquer outra fortificação, mas o que me emociona ao vê-la é a lembrança dos dez milhões de homens mortos em gerações consecutivas por senhores de guerra que nem conheciam. Talvez tenha sido por isto que durante a Revolução Cultural Maoísta (1965-1969) seus oratórios e monumentos foram desmantelados e as pedras usadas em chiqueiros. Uma desforra póstuma aos dinastas ambiciosos que não deixa de ser um desacato à memória do sacrifício humano que as pedras cobriam.
O Oriente Médio, dominado por conflitos intermináveis, ocupações ilícitas e águas desviadas, contaminadas e confiscadas, também tem sua Nova Maravilha na Jordânia. Entre as três, para mim a única que vale a viagem é esta - Petra, a cidade de pedra, viva. Tudo nela é admirável. Da história ao sítio magistral entrevisto passo a passo pelo Siq, a longa fresta que encaminha a magia a nossos sentidos e olhos.
Sua história merecia um artigo, mas neste a restrinjo à época em que a Cidade Rosa foi capital nabatéia durante dois séculos faustosos (os primeiros AC e DC) e após enfraquecer devido a repetidos ataques foi esquecida até ser redescoberta em 1812 por um explorador suíço. No Antigo Testamento, Moisés, na travessia do Egito, ao passar por Petra bateu o cajado e do rochedo saiu uma fonte que matou a sede dos israelitas a caminho da tomada da Palestina.
Mas o oásis da cidade não tinha nada de místico e o que me impressiona no sítio é a proeza técnica dos nabateus contra a erosão e seu sistema hidráulico. Atualmente as camadas freáticas de água salgada ameaçam a cidade, mas no período nabateu, ela era doce, pluvial e recuperada com facilidade graças à impermeabilidade das rochas. Os habitantes dispunham de água à vontade, fornecida pelo sistema de recuperação e estocagem ainda visível, assim como as barragens hidráulicas e os preciosos aquedutos cujo sistema avançado só tinha um rival, e qual!
Era este o calcanhar de Aquiles da jóia árabe. Foi aí que os romanos, especialistas no assunto, a dominaram. Após um sítio interminável, cortaram os aquedutos e a rendição não tardou a chegar. É o famoso poder bélico da água enaltecido por Frontinus no livro III de sua obra Estratagemas (Maquiavel a leu e releu várias vezes...) em que um capítulo inteiro é dedicado aos desvios dos rios e à contaminação da água para subjugar um adversário irredutível - como os israelenses fazem com os palestinos nos territórios ocupados.
Este é o mesmo Frontinus revoltado com a subestimação dos aquedutos e sua real contribuição à humanidade. Como dizia o poeta lusitano, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Apesar de suas contradições, o cônsul romano deve ter ficado indignado com a quarta Maravilha, escolhida na cidade dos onze aquedutos e do complexo hidráulico até hoje admirado. Como se sabe, nossos contemporâneos escolheram o Coliseu, palco de inúmeras crueldades, em vez de uma das 286 ruínas - Argélia, Alemanha, Espanha, França, Grã-Bretanha, Grécia, Israel, Itália, Jordânia, Líbano, Líbia, Marrocos, Turquia e Tunísia - das centenas de aquedutos de superfície que os romanos construíram.
Portanto, espero que não se importem que eu conclua as Novas Maravilhas sem falar nas duas últimas situadas na nossa América Latina - Chichén Itzá, no Iucatã mexicano, e o peruano Machu Pitcchu admirável. Preciso de espaço para celebrar a água e a inventividade que ela suscita.
A Maravilha que me maravilha é a mesma que maravilhava Frontinus. Os aquedutos romanos que nem concorreram ao título, embora tenham sido construídos pela mão do homem para lhe ser fonte de vida.
Edificados em profusão em Roma e nos territórios anexados para que as populações locais usufruíssem plenamente de seu potencial hídrico, tinham importância ímpar no encaminhamento de água pública. A história conta que durante a administração de Frontinus, as pestilências foram totalmente removidas, Roma ficou mais limpa, o ar ficou respirável e a água potável. Embora fosse matemático, seus escritos demonstram um bom conhecimento hidrológico e este foi bem utilizado.
Como é impossível citar todos os aquedutos localizados dentro e fora da Itália, ou seja, no vast Império Romano, é melhor nos atermos a Roma e resumirmos o sistema simples e sofisticado.
Ao longo do império e com o crescimento da população, onze aquedutos foram construídos na capital a fim de alimentar os banhos públicos, as fontes e as residências. A água de melhor qualidade era reservada ao consumo humano e a de segunda qualidade aos banhos, conectados diretamente à rede de esgoto subterrânea na qual a água corria continuamente, evitando a obstrução dos canos. Parece que as casas, inclusive dos ricos, não eram conectadas à rede e tinham de se virar para evacuar seus detritos.
Com a história e a promoção de impérios com outras prioridades, os aquedutos foram sendo abandonados ou destruídos por conquistadores de passagem que elevavam monumentos sem trazer melhoramentos para os povos dominados, quando não apenas devastavam. Mas o que resta dos aquedutos continua às vistas de quem viaja pelo império extinto.
Para os curiosos, o fim da Cloaca Maxima, rede de esgotos romana, ainda é visível no rio Tibre, na altura das pontes Rotto e Palatino. Foi sob uma delas que São Sebastião foi despejado pelas águas do esgoto em que tinha sido jogado após ser executado duas vezes pelo imperador Diocleciano em 288. Seu corpo foi resgatado do rio e está enterrado na Basílica Apostolorum em Roma.
Mas se antes de virar flecha ao alvo São Sebastião tivesse tido tempo de ditar testamento, talvez tivesse proibido seu enterro, como Frontinus proibiu o seu com uma frase que golpeia muito narcisista inseguro que confunde mausoléu com edificação de vulto: O gasto com um monumento é supérfluo. A memória do meu nome durará, se minha vida tiver sido digna.
Aquedutos

Taj Mahal

Grande Muralha

Petra

Cristo Redentor

domingo, 3 de outubro de 2010

O Indo e o Ganges no olho do furacão indiano



No fim do Império Britânico das Índias, o líder da Liga Muçulmana negociou com a Inglaterra a criação do Pakistão, um acrônimo das províncias que o compõem – Punjab, Kashmir, Sindh, Baluchistão – e que também significa País dos Puros.
Sem atropelos até então, a independência deu a luz em 1947 à Índia laica e ao Paquistão dividido em duas partes distanciadas, com línguas distintas (urdu e bengali) e a mesma base religiosa. A Ocidental é o país de agora. A Oriental adquiriu autonomia em 1971 com o nome de Bangladesh.

A outra coisa que os “Pakistão” tinham em comum era e é a dependência dos grandes rios que nascem no Himalaia e passam pela Índia antes de os alcançarem.
A criação da SAARC (South Asian Association for Regional Cooperation www.saarc-sec.org/) não resolveu nada, pois esta privilegia ações comerciais e exclui os problemas controvertidos de partilha da água.
No caso do Paquistão, o problema é o Indo que, como já disse, passa pela Caxemira a caminho da foz no Mar da Arábia. Mas omiti o papel do rio neste país rasgado entre a Índia que tem uma sede insaciável de hegemonia regional e o Paquistão, sobre o qual pesa uma ameaça de desastres provocados pelo aquecimento global.

Ontem recebi um email pedindo esclarecimento sobre a situação hidropolítica da região e resolvi retomar o fio a partir das dezessete províncias que constituíam a Índia britânica.
Doze delas ficaram na Índia, três delas ficaram no Paquistão, duas (Punjab e Bengala) foram repartidas entre ambos, e a parte paquistanesa da Bengala, ficou no Bangladesh. A Birmânia já voava com suas próprias asas.
Vou poupar-lhes as quatro guerras e os conflitos que perduram entre os três países para focar nos problemas que o Indo e o Ganges geram. Ou melhor, protagonizam por intermédio alheio.

Comecemos pela Caxemira onde eclodem. Paradoxalmente, esta é uma das regiões mais bonitas e tranquilas que conheço. A mistura de árvores, montanhas, rios e lagos é uma celebração da natureza no que ela tem de mais rico e perfeito. Na superfície.
Com intermitência, ela continua sendo palco de disputas Indo-paquistanesas que nos últimos sessenta anos têm separado violentamente famílias e amigos. Como acontece em todo país rasgado e ocupado.
O retrato dos dramas humanos que a disputa Indo-paquistanesa encadeia está dentro das casas, nas fotografias cortadas e nas histórias contadas quando os corações partidos se abrem.
Sua capital Srinaga está na área indiana.
Seus lagos que lhe valem o apelido de Veneza oriental são de uma beleza tensa e calma. Abriga ruínas de grande riqueza cultural que valem a pena ser visitadas - apesar da incerteza política em que o país está atolado, é preciso que o destino esteja traçado para sucumbir a um atentado.
Ao contrário do que Hollywood veicula, nenhuma guerra é contínua. Só bombardeios, já que o bombardeador é revezado e só a vítima é atacada.
Na Caxemira não é o caso. Os conflitos armados são pontuais e o país almeja a paz.
Por que então esta disputa desenfreada?
Por que não cumprir a resolução da ONU de 1949 e retomar o processo de referendum há poucos anos relançado e interrompido?
Pois os nativos querem a liberdade de circular por todos os lados sem medo de bombas explodirem e de balas ricochetearem em suas portas e em suas caras.
A resposta (como no Tibete em relação ao outro gigante asiático) é simples e complicada: seus recursos naturais. A região parece um oásis com a natureza quase intacta e a água brotando, potável. E a água volta à pauta... Aqui é a que rola no Indo e os afluentes que abastecem os dois beligerantes que cobiçam o país dos lagos.
Como a China, a Índia tem a supremacia e o Paquistão, apesar de sua bomba atômica, sabe que a curto e longo prazo corre dois riscos letais. Ou morre afogado por inundações causadas pela natureza revoltada ou morre de fome e de sede... caso a Índia resolva por um ato de guerra, de provocação ou de mero desprezo, bloquear os rios que regam o Punjab, o Sindh, e o Paquistão inteiro.

Os paquistaneses ainda não esqueceram o dia 1° de abril de 1948. Neste dia se encontraram com rios esvaziados pelo gigante zangado. À míngua de água, protestaram e acabaram conseguindo um acordo provisório mediado pelo Banco Mundial. Em 1960 o Indus Water Treaty (http://go.worldbank.org/WHGZVDDCB0) foi assinado entre os dois países, mas as construções de barragens e desvios de água continuam provocando atritos. São assuntos que não saem das pautas dos ministérios das relações exteriores de Delhi e Islamabad. E na dos jornalistas, a eventualidade de um sério conflito armado caso o fluxo do Indo realmente seja reduzido (previsões de 50%) pelo aquecimento global.
Por sorte os Estados Unidos mantêm boas relações com ambos os lados. Aliás, o Paquistão é a bola da vez desde 2001 e a caça a Ben Laden.
A Índia desfruta do respeito ganho com o selo de potência econômica emergente (embora seu crescimento lembre o tal “bolo” que o Delfim Neto cozinhava na década de 70 acompanhado do “Ame-o ou deixe-o” dos nossos generais enquanto o povo brasileiro só salivava) e o Paquistão leva a vantagem da vizinhança com o Afeganistão ocupado. Caso contrário, talvez a água por lá já estivesse toda avermelhada.
O outro vizinho que paga caro o inchamento econômico indiano é o Bangladesh, cujo presidente reuniu-se ainda este ano com seu homólogo indiano para encontrar uma solução para o seu estrangulamento.
Mas deste lado o Indo cede o protagonismo ao Ganges.
Outra lenda de 2.510 km que também nasce no Himalaia e tem um delta comum com o Brahmaputra que serve 300 milhões de pessoas.
Delta tombado como patrimônio da humanidade – seus mangues, compostos de várias ilhas de rara biodiversidade, resguardam espécies vegetais e animais únicas, como os famosos golfinhos e o tigre de Bengala.
Lirismo à parte, se não bastasse a subida paulatina das águas que devoram o litoral bangladeshiano, o interior do país vive à mercê das necessidades do vizinho ilustre com seus açudes que o privam de água.
O primeiro foi construído pelos britânicos em 1854 para a irrigação.
O maior é uma hidrelétrica que é fonte de conflito desde sua construção em 1975. Próxima da entrada principal do rio no Bangladesh, ela desvia uma boa parte das águas para Calcutá.

Mas o problema maior do Ganges é sua poluição desde a nascente que aumenta rio abaixo e quando chega ao Bangladesh está cheio de bactérias acumuladas nas diversas províncias indianas que atravessa. O rio é conhecido como o maior esgoto da Terra. Diz-se que recebe diariamente cerca de 475 cadáveres humanos, 1.800 toneladas de madeira usada nas cremações e dez mil carcaças de animais abandonados.
Em Vârânasî e nas imediações de suas centenas de templos, a água é tão poluída que parece uma sopa escurecida por excrementos, restos humanos apodrecidos e detritos industriais e vegetais.
Várias formas de despoluição já foram tentadas. De estações depuradoras de água ligadas a quilômetros de esgoto, privadas e crematórios públicos à última tentativa de soltar tartarugas necrófagas para consumirem os cadáveres. As primeiras foram vãs. Os répteis “sanitários” foram capturados e devorados.
A história do Ganges, e dos seis outros rios sagrados do hinduísmo, é estreitamente ligada à da Índia e seus costumes religiosos e seu conceito higiênico particular.
Sem julgamento de valor de um ou outro, as análises em laboratório afirmam que as águas do rio sagrado contêm sessenta mil bactérias fecais por 100 ml – 120 vezes superior ao limite aceitável.
O que não impede os indianos de imergirem nele pelo menos uma vez na vida em sua cerimônia de purificação espiritual. E nem os meninos de se banharem como se água fosse segura e clara.

Rio abaixo, ou seja, no Bangladesh, noventa por cento da população passaram a ser abastecidas em água potável por canos-cisternas instalados em uma campanha vitoriosa contra a diarréia. Mas no Bangladesh, quando um problema desaparece é para dar lugar a outro mais grave.
A seca provocada pelo desvio do Ganges no Bengali indiano obrigou os bangladeshianos a cavar poços em profundidade. Encontraram água, mas qual não foi a surpresa ao constatarem anos mais tarde, através de feridas e deformações crescentes na população, que estes aquíferos contêm arsênico... cuja fonte parece ser geológica e cuja descontaminação é lenta e complicada.
Enquanto os cientistas não encontrarem antídoto a esta fatalidade, uma das medidas urgentes lógicas seria o retorno às fontes de superfície... se estas não estivessem poluídas com todas as bactérias conhecidas na biologia.
Minha avó diria para ferver a água. Um método caseiro eficiente e simples. Mas não no Bangladesh.
Lá, a simpatia dos nativos no interior e na capital Daca somada à beleza de suas praias convivem com uma miséria de proporções inimagináveis. Até para quem pensa já tê-la vislumbrado em outras paragens.
Lá, até o fogo é inaccessível a uma população que o alto grau de analfabetismo aliena de gestos tidos como primários.
A alternativa em longo prazo poderia ser a descontaminação solar, testada pelo professor Acra e seus colegas da Universidade de Beirute - Puseram no sol um copo transparente com água contaminada três horas antes de tomá-la e redescobriram o milagre da salubridade.
Contanto que a água convertida contenha oxigênio suficiente para que a química seja bem sucedida. (Favor não fazer a experiência em casa!)

Talvez esta seja a resposta científica à poluição desenfreada do Ganges que pela lógica deveria contaminar milhões de hindus que banham em suas águas infestadas de excrementos e restos de cadáveres. Mas não. Pelo menos não a maioria. Ou eles nascem com algum gene que os imuniza ou se há de acreditar na crença hinduísta de que o rio tem poder auto-regenerativo.
O Beatle George Harrison certamente acreditava nisso. Suas cinzas foram despejadas em uma cerimônia discreta na água amarronzada. As cinzas, pois misticismo em mente ocidental não rima com temeridade. Oxalá a natureza e sua química perfeita de sol e oxigênio continuem a proteger os demais que mergulham vivos.

Poluição no Ganges

George Harrison: Bangladesh