Vários seguidores deste blog me perguntam sobre o que é mesmo o meu trabalho. É repórter de guerra? Não. O termo exato é analista de conflito, acho.
O repórter "cobre" a atualidade, chega com bagagem leve, fica, olha e relata o que se passa. O analista trata do factual na atemporalidade, carrega bagagem histórica, tem contatos chave, procura o que as imagens não mostram, tenta explicar os porquês e compartilhar cultura geral. Transpondo livremente à linguagem médica, o primeiro é um clínico geral de primeira classe e o segundo tem de ser um House.
O colunista hidro/geopolítico precisa de quatro ferramentas que as intempéries do tempo aprimoram para que alicerce sua análise: afinidade simbiótica com a História (local/geral/antiga/contemporânea), experiência de terreno, fontes de informação sólidas e ampla bagagem literária e cultural. Com o passar dos anos, décadas, acúmulo de contatos e mapeamento histórico/geográfico mental solidificado, um pulo ou uns skypes com pessoas certas bastam para enxergar o que a maioria não detecta com imagens.
Por exemplo, quando Barak Obama fala em retirar seus batalhões de soldados do Iraque e esquece-se de dizer que nestes não inclui os mercenários; que fala em diminuir ao mínimo a presença estadunidense lá sem mostrar o tamanho do seu complexo “diplomático” em Bagdá (maior do que o Estado do Vaticano) construído no lugar de uma área de lazer às margens do rio Tigre (para controlar a escassa água?), o número e a solidez de suas bases militares (mais de cem, na época áurea, algumas já fechadas, mas não reaproveitadas pelos locais), e de seu “apoio” ao presidente kurdo Jalal Talabani (eleito em 2003 e reconduzido pelo Parlamento em 2010) – por coincidência, originário da região iraquiana com mais potencial em gás (para controlar o petróleo?).
No frigir dos ovos, quase todas as intervenções visam os mesmos interesses, o do ouro azul e do ouro negro.
Como na Líbia, em que o Qatar, após aderir às Forças da OTAN, foi o segundo país a reconhecer o governo Benghazi, no dia seguinte ao anúncio deste de um contrato com Qatar Petroleum para negociar o óleo dos poços que os insurgentes conquistaram.
Um imbróglio político-econômico complicado. Primeiro porque o governo de Kadhafi ainda é o reconhecido pela ONU. Segundo, o Conselho não tem ministro da economia e nem banco nacional que permita transações comerciais com países estrangeiros. Quem comprar este petróleo corre risco de abastecimento, mas também jurídico, caso Trípoli continue dando as cartas.
A Líbia, antes da crise, produzia 1.6 milhões barris diários (2% do mundo). O comércio do petróleo é vital para o funcionamento do país (95% das exportações), inclusive para os salários de milhares de famílias, e os rebeldes não têm autoridade e nem meios de comercializar os 130 mil barris diários, que nas circunstâncias atuais podem chegar a 300, no máximo.
A revolta patriótica e o resgate humanitário acabam escorregando no petróleo, que, no final das contas, é a fonte da renda que alimenta tanto Trípoli quanto Benghazi, e o motor dos Aliados.
Aliás, um dos primeiros atos dos EUA contra Kadhafi foi ordenar o bloqueio do dinheiro e impedir a Agoco, subsidiária da NOC, a Petrobrás local, de negociar o petróleo nacional. O direito foi transferido para os insurecionados.
Mesmo não gostando de Muammar Kadhafi, é difícil aplaudir o sequestro de mais um país por razões ditas nobres, mas no mínimo, contraditórias.
Alguns leitores pedem também conselho sobre a informação internacional televisiva mais fiável. Sempre respondo BBC e Al Jazeera. Se tivesse televisor e parasse em casa, interessada em algo mais do em uma suposta autarquia ocidental me ligaria na Al Jazeera (versão inglesa) e acompanharia o James Bays, no terreno, e o Riz Khan, nos debates. Se quisesse matéria de fundo, assistiria Witness, Inside Story, 101 East, e em um estilo mais lúdico, o Rageh Omar report.
E abrindo parênteses em conflitos e guerras, no dia em que a televisão, qualquer que seja o canal, deixar de lado a censura de imagens e mostrar os crimes e a selvageria dos atos dos “salvadores da pátria”, até Hillary Clinton pensará duas vezes antes de aprovar a venda de armas para alimentar guerras e a formação militar de seus aliados acidentais.
Para concluir a resposta sobre o meu papel, ele é neutro, como deveria ser o trabalho jornalístico em geral, mas não o meu espaço. Como nos jornais. Abordo todos os lados, mas dou mais espaço ao oprimido do que ao opressor, ao invadido do que ao invasor, à vítima do que ao carrasco. Ou seja, tento informar com a responsabilidade de dar voz a quem tem os lábios celados - outros fazem o contrário. Para mim é uma questão de ética e da busca da verdade (cuja total objetividade sei impossível, já que emerge, em mim e nos demais, dos valores próprios em que é calcada) fundamentada em fatos.
Sem contar que a história dos derrotados sempre me interessou tanto ou mais do que a dos vitoriosos à qual os jornais e até os manuais didáticos dão quase todo espaço. Talvez por um dos meus livros de cabeceira ser Guerra e Paz do grande humanista da racionalidade, Lev Nikolaievitch Tolstoi. Não foi com o mestre russo que aprendi que toda história tem duas faces, mas foi com ele que entendi como mostrá-las.
Por isto, e por ser analista, blogueira e não repórter comprometida com linha editorial patronal, não posso enaltecer pessoas que cobiçam o alheio e usam “bombardear” e “proteger” na mesma frase.
É também por isto que tenho de informar que no dia 30 de março, Dia da Terra na Palestina, comitês locais do Global BDS Movement organizaram mais de trinta manifestações de Melbourne, Londres a Nova Iorque.
Mas paradoxalmente, enquanto o movimento de boicote aos produtos israelenses cresce no mundo que se preocupa com a escalada da ocupação colonial e militar da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, o Brasil, que reconheceu formalmente o Estado da Palestina no fim do ano passado assinou, em uma crise de incoerência moral e diplomática, segundo a ONG Stop the Wall, um contrato militar enorme com Israel. Que por sinal está comprando indústrias brasileiras neste ramo, despejando seus produtos boicotados na Europa e nos EUA no mercado brasileiro e montando fábricas. Certamente para exportar com Made in Brazil na embalagem, comercializar tudo com facilidade e como prêmio, levar todas as vantagens do nosso prestígio internacional.
Relatório completo, em português, da Stop the Wall sobre os negócios do Brasil com Israel e de Israel no Brasil: http://stopthewall.org/enginefileuploads/content/rela__es_militares_entre_brasil_e_israel.pdf.
Global BDS Movement: http://www.bdsmovement.net/ http://www.bdsmovement.net/activecamps/consumer-boycott
Stop the Wall: http://www.stopthewall.org/
BDS Movement em ação: http://www.youtube.com/watch?v=khp46gFaUsE
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