No fim de julho a Assembléia Geral da ONU declarou em voz alta que o acesso a água potável e a saneamento básico era (finalmente!) um direito essencial ao pleno gozo da vida e dos outros direitos humanos já adotados.
A notícia era preciosa e teria valido uma nota sobre esta aprovação majoritária – 122 votos a favor e nenhum contrário. Porém resolvi esperar o fim da novela que durava desde 2008 antes de cantar uma vitória talvez efêmera considerando a força política de alguns dos 41 países que não votaram contra, mas se abstiveram, com alarde ou calados.
Um dos que se abstiveram calados foi Israel, por motivos óbvios. Para quem não os conhece, a Palestina (que sedia na ONU como Observador e não como Estado) explicou em um aparte: O acesso a água potável e a saneamento básico deveria ser um direito de todos os povos, inclusive os ocupados. As violações dos direitos dos palestinos de aceder à sua própria água impede que desfrutem de outros direitos fundamentais. O delegado israelense se fez de desentendido e o assunto foi encerrado.
Outros como a Inglaterra e os Estados Unidos justificaram seu não-voto. Alegaram que estes já eram direitos e que a decisão dependia de Genebra, ou seja, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos.
Agosto e setembro passaram e nesse ínterim a portuguesa Catarina de Albuquerque, especialista independente contratada pela ONU para estudar o tema, foi trabalhando, analisando e acelerando o veredito divulgado há dez dias pelo Alto Comissariado: Estes direitos já estão contidos nos atuais tratados, portanto já são Direitos Humanos reconhecidos pelas leis internacionais.
É a primeira vez que o Conselho pelos Direitos Humanos se manifesta sobre o assunto e Catarina acha que esta decisão tem o potencial de mudar a vida de muita gente. Ela se refere às 900 milhões de pessoas sem acesso a água potável, às 2.6 bilhões sem saneamento básico, às 1.5 milhões de crianças que morrem antes dos cinco anos de doenças decorrentes da insalubridade e aos 443 milhões de dias de escola perdidos por causa dos danos causados pela água não potável.
O passo dado pelo Conselho é importante porque a resolução de julho da Assembléia da ONU, embora já tivesse proclamado tais direitos fundamentais, não havia especificado que eram uma obrigação legal. A lacuna foi preenchida em Genebra em letras garrafais: O direito à água e a saneamento básico é um direito humano igual aos demais, portanto justiçável e aplicável.
O entusiasmo de Catarina poderia ter me contagiado se eu não conhecesse um pouco de hidropolítica e um pouco mais de geopolítica e da realpolítica que privilegia os interesses dos que têm mais força, mais armas e aliados mais influentes.
Anteontem mesmo Richard Falk, enviado da ONU à Palestina para avaliar a situação dos territórios ocupados desde 1967 pelos israelenses, foi categórico quanto ao alto custo humano das destruições de lares, da expansão das colônias e do bloqueio da Faixa de Gaza.
No meio do relatório humanitário catastrófico conhecido por todo jornalista que já trabalhou na Cisjordânia e em Gaza, acabou dizendo que a ocupação ilegal dificulta a viabilização de um Estado Palestino e que quaisquer compensações israelenses seriam aquém do que Israel tirou dos nativos em terra... e água.
Dito isto e por outros motivos já abordados, apesar da fé de Catarina no recente Direito Humano à água potável e a saneamento básico, a expropriação impune dos recursos hídricos e outros recursos naturais palestinos mostra que a eficiência dos órgãos internacionais está ligada aos interesses do G8 e hoje em dia também do G20 no qual está Brasil e Argentina. Ambos Grupos por sua vez só defendem uma causa nobre quando pressionados pela própria opinião pública.
E pressionar é facílimo. Está ao alcance de qualquer pessoa que queira dizer Não inclusive calado. Pelo menos desde 1880 quando os irlandeses inventaram o famoso boicote.
Benditos irlandeses! que legaram uma voz potente a todo e qualquer cidadão anônimo e frágil diante de grandes poderes financeiros e forças armadas.
O boicote também é uma arma, pacífica, individual, coletiva, persuasiva e solidária. Abala pequenos e grandes infratores. Já foi usada com sucesso contra a política de apartheid na África do Sul até Nelson Mandela sair das grades e os negros gozarem de seus direitos inalienáveis. Nessa época os governos e algumas federações esportivas internacionais acabaram aderindo aos protestos dos numerosos João e Maria Ninguém como você e eu espalhados mundo afora.
Israel é imune a todas as leis internacionais e não teme ninguém e nada. Ou melhor, teme uma só palavra e seu resultado. Boicote é a palavra mágica. Ao ouvi-la os sionistas extremistas recorrem aos insultos de anti-semita e tremem nas bases.
Daí a resposta ambígua de Richard Falk a uma pergunta sobre a adesão cidadã galopante à campanha do movimento Bocytott, Divestment and Sanctions (BDS http://bdsmovement.net/) contra os produtos de Israel: O movimento reflete a mudança da caução moral, que passou de Israel para a Palestina após o bombardeio do Líbano em 2006, do ataque de Gaza em 2008 e da abordagem da flotilha humanitária em maio.
Concluo aqui, com pesar pelas famílias dos nove turcos assassinados e pelos feridos nos quais não se fala.
Pode ser que pareça que comecei com um assunto e terminei com outro, mas no Direito Internacional um e outro estão interligados. Não há como celebrar uma nova lei quando várias outras correlatas são violadas todos os dias publicamente sem nenhuma reação oficial.
Fora a ocupação, ou dentro dela, os palestinos da Cisjordânia só usufruem de 10 por cento de sua água. Os outros 90 por cento são desviados por e para Israel e os colonos israelenses que a esbanjam nos territórios ocupados enquanto os donos da terra estão sedentos do lado.
Na Faixa de Gaza o problema atinge proporções insuportáveis para quem vive e para quem sabe: os 1.5 milhões de habitantes só têm acesso a uma média de 140 litros diários.
Para que servem leis seletivas ou não aplicadas? O futuro dirá se a nova resolução onusiana mediática sairá do papel em todos os lugares do mundo, com equidade.
Enquanto isto, se você quiser fazer sua parte, é só perguntar a origem do produto que consome antes de comprar. Aí você escolhe o seu lado e faz ou não a ONU agir e avançar. No sentido do Direito, dos Direitos Humanos e no final das contas, da moral para a qual foi criada.
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