domingo, 31 de outubro de 2010

Чeхов, em Teatro Ecológico de um Visionário

  
Tchekov e Tolstoi em Yalta, em 1900
Alguns dias atrás me perguntaram a quem este blog é destinado. A pessoa disse que embora não entendesse nada de hidropolítica, geopolítica ou algo que as valha, entendia o que eu contava e se sentia mais sabido no ponto final.
Na hora só respondi que também aprendo sem parar e o pouco que sei gosto de compartilhar.
Pelo meio eslavo em que tenho estado e por o curioso ser um amador de teatro, resolvi retornar à pergunta hoje, nesta página, dando um pulinho fora d’água para respondê-la lembrando os quilômetros de florestas russas há poucas semanas incendiadas.
Em vez de reportar dramas e política de reflorestamento, para ser fiel à alma e à erudição do povo atingido por esta tragédia ambiental, prefiro falar em um filho da terra que inaugurou a ecologia no teatro: Антoн Пaвлович Чeхов, conhecido entre nós por Anton Tchekhov - o visionário que criou uma personagem preocupada com o meio-ambiente duzentos anos antes do assunto ser banalizado.
Tchekhov é mais conhecido pela Gaivota, em que questiona o estatuto do artista e sua vaidade; pelas Três Irmãs, em que mostra o tempo passar e a inércia atropelar sonhos e vidas cheias apenas de expectativa vaga; por Platonov e o cinismo que corrói o seu melhor lado; por Ivanov e a pequenez da burguesia sedentária; pela Cerejeira, este jardim secreto das boas lembranças que protegemos a um custo às vezes mais alto do que valem; pelo Tio Vânia, onde as ilusões financeiras e afetivas são destroçadas em silêncios e diálogos cruzados em que os desejos de uns e outros se perdem de maneira irreconciliável até a célebre frase final: My otdokhniom – Nós descansaremos, que inspirou o belo concerto homônimo de seu compatriota Sergei Rachmaninof.
Nenhum destes dramas bem orquestrados, em que as personagens são coadjuvantes e protagonistas sem maior ou menor realce e vilões mais pela irremediável humanidade que Tchekhov destrincha sem condescendência ou piedade, faz parte das suas obras que mais me agradam.
Uma destas é Sakhalina, uma série de cartas redigidas durante sua temporada engajada contra a prisão e sua desumanidade. Nela se sente uma urgência emocional e narrativa em que Tchekhov mostra realmente a cara.
Mas a pergunta que me fizeram só dá para ser respondida em uma peça que talvez seja a menos interpretada: Леший. O nome está em russo não pelo respeito linguístico com o dramaturgo e sua língua materna, mas por uma razão prática. O título Selvagem com o qual batizou o livro publicado em sua terra, foi traduzido em vários idiomas de maneiras variadas.
É conhecida também como o Gênio da Floresta, por causa da mensagem do Bem que realça.
É uma peça do tempo em que Tchekhov caminhava para a celebridade em sua alimentícia carreira literária. Sua filosofia existencial é exposta de peito aberto na figura do jovem médico idealista (como ele mesmo nessa idade) que atravessa os quatro atos tentando despertar os demais para o que realmente conta na vida e para a natureza e suas vantagens.
O Selvagem foi escrita em 1888, representada em dezembro do ano seguinte e tirada de cartaz no sexto dia. Um fiasco. Pior do que o de Ivanov, também rejeitada por causa da crítica acerba à burguesia – a versão atual é a modificada e ovacionada em 1889, após ter sido enxugada dos diálogos que incomodavam.
O desastre de crítica e de público levou Tchekhov a fazer no Selvagem, sete anos mais tarde, mudanças que deformaram sua exuberância idealista ao ponto de torná-la irreconhecível e o título ser mudado para Tio Vânia, celebríssimo em todos os teatros. A partir daí o Selvagem ou o Gênio da Floresta foi engavetado.
Sem querer denegri-la, Tio Vânia, apesar da maturidade dramatúrgica que a caracteriza, é uma cópia pálida e pessimista da vivacidade filosófica da peça da qual deriva. No Selvagem o entusiasmo sopra um humor quase desesperado na mensagem ecológica e premonitória da indiferença humana ao bem não material, aquele que não parece logo rentável.
O gênio Selvagem é Mikhail Krutchev, médico jovem de origem modesta, trabalhador e dedicado a uma filantropia ecológica surpreendentemente contemporânea na qual se lê uma metáfora entre a floresta e a humanidade. O Selvagem luta contra a tendência auto-destrutora do homem que derruba árvores que lhe são vitais. Ele usa a força da floresta para salvá-la e plantar e plantar sem recuar diante das dificuldades. Segue a luz que o leva até o cume onde vê o amor que “é a recompensa de quem trabalha, luta e sofre” até alcançá-lo.
No Selvagem Tchekhov já mostra a burguesia interiorana com sua hipocrisia, mesquinhez, baixeza e monotonia. Ele a expõe sem condená-la com discursos moralistas. Em vez disso escolhe o riso para disfarçar a realidade que denuncia. A moral da estória é que embora a maioria dos homens se autodestrua por inércia e covardia, todos têm a oportunidade de mudar ou pelo menos esforçar-se para conseguir.
É nessa busca do ideal que reside a grandeza humana e na qual o Gênio se destaca e sacode o Selvagem: Tem um selvagem em mim, mesquinho... Não sou um herói? Sê-lo-ei! Farei crescer em meu âmago asas de águia. Se as florestas queimarem plantarei mais árvores. Se não me amarem amarei alguém mais...
No Tio Vânia, Tchekhov flagela seu humanismo e renega seu íntimo. Tira a influência do gênio sobre o selvagem e o que resulta deste vandalismo moral é Ástrov, um médico que também tenta salvar florestas, mas em um papel secundário. Embora continue lúcido, ele não se questiona mais para avançar, consola suas derrotas no álcool e se destrói paulatinamente dando certa incoerência à sua personagem ao repetir um dos discursos idealistas originais do Selvagem. Exaltar a beleza das florestas que inspiram e estão sendo arrasadas; falar sobre enchentes e secas que se multiplicam, reclamar de espécies animais sendo exterminadas e do clima que hostiliza o homem em seu habitat, perde o sentido nos lábios desse gato escaldado incapaz de lutar pelos ideais que no final das contas, quase abate em vez de elevar.
No Tio Vânia a alegria e a crença no homem e em seu potencial foram abolidas. Encená-la tanto e ocultar o Selvagem é dar uma idéia errada de Tchekhov e de sua filantropia literária. Ele não era nem cínico nem melancólico nem desencantado. Era um humanista sem a força do Selvagem e por isto acabou se dobrando à lei do mercado.
Apesar deste lapso, o Selvagem foi criado e mostra que no seio da floresta escura toda árvore cresce em direção ao céu para puxar o homem para cima, para o auge.
Enquanto o Selvagem mirava o alto visando à luz que o iluminava, Ástrov não consegue ver ninguém nem nada. Ástrov é o ébrio que vive a vida como um devaneio e acaba atolado na lama em que se desgarra.
O Selvagem é o operário da humanidade. Que pergunta o que não sabe, aprecia a diversidade em todas suas formas e caras, consome com discernimento e tenta acertar o errado.
É a quem se abre ao gênio que combate o selvagem em si que este blog é destinado.

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