domingo, 24 de abril de 2011

Os conflitos no mundo e a Páscoa na Palestina


Monte das Oliveiras

Enquanto os presidentes da Tailândia e do Camboja recorrem às armas para disputar a posse da área de 4.6 km² que rodeia o templo fronteiriço de Angkor, que a Corte Internacional de Justiça atribuiu ao Camboja em 1962; o presidente do Yêmen é posto na rua após três décadas de absolutismo; o da Síria atira em manifestantes após o gesto simbólico de pôr fim ao longo Estado de Sítio; o ditador da Líbia se agarra a Trípoli como um náufrago em bóia salva-vidas; o da Arábia Saudita desencava uma segunda eleição municipal sem voto feminino; o príncipe Salman Bin Hamad Bin Isa Al Khalifa, do Bahrein, acusado pela Anistia Internacional de usar força excessiva para sair da deriva, está se aprontando para assistir ao casamento de Kate e William sob protestos das ONGs britânicas de Direitos Humanos que não querem vê-lo nem pintado em Westminster – nem ele nem o rei Mswati III, da Suazilândia, outro déspota longe de ser esclarecido; na Palestina, a Semana Santa e as celebrações da Páscoa, apesar dos pesares, estão restritas, mas pacíficas.
Como poucos sabem, tem muitos palestinos cristãos e em Gaza tem um padre. Aliás, mais de um, mas o que chama mesmo atenção é o padre Manuel Musallam, um aposentado de 71 anos que serviu a paróquia gazauí durante 14 anos.
Cedo-lhe a palavra pascoal.
“Nós cristãos da Palestina temos vivido sob ocupação durante longos anos. Temos sofrido por sermos privados de acesso aos sítios santos, e já tem duas gerações de cristãos que nunca obtiveram autorização de visita a estes sítios.
A ocupação vem levantando obstáculos atrás de obstáculos ilegais. Este ano temos o problema do muro do apartheid, checkpoints e bloqueios de estradas. Todas estas medidas não apenas sufocam o povo palestino, mas também asfixiam a paz entre Israel e a Palestina.
A frase que os sionistas repetem que a Palestina era ‘uma terra sem povo para um povo sem terra’ teve e tem um impacto desastroso nos palestinos. ‘Não significa que Jerusalém não tem povo, mas sim que a cidade deveria ser evacuada e dada a um outro povo’, David Bem Gurion disse em 1937 quando declarou que ‘temos de expulsar os árabes e tomar seus lugares’.
Toda pedra construída no muro do apartheid, cada picareta dada nos subterrâneos da mesquita de Al-Aqsa e toda casa destruída por Israel, aumentam a intensidade de resistência e o ressentimento; enquanto uma cooperação com os palestinos dará a Israel a esperança de um futuro dominado pela paz e a serenidade.
Lamentamos Jerusalém e sentimos falta das belas cerimônias cristãs. Este ano milhares de turistas percorrerão o caminho da cruz sem os palestinos. Não verão nenhum folclore nativo, não poderão levar para casa nenhuma lembrança do artesanato religioso local, não ouvirão nenhuma oração, nenhum hino que testemunhe o calor e a fé dos cristãos palestinos. E ficarão chocados ao entrar no Santo Sepulcro e encontrarem policiais israelenses armados.
A Páscoa simboliza libertação dos pecados e da escravidão, mas a esperança de libertação nacional está evaporando e o que os palestinos cristãos sentem cada vez mais é escravidão e humilhação. O silêncio do mundo é chocante e a comunidade internacional parece incapaz de fazer respeitar as Resoluções da ONU.
Faz cinco mil anos que os palestinos vêm construindo e desenvolvendo Jerusalém, sem parar... exceto durante a ocupação. Em vez de virar a chave para as portas do paraíso, a cidade se transformou na chave para guerra e sangue.
Jerusalém, o lugar mais sagrado da terra, é foco de crime e pecado porque um homem está matando, humilhando e tirando do outro dignidade e direito de vida.
Ocupação é um pecado e uma forma de terrorismo. E usar a Torah como escudo para matar, expulsar e remover pessoas de suas terras é um crime contra a humanidade que quem comete deveria ser julgado pela Corte Internacional antes do Julgamento Final.
Há muito tempo o sionista Theodore Herzl disse que ‘se um dia recuperarmos Jerusalém e eu ainda estiver em plena capacidade, meu primeiro ato vai ser de limpá-la de cabo a rabo. Vou remover tudo o que não for israelita e queimar os monumentos.’
Israel tem nos devastado e torturado em muitas guerras. Peço que os cristãos de fora vejam as feridas do povo palestino e que tenham compaixão do nosso holocausto que vêm vendo nas telas.
Protejam-nos e protejam nossos sítios cristãos!
Nosso povo em Gaza é tratado como animal enjaulado. Não tem água, não tem eletricidade, não tem comida, só tem terror e bloqueio... nossas crianças vivem em um estado de trauma e medo constante. Estão doentes de medo, miséria e má nutrição... os hospitais estão privados até dos primeiros socorros necessários e milhares de feridos dos bombardeios e doentes não dispõem do mínimo tratamento adequado; até operações são feitas nos corredores de hospitais incapacitados. A situação é assustadora e triste.
Que a compaixão de Cristo reavive nosso amor por Deus embora este amor esteja nos cuidados intensivos!”
Paro aqui. Tinha pensado em contar como é a Páscoa na Palestina, mas de repente achei indecente discorrer sobre cerimônias que celebram Jesus Cristo quando os cristãos locais, que cuidam do nosso patrimônio religioso com o maior cuidado, destas são privados.
Por isto preferi dar a palavra a este padre que muitos gostariam de calar repetindo a frase que Henrique II pronunciou, em 1170, em referência ao padre Thomas Becket que se rebelou contra sua injusta reforma: “Que alguém nos livre deste padre turbulento!”
Pois, não! A inação assegura que nada mude para melhor e uma das coisas que movem este mundo na direção justa, é este punhado de padres turbulentos que pelo mundo afora seguem ao pé da letra o Homem que 1978 anos atrás ressuscitou em Jerusalém no terceiro dia. Este deve estar chorando ao ver Jerusalém, em vez de redimir-se, aproximar-se cada vez mais do abismo.
Vista de Jerusalém, da janela da igreja Dominus Flevit
Aliás, tirando a mesquita, as igrejas e o sossego de seus recintos, acho Jerusalém uma cidade fria em que a vida só emerge no mercado palestino. Nada a ver com a harmonia do Monte das Oliveiras que nem os soldados israelenses perturbam; onde a paz de Jesus reina sem nenhuma interferência des/humana.


E para não dizer que não falei na Páscoa, para mim, uma das cerimônias mais bonitas em Jerusalém é a do Fogo Santo no Santo Sepulcro (foto acima). O Patriarca da cidade chega, tira a batina cerimonial (é revistado por um rabino que confirma que não carrega nada inflamável) e entra no que foi a gruta que recebeu Jesus após ser crucificado. A partir daí, é Deodoro, patriarca da cidade de 1981 à 2000, que conta como ocorre o milagre anual: Entro no escuro em direção à câmara, me ajoelho, recito as orações ancestrais e espero às vezes alguns minutos, mas normalmente o milagre é imediato. Sai uma luz azulada da pedra em que Jesus foi deitado e esta a envolve de várias cores indescritíveis. Algumas vezes a luz apenas cobre a pedra e outras ilumina o sepulcro inteiro. A luz não queima. Nunca ouvi caso de queimado. Ela é de uma substância diferente da do fogo que conhecemos. De repente a luz sobe e forma uma coluna na qual o fogo adquire uma consistência diferente para que eu acenda as velas. Então saio e transmito o fogo primeiro para o patriarca armênio, depois para o copta e em seguida passo a flama aos peregrinos que estão na igreja e que a vão passando.
Os fiéis crêem no milagre, acendem as velas no fogo santo, põem a mão na chama e não se queimam. A transmissão da flama de uma vela para outra é bonita e emocionante.



FELIZ PÁSCOA!

domingo, 17 de abril de 2011

Vittorio Arrigoni, mais um mártir da causa de Gaza



Esta semana foi marcada no dia 15 por um assassinato político que tem um significado mais dramático do que todos os mortos bombardeados, baionetados, metralhados e outros “ados” nos últimos meses nos países árabes.

O assassinado é o jornalista italiano Vittorio Arrigoni, prezado e respeitado por todos os que conheciam suas qualidades humanas e seu combate incansável pelos Direitos Humanos, mas desconhecido para o mundo até virar cadáver.

Vittorio foi assassinado em Gaza, justamente na terra pela qual combatia através do Movimento Internacional de Solidariedade.

Vittorio tinha 36 anos e desde 2008, quando foi preso por Israel por ter chegado no primeiro barco que tentou quebrar o bloqueio para levar víveres a Gaza, ia e voltava à Faixa onde era querido e altamente considerado por seu trabalho humanitário pacífico junto às ONGs Free Gaza e Solidariedade Internacional.

Vittorio é o primeiro estrangeiro morto em Gaza desde que o Hamas assumiu o controle em 2007. Até a semana passada, Israel era que assassinava jornalistas e militantes - Rachel Corry, James Miller, Raffaele Ciriello e Tom Rundall.

Vittorio foi sequestrado há alguns dias por uma célula extremista para ser negociado contra a libertação de um Salafista, preso pelo Hamas em março. Quando o Hamas foi resgatá-lo no esconderijo doze horas antes de expirar o prazo, encontrou-o enforcado.

Após anos de ocupação territorial, espoliação hídrica, humilhação quotidiana nos check-points na Cisjordânia; bloqueio interminável e injustificável, bombardeios sistemáticos e marginalização do Hamas cuja força política foi se esvaindo com a miséria e as perdas das famílias que o partido não consegue salvar, Israel e os EUA, finalmente, conseguiram fabricar verdadeiros terroristas em Gaza.

É uma péssima notícia para quem busca a paz.

Desde o sequestro do jornalista da BBC Alan Johnson, em 2007, pelos Salafistas, parecia que o Hamas retomara o controle e que a Faixa estava segura (nas horas em que os israelenses não bombardeavam). Mas não. De fato, enquanto a IDF (exército israelense) matava civis e militantes do Hamas, um monstro crescia nas entranhas sombrias de Gaza.

Estes extremistas sim podem ser chamados de terroristas porque têm o terror como regra de combate sem causa. São eles que quebram tréguas e tentam desintegrar a autoridade do Hamas e disseminar o pânico na Faixa.

A mensagem dos Salafistas e seus comparsas que consideram o Hamas moderado foi clara: estamos na Faixa para ficar. Mas será que neste caso foram manipulados? O que realmente ganham com este assassinato?
Vittorio fazia mais por Gaza do que nenhum deles nunca fez e jamais fará. Ele estava por todo lado informando dos horrores para despertar consciências ocidentais e sua sinceridade e entusiasmo, além do conhecimento profundo da Faixa, conquistava adeptos à causa.

Os gazauís ficaram chocados e pedem que uma rua e uma escola sejam batizadas com o nome de Vittorio, que desculpas formais sejam transmitidas aos italianos e à sua família e que lhe seja dada a nacionalidade póstuma palestina.

Os ativistas do Hamas também estão abalados. Alguns gazauís questionam inclusive o porquê da execução de Vittorio ter ocorrido justamente agora, quando outra flotilha está sendo organizada para tentar quebrar o bloqueio e levar víveres, remédios e materiais hospitalares e de construção a Gaza, em maio.
Tawihid wa Jihad, o militante do “Exército Salafista do Islã” cuja liberdade estava sendo negociada, é acusado de atentados em hotéis no Sinai, mas negou responsabilidade na morte de Vittorio.

As teorias conspiratórias de Shin Bet, Mossad, vão ficar para outra hora. Esta, a de agora, é do Vittorio, executado por este corpúsculo que vem gangrenando Gaza e é favorecido por cada bombardeio da IDF, por cada dia a mais de bloqueio que agrava a situação de precariedade e incentiva o caos.

Vittorio era um idealista que escolheu o combate pela causa palestina por convicção ética, por ter uma visão nítida do Bem e do Mal e do que é e não é moral.

Vittorio era uma pessoa rara. Destas que deixam um rastro, uma passagem, e inspiram dezenas, centenas e quem sabe, milhares.
Vivo, ele era extraordinário.
Morto, vai virar um motor de engajamento solidário.

A matéria de hoje é em sua homenagem.


Uma pessoa como ele gostaria que até sua morte servisse para algo, como sua vida levou conforto e solidariedade a um povo marginalizado pela comunidade internacional.

Já serviu, Vittorio.
Para abrir os olhos dos gazauís e para que os holofotes foquem Gaza e mostrem que terrorismo não é uma palavra que possa ser banalizada e usada de maneira errada. Que confundir Resistência com Terrorismo é no mínimo ignorância crassa, para não dizer oportunismo arriscado.

Terrorismo é assassinato premeditado como a campanha israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, violência gratuita para mostrar uma força que no fundo é fraca. Tanto o terrorismo oriundo de um bando de inconsequentes quanto o de um Estado irresponsável.

Resistência é o combate artesanal quotidiano contra um ocupante, um inimigo titânico que esmaga sem piedade.

Vittorio era um resistente impregnado daquela coragem que faz o mundo avançar e sem a qual a vida não representa nada.

Vittorio é morto.
Mas não é tarde para corrigir os erros que culminaram no caixão que a família recebeu na Itália.

A situação da Faixa de Gaza é literalmente insuportável.

Não tem água, não tem comida, não tem remédio, não tem material de construção para levantar as repartições públicas, residências e comércios destruídos pelos bombardeios de 2009 e os demais, constantes, até a semana passada.

A morte de Vittorio deixou a Faixa de luto e desesperançada.
Centenas de famílias saíram às ruas com lágrimas nos olhos em uma procissão fúnebre que o homenageava.
A indignação é geral, palpável.
Todos exigem além da punição dos culpados, segurança para os estrangeiros que entram na Faixa e mudanças políticas e administrativas radicais.

Nem que seja por interesse próprio, Israel tem de interromper o bloqueio e deixar os gazauís respirarem.
Um pouco de humanidade! Por enquanto, um pouquinho já basta.

A humanidade de Agidea Prata é do tamanho da do filho Vittorio.
A mãe, de luto fechado mas aberta às causas válidas, anunciou neste sábado que participará da Flotilha de Libertação de Gaza, em maio.
“Quero ver a Gaza que meu filho amava e pela qual se sacrificou. Quero conhecer as pessoas boas que moram lá e em quem meu filho Vik sempre falava”.

A Flotilha da Liberdade se dirigirá à Faixa em maio, como no ano passado em que no dia 30 Israel atacou os barcos em águas internacionais matando nove pessoas e ferindo 54. Na impunidade.

A Flotilha humanitária deste ano ostentará o nome do livro-símbolo de Vittorio Arrigoni: Stay Human, com o qual acabou de ser batizada.

Obrigada, Vittorio.
Sua vida foi curta, mas exemplar; justa.
Deus o guarde.







GAZA, STAY HUMAN : http://guerrillaradio.iobloggo.com/1853/gaza-stay-human-di-vittorio-arrigoni
Free Gaza Movement: http://www.freegaza.org/

domingo, 10 de abril de 2011

Goldstone diz e desdiz a verdade

No Oriente Médio e na ONU, Israel afastou os revoltados e os repressores dos outros países das manchetes dos jornais com o primeiro ministro Byniamin Netanyahu reclamando a anulação do Relatório Goldstone sobre a operação de seu exército (IDF- (Israeli Defense Forces) em 2009, em Gaza, no que foi chamado de Operation Cast Lead.

Esta Operação militar resultou na morte de 13 israelenses (11 soldados - 6 por fogo amigo e dois civis), de 16 para-médicos (e 22 feridos), de 1385 palestinos (758 civis, dos quais 117 mulheres e 318 menores), em 5.300 palestinos feridos (350, graves, muitos deles queimados por bombas de fósforo branco), na destruição de mais de 3.500 casas, 18 escolas, 20 mesquitas, 50km de estrada, dezenas de prédios públicos e comerciais, e de grande parte da infra-estrutura elétrica, hídrica e de esgoto da Faixa), no aumento de casos de leucemia, de crianças nascidas (60%) com defeitos físicos – sintomas de uso de munições de urânio empobrecido, do tipo usado pelos EUA, ou seja, contendo plutônio por vir de usinas de reprocessamento nuclear em vez de enriquecimento, menos radioativas – a particularidade desta munição é que o urânio se pulveriza durante a explosão, formando nuvens de partículas radioativas capazes de contaminar extensas áreas. Israel negou ter usado tanto o fósforo branco quanto a munição de urânio empobrecido, embora médicos noruegueses tenham encontrado no solo de Gaza grande quantidade de resíduos).

A reivindicação de Netanyahu seguiu o artigo do juiz sul-africano Richard Goldstone, publicado em uma tribuna aberta no jornal Washington Post, em que manifestou arrependimento pelo relatório que fez para a ONU, no qual acusava Israel e o Hamas de crimes de guerra durante o bombardeio e a invasão da Faixa de Gaza em 2009.

Vale lembrar que na época em que o Relatório foi publicado, Richard Goldstone foi pulverizado pelos simpatizantes, internos e externos, de Israel usar de força máxima. Um dos insultos que se ouvia era o de Goldstone ser um exemplo do self-hating judeu, que na época foi proibido inclusive de participar da Bar Mitzvah (corresponde à Primeira Comunhão cristã) do neto e foi rejeitado por sua comunidade.

Os meses de ostracismo o levaram a rever sua posição e o mesmo homem abominável é hoje aclamado pelas mesmas vozes que o vilipendiaram. Netanyahu chegou ao extremo de bradar que a retratação do novo aliado confirma que a IDF é o Exército mais moral do mundo... Os objetores de consciência (Shministim) e os reservistas que o digam! no Breaking the Silence...

Em minha concepção da vida e dos direitos humanos, Guerra em si já em um crime contra a humanidade.

Em toda guerra se comete crime contra a humanidade, do Iraque e Afeganistão ao Líbano e a Faixa de Gaza, o princípio não diverge em nada: humilhar, matar, destruir e espoliar o mais fraco.

Os soldados são peões imberbes alimentados pelo ódio e despreparados psicologicamente para a realidade do combate. Fazem o trabalho, e o medo e o aditivo ódio chacoalhados durante o ataque viram um coquetel sem componente moral; e é aí que acontece o pior.

Em Israel, a opinião pública é como a estadunidense, julga o resultado de uma guerra iniciada pelas autoridades que os governam com o critério simplista de quantos soldados nacionais voltam para casa.

Partindo daí, a estratégia militar de ambos também é básica, ou seja, como infligir o máximo de perdas materiais e humanas reduzindo as próprias perdas ao máximo, de preferência, a nenhuma e a nada. A não ser a munição, já que a indústria de armamento tem de ser alimentada.

Neste prisma, a Operação CL em Gaza, embora Israel tenha fortificado o Hamas (o ataque era para dizimá-lo), foi um sucesso para a opinião pública majoritária.

Por outro lado, em toda guerra, qualquer que sejam os lados, há o fator da desumanização do adversário, sem o qual, pessoas normais seriam incapazes de assassinar como se não fosse um crime capital. No caso de Israel o caso se agrava. Os recrutas são intoxicados com discursos de que os árabes em geral e os palestinos em particular não passam de objetos animados. Portanto...

Voltando a Goldstone, como prêmio pela retratação, acabou de ser convidado oficialmente para uma visita a Israel. Convite que aceitou sem questionar o fato do mesmo ter vindo do Ministro do Interior Eli Yishai (do partido ultra-ortodoxo Shas), um dos dois maiores racistas do governo atual.

E voltando a Netanyahu, ele se esqueceu que o trabalho da equipe da ONU em 2009 foi consciencioso e imparcial, ao ponto de ser chefiado por um judeu sionista confesso, justamente para evitar dúvidas sobre o resultado. A Comissão estava tão preocupada em não pisar nos calos de Israel que usou critérios iguais para julgar as ações dos agressores – umas das cinco Forças Armadas mais potentes do planeta, com uma das tecnologia mais sofisticadas – e dos agredidos – um “exército” irregular mal-equipado que detona uns foguetes ultrapassados que em todos estes anos fizeram vinte mortos, o que já é lamentável, é claro; tanto quanto o que atingiu o ônibus ferindo o motorista e o jovem israelense nesta semana. E os 19 palestinos que já sucumbiram ao bombardeio de represália da IDF até o sábado? E os numerosos feridos? Só aumentam as estatísticas das centenas de vidas perdidas em Gaza no bloqueio ilegal e desumano e neste desequilíbrio bélico surreal.

No artigo do dia primeiro de abril, Goldstone aproveitou para enaltecer os esforços de Israel de investigar reclamações, para criticar a passividade do Hamas e para induzir o leitor a pensar que as investigações da ONU já foram concluídas e que Israel foi absolvido dos crimes imputados.

Entretanto, sua retratação pública é baseada em outro recente relatório da ONU em que o redator admite incapacidade de determinar a qualidade das investigações de Israel e o resultado atual destas, e por isto o dossiê ainda não foi fechado.

Apesar da pressão de Netanyahu junto à ONU e seus aliados, a anulação do relatório Goldstone seria totalmente ilógica e segundo a ONG local de Direitos Humanos B’Tselem, sem base. Isto porque foram justamente as conclusões inconclusivas deste que permitiram a continuidade nas investigações e as descobertas que o levaram a reconsiderar sua posição na sexta-feira passada.

Aliás, Jessica Montell, presidente da B’Tselem usou a mesma tribuna do Washington Post para pôr os pingos nos iis no que Goldstone re-trata.

O que se sabe realmente da situação atual das tais investigações locais de crimes dos quais Israel foi acusado são os fatos que seguem abaixo.

A Justiça abriu 52 processos; dois deles resultaram em vereditos de culpabilidade e não há informação concreta sobre quantos casos foram fechados e quantos finalizados. Dois anos e meio após a Operação Cast Lead, não se conhece ainda os resultados. Goldstone se refere a 400 investigações que são de fato investigações operacionais feitas pelos militares e não são efetivas no processo jurídico. E as investigações correntes focalizam em casos específicos de soldados que cometeram infrações ostensivas (apenas dois foram condenados: um por roubo e outro pelo assassinato de uma família, "por engano"), ignorando totalmente a política determinada pelos superiores hierárquicos que determinaram os alvos, estabeleceram as regras de combate e os meios militares, que são, no fundo, os pontos mais controvertidos do ataque. É verdade que o relatório de Goldstone condenou Israel do pior dos crimes, contra a humanidade, apenas com bases fatuais, mas fez isto porque Israel se recusou a cooperar com os enviados da ONU e não ofereceu provas do contrário. O que então ficou claro.

As ONGs israelenses de Direitos Humanos continuam sem isentar seu país de má-conduta durante a Operação Cast Lead e acham que a única maneira de descobrir a verdade é através de uma comissão de investigação independente que averígue também as questões políticas. Que no final das contas, determinaram o ataque e pesaram na condenação da ONU e da comunidade internacional.

Vou concluir com as palavras do jornalista israelense Uri Avnery que é um patriota que sabe das coisas e tem ética: 'Considerando que toda estratégia militar do Hamas é de aterrorizar comunidades israelenses fronteiriças a fim de persuadir Israel a terminar a ocupação, e no caso de Gaza, o bloqueio, a indignação de Goldstone parece um pouco surpreendente. No final das contas, Goldstone preparou o terreno para mais uma Operação Cast Lead que será muito pior do que a primeira. Espero, porém, que agora ele possa voltar a rezar na sinagoga que quiser.’


Relatório Goldstone, ONU 25/09/2009: http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/12session/A-HRC-12-48.pdf Artigo de

Richard Goldstone, WashingtonPost 01/04/2011: http://www.washingtonpost.com/opinions/reconsidering-the-goldstone-report-on-israel-and-war-crimes/2011/04/01/AFg111JC_story.html

Resposta de Jessica Montell, WP 05/04/2011: http://www.washingtonpost.com/opinions/beyond-goldstone-a-truer-discussion-about-israel-hamas-and-the-gaza-conflict/2011/04/05/AFsP7PlC_story.html

Testemunhos dos atos da IDF em Breaking the Silence: http://www.shovrimshtika.org/index_e.asp

Objetores de consciência - Shministim: http://youtu.be/pNjggLhQo6w

Lowkey: http://youtu.be/4p1CJwTNC9M

Global BDS Movement: http://www.bdsmovement.net/ ; http://www.bigcampaign.org/

Ações do BDS Movement - NYC: http://youtu.be/AZulhUV4rQM ; Chicago: http://youtu.be/A-ktPnmhfFA ; Bruxelas: http://youtu.be/QDDCcIt9Zj8 ; Londres: http://youtu.be/PyAX9gkPr6Y ; http://youtu.be/iXy6Y-dnrqI

domingo, 3 de abril de 2011

Nos bastidores dos "resgates" internacionais


Vários seguidores deste blog me perguntam sobre o que é mesmo o meu trabalho. É repórter de guerra? Não. O termo exato é analista de conflito, acho.

O repórter "cobre" a atualidade, chega com bagagem leve, fica, olha e relata o que se passa. O analista trata do factual na atemporalidade, carrega bagagem histórica, tem contatos chave, procura o que as imagens não mostram, tenta explicar os porquês e compartilhar cultura geral. Transpondo livremente à linguagem médica, o primeiro é um clínico geral de primeira classe e o segundo tem de ser um House.

O colunista hidro/geopolítico precisa de quatro ferramentas que as intempéries do tempo aprimoram para que alicerce sua análise: afinidade simbiótica com a História (local/geral/antiga/contemporânea), experiência de terreno, fontes de informação sólidas e ampla bagagem literária e cultural. Com o passar dos anos, décadas, acúmulo de contatos e mapeamento histórico/geográfico mental solidificado, um pulo ou uns skypes com pessoas certas bastam para enxergar o que a maioria não detecta com imagens.

Por exemplo, quando Barak Obama fala em retirar seus batalhões de soldados do Iraque e esquece-se de dizer que nestes não inclui os mercenários; que fala em diminuir ao mínimo a presença estadunidense lá sem mostrar o tamanho do seu complexo “diplomático” em Bagdá (maior do que o Estado do Vaticano) construído no lugar de uma área de lazer às margens do rio Tigre (para controlar a escassa água?), o número e a solidez de suas bases militares (mais de cem, na época áurea, algumas já fechadas, mas não reaproveitadas pelos locais), e de seu “apoio” ao presidente kurdo Jalal Talabani (eleito em 2003 e reconduzido pelo Parlamento em 2010) – por coincidência, originário da região iraquiana com mais potencial em gás (para controlar o petróleo?).

No frigir dos ovos, quase todas as intervenções visam os mesmos interesses, o do ouro azul e do ouro negro.

Como na Líbia, em que o Qatar, após aderir às Forças da OTAN, foi o segundo país a reconhecer o governo Benghazi, no dia seguinte ao anúncio deste de um contrato com Qatar Petroleum para negociar o óleo dos poços que os insurgentes conquistaram.

Um imbróglio político-econômico complicado. Primeiro porque o governo de Kadhafi ainda é o reconhecido pela ONU. Segundo, o Conselho não tem ministro da economia e nem banco nacional que permita transações comerciais com países estrangeiros. Quem comprar este petróleo corre risco de abastecimento, mas também jurídico, caso Trípoli continue dando as cartas.

A Líbia, antes da crise, produzia 1.6 milhões barris diários (2% do mundo). O comércio do petróleo é vital para o funcionamento do país (95% das exportações), inclusive para os salários de milhares de famílias, e os rebeldes não têm autoridade e nem meios de comercializar os 130 mil barris diários, que nas circunstâncias atuais podem chegar a 300, no máximo.

A revolta patriótica e o resgate humanitário acabam escorregando no petróleo, que, no final das contas, é a fonte da renda que alimenta tanto Trípoli quanto Benghazi, e o motor dos Aliados.

Aliás, um dos primeiros atos dos EUA contra Kadhafi foi ordenar o bloqueio do dinheiro e impedir a Agoco, subsidiária da NOC, a Petrobrás local, de negociar o petróleo nacional. O direito foi transferido para os insurecionados.

Mesmo não gostando de Muammar Kadhafi, é difícil aplaudir o sequestro de mais um país por razões ditas nobres, mas no mínimo, contraditórias.


Alguns leitores pedem também conselho sobre a informação internacional televisiva mais fiável. Sempre respondo BBC e Al Jazeera. Se tivesse televisor e parasse em casa, interessada em algo mais do em uma suposta autarquia ocidental me ligaria na Al Jazeera (versão inglesa) e acompanharia o James Bays, no terreno, e o Riz Khan, nos debates. Se quisesse matéria de fundo, assistiria Witness, Inside Story, 101 East, e em um estilo mais lúdico, o Rageh Omar report.

E abrindo parênteses em conflitos e guerras, no dia em que a televisão, qualquer que seja o canal, deixar de lado a censura de imagens e mostrar os crimes e a selvageria dos atos dos “salvadores da pátria”, até Hillary Clinton pensará duas vezes antes de aprovar a venda de armas para alimentar guerras e a formação militar de seus aliados acidentais.

Para concluir a resposta sobre o meu papel, ele é neutro, como deveria ser o trabalho jornalístico em geral, mas não o meu espaço. Como nos jornais. Abordo todos os lados, mas dou mais espaço ao oprimido do que ao opressor, ao invadido do que ao invasor, à vítima do que ao carrasco. Ou seja, tento informar com a responsabilidade de dar voz a quem tem os lábios celados - outros fazem o contrário. Para mim é uma questão de ética e da busca da verdade (cuja total objetividade sei impossível, já que emerge, em mim e nos demais, dos valores próprios em que é calcada) fundamentada em fatos.

Sem contar que a história dos derrotados sempre me interessou tanto ou mais do que a dos vitoriosos à qual os jornais e até os manuais didáticos dão quase todo espaço. Talvez por um dos meus livros de cabeceira ser Guerra e Paz do grande humanista da racionalidade, Lev Nikolaievitch Tolstoi. Não foi com o mestre russo que aprendi que toda história tem duas faces, mas foi com ele que entendi como mostrá-las.

Por isto, e por ser analista, blogueira e não repórter comprometida com linha editorial patronal, não posso enaltecer pessoas que cobiçam o alheio e usam “bombardear” e “proteger” na mesma frase.

É também por isto que tenho de informar que no dia 30 de março, Dia da Terra na Palestina, comitês locais do Global BDS Movement organizaram mais de trinta manifestações de Melbourne, Londres a Nova Iorque.

Mas paradoxalmente, enquanto o movimento de boicote aos produtos israelenses cresce no mundo que se preocupa com a escalada da ocupação colonial e militar da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, o Brasil, que reconheceu formalmente o Estado da Palestina no fim do ano passado assinou, em uma crise de incoerência moral e diplomática, segundo a ONG Stop the Wall, um contrato militar enorme com Israel. Que por sinal está comprando indústrias brasileiras neste ramo, despejando seus produtos boicotados na Europa e nos EUA no mercado brasileiro e montando fábricas. Certamente para exportar com Made in Brazil na embalagem, comercializar tudo com facilidade e como prêmio, levar todas as vantagens do nosso prestígio internacional.




Relatório completo, em português, da Stop the Wall sobre os negócios do Brasil com Israel e de Israel no Brasil: http://stopthewall.org/enginefileuploads/content/rela__es_militares_entre_brasil_e_israel.pdf.

Global BDS Movement: http://www.bdsmovement.net/ http://www.bdsmovement.net/activecamps/consumer-boycott

Stop the Wall: http://www.stopthewall.org/

BDS Movement em ação: http://www.youtube.com/watch?v=khp46gFaUsE