Faz alguns meses que não vou à África Negra, mas a distância física não me fez esquecer o Okavango, o rio que jamais encontra o mar e que paradoxalmente foi protegido por uma guerra civil interminável em Angola, onde nasce perto de Nova Lisboa e atravessa correndo centenas de quilômetros de terreno minado para regar uma faixa da Namíbia até chegar ao Botsuana e se jogar em um delta raro, cujo ecossistema foi pouquissimamente tocado.
Vistos do alto, os igarapés trançados com ilhotas entremeadas parecem uma figueira carregada de frutos de verde a maduro de tamanhos variados. Por baixo também a beleza é de tirar o fôlego até de um citadino inveterado para quem uma arrebatadora paisagem biodiversa não representa nada.
O Okavango desemboca no deserto de Kalahari, que antes de absorver-lhe a água o deixa irrigar quinze mil metros quadrados de seu solo árido. É espetacular. Mas como valorizo mais a vida que a natureza alimenta e cria em vez do espetáculo, embora dez por cento do PIB do Botsuana venha desta atração turística* , o maior valor dessas águas é o de ser sua única fonte hídrica, assim como da Namíbia.
Politicamente, estes dois países são relativamente estáveis, mas a miséria de ambos é altíssima, além de um nível quase pandêmico de AIDS. A Namíbia tem 15% da população infectada e no Botsuana a média de vida nos últimos anos baixou de 65 a 35 anos.
Faz tempo que o Botsuana vem se desertificando. As chuvas esparsas que caem durante o ano só conseguem regar 5% do território e 75% da população dependem de aquíferos subterrâneos acanhados. Mas graças à sua estabilidade política regional rara, beneficia de fundos internacionais assíduos, com a condição sine qua non de preservar o ecossistema da foz do Okavango.
Sem estes incentivos o Botsuana já teria danificado o sítio tão defendido como a Namíbia, que com 50% da população na miséria, trabalho infantil banalizado e recordista mundial de tráfico de crianças, só pensa em construir açudes que melhorem suas condições de vida.
Apesar disto, logo após a independência da África do Sul em 1990, a Namíbia criou a OKAKOM (1), uma comissão permanente conjunta para a água (com o Botsuana para tratar da administração bilateral do rio. Quatro anos mais tarde a Angola, mãe da nascente e que detém 80% da água, passou a integrá-la.
A comissão tripartite gerencia a crescente demanda dos benefícios da bacia e toca projetos sustentáveis. Ela funciona até bem apesar dos bate-bocas esporádicos, e entre os dois primeiros, da disputa da ilha Kasikili/Sedudu (que quer mesmo é autonomia).
É aí, no apaziguamento e na busca de soluções viáveis, que entra a Cruz Verde Internacional(2), uma ONG presidida por Mikhail Gorbatchev desde 1993. Pouco conhecida, mas ativa na busca de soluções humanistas para conflitos potenciais ou declarados que envolvem ecologia e no “tratamento” do ecossistema planetário.
Este rio quase prístino que corre por um terreno extremamente subdesenvolvido e árido é um exemplo típico da escolha difícil que os países africanos têm de fazer entre desenvolvimento e preservação de sua biodiversidade.
A Cruz Verde nasceu da urgência ocidental de salvar o que for solvável, já que o patrimônio ecológico “excedível” dos europeus e dos norte-americanos foi dilapidado no processo de desenvolvimento em uma época em que Ecologia era uma palavra que só existia no dicionário.
O BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China), elite reduzida das potências emergentes da qual o nosso faz parte, abusa de água e vem mostrando as garras na corrida desenfreada para alcançá-los e ultrapassá-los. Com armas mais ou menos morais, conforme a letra e o caso.
Do outro lado os países atolados no subdesenvolvimento se encontram em um impasse complicado. Proteger a natureza ou explorá-la?
Outros países têm clima desigual, recursos limitados, mas são banhados por rios que podem fornecer energia e irrigar culturas agrícolas, como é o caso dos membros da bacia do Nilo. Mas para isto precisam de barragens, hidrelétricas, irrigação, e na maioria das vezes o desenvolvimento que a população espera chega a um custo mais alto do que pode pagar.
No último vagão estão os desprovidos de riquezas naturais capitalizáveis, maltratados por uma seca interminável, com a população que morre jovem mas não para de aumentar, e que para sobreviver com fundos internacionais assinam tratados com órgãos como o Ramsar(3) – convenção que controla as terras úmidas do planeta desde 1971, com 160 países membros, 1899 sítios designados que cobrem uma área de 186 milhões 549 mil 794 hectares. Protege o planeta, mas de certa forma estagna nações como estas da África Austral.
Outro dia um amigo insistiu comigo que o patrimônio ecológico universal tem de ser protegido a qualquer preço. Eu também acho... quando estou em cidades em que abro a torneira e sai água potável e em países que beneficiam daquela chuvinha chata, mas que o agricultor agradece porque é a que realmente irriga o solo e garante uma colheita farta. Porém, quando vejo terras que o sol racha todos os dias de manhã e de tarde queimando a vida de homens, mulheres e crianças que definham por falta de água, perco minhas certezas ocidentais bem alimentadas e hidratadas à vontade, com água potável.
Parafraseando livremente o escultor Alberto Giacometti, entre salvar um homem e uma árvore, acho que salvaria o meu semelhante. Digo isto sem saber muito bem onde, em certos casos, está a moral. O que sei é que a Cruz Verde e os demais organismos internacionais têm de encontrar um equilíbrio entre o tudo ou nada que permita a estes países um desenvolvimento sustentável que os salve.
Por enquanto, por onde ando, só vejo um caminho imediato viável. O da cooperação em forma do sistema de troca que levou o Homo de Habilis, a Erectus a Sapiens. Eu não tenho frutas exóticas, matas, animais, acabei com a minha biodiversidade, mas tenho água ou a tecnologia de dessalinizá-la e saneá-la. Você me dá o que você tem e eu lhe dou água potável.
A equação é elementar.
O Brasil é privilegiado pela natureza e por sua maior riqueza – a herança tupiniquim da cordialidade e de outras qualidades humanas que valem à nação um capital de simpatia sem rival. O Pré-sal perto desta dádiva não é nada.
Sabe-se de projetos que o governo e ONGs nacionais vêm desenvolvendo no sertão há alguns anos. Esta tecnologia poderia ser exportada, a preço abordável, com a mensagem implícita que o Brasil quer chegar ao topo da escada sem esmagar ninguém na subida dos degraus.
Doze por cento da água do planeta circulam no nosso país. Além de protegê-la, podemos ajudar os que estão em falta sem perder nada e ainda obtendo algo. Assim tomaremos a frente do BRIC, para começar, no plano moral.
Os EUA já pagaram e vão pagar, até quando não se sabe, o preço de uma hegemonia adquirida com exploração e inimizade. A China, que sem o Tibete – dos “mil montes e dez mil fontes” – fica acuada, se exaure e para, está seguindo seus passos.
O Brasil tem outra história, uma índole solidária e recursos suficientes para manter a alma intacta. Com o reconhecimento do Estado Palestino já deu uma lição de lucidez e humanidade. Não há porquê manchá-la.
Ramsar
Biodiversidade
Okavango
1. OKAKOM http://www.okacom.org/
2. Cruz Verde http://www.gci.ch/3. Ramsar http://www.ramsar.org/cda/es/ramsar-ramsar-movie/main/ramsar
GCI Brasil: http://www.greencrossbrasil.org.br/
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