domingo, 5 de dezembro de 2010

Desenvolvimento é compatível com biodiversidade?

Faz alguns meses que não vou à África Negra, mas a distância física não me fez esquecer o Okavango, o rio que jamais encontra o mar e que paradoxalmente foi protegido por uma guerra civil interminável em Angola, onde nasce perto de Nova Lisboa e atravessa correndo centenas de quilômetros de terreno minado para regar uma faixa da Namíbia até chegar ao Botsuana e se jogar em um delta raro, cujo ecossistema foi pouquissimamente tocado.
Vistos do alto, os igarapés trançados com ilhotas entremeadas parecem uma figueira carregada de frutos de verde a maduro de tamanhos variados. Por baixo também a beleza é de tirar o fôlego até de um citadino inveterado para quem uma arrebatadora paisagem biodiversa não representa nada.
O Okavango desemboca no deserto de Kalahari, que antes de absorver-lhe a água o deixa irrigar quinze mil metros quadrados de seu solo árido. É espetacular. Mas como valorizo mais a vida que a natureza alimenta e cria em vez do espetáculo, embora dez por cento do PIB do Botsuana venha desta atração turística* , o maior valor dessas águas é o de ser sua única fonte hídrica, assim como da Namíbia.
Politicamente, estes dois países são relativamente estáveis, mas a miséria de ambos é altíssima, além de um nível quase pandêmico de AIDS. A Namíbia tem 15% da população infectada e no Botsuana a média de vida nos últimos anos baixou de 65 a 35 anos.
Faz tempo que o Botsuana vem se desertificando. As chuvas esparsas que caem durante o ano só conseguem regar 5% do território e 75% da população dependem de aquíferos subterrâneos acanhados. Mas graças à sua estabilidade política regional rara, beneficia de fundos internacionais assíduos, com a condição sine qua non de preservar o ecossistema da foz do Okavango.
Sem estes incentivos o Botsuana já teria danificado o sítio tão defendido como a Namíbia, que com 50% da população na miséria, trabalho infantil banalizado e recordista mundial de tráfico de crianças, só pensa em construir açudes que melhorem suas condições de vida.
Apesar disto, logo após a independência da África do Sul em 1990, a Namíbia criou a OKAKOM (1), uma comissão permanente conjunta para a água (com o Botsuana para tratar da administração bilateral do rio. Quatro anos mais tarde a Angola, mãe da nascente e que detém 80% da água, passou a integrá-la.
A comissão tripartite gerencia a crescente demanda dos benefícios da bacia e toca projetos sustentáveis. Ela funciona até bem apesar dos bate-bocas esporádicos, e entre os dois primeiros, da disputa da ilha Kasikili/Sedudu (que quer mesmo é autonomia).
É aí, no apaziguamento e na busca de soluções viáveis, que entra a Cruz Verde Internacional(2), uma ONG presidida por Mikhail Gorbatchev desde 1993. Pouco conhecida, mas ativa na busca de soluções humanistas para conflitos potenciais ou declarados que envolvem ecologia e no “tratamento” do ecossistema planetário.
Este rio quase prístino que corre por um terreno extremamente subdesenvolvido e árido é um exemplo típico da escolha difícil que os países africanos têm de fazer entre desenvolvimento e preservação de sua biodiversidade.
A Cruz Verde nasceu da urgência ocidental de salvar o que for solvável, já que o patrimônio ecológico “excedível” dos europeus e dos norte-americanos foi dilapidado no processo de desenvolvimento em uma época em que Ecologia era uma palavra que só existia no dicionário.
O BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China), elite reduzida das potências emergentes da qual o nosso faz parte, abusa de água e vem mostrando as garras na corrida desenfreada para alcançá-los e ultrapassá-los. Com armas mais ou menos morais, conforme a letra e o caso.
Do outro lado os países atolados no subdesenvolvimento se encontram em um impasse complicado. Proteger a natureza ou explorá-la?

Alguns têm meios de não depredá-la, como é o caso de Angola com seus recursos naturais, suas minas de diamante e o petróleo que jorra e parece não acabar. Porém, na África a riqueza natural serve mais a senhores de guerra e a quem está nas rédeas do Estado e seus agregados do que ao crescimento nacional. (Talvez alguém saiba como sair deste círculo vicioso. Eu não sei de nada.)
Outros países têm clima desigual, recursos limitados, mas são banhados por rios que podem fornecer energia e irrigar culturas agrícolas, como é o caso dos membros da bacia do Nilo. Mas para isto precisam de barragens, hidrelétricas, irrigação, e na maioria das vezes o desenvolvimento que a população espera chega a um custo mais alto do que pode pagar.
No último vagão estão os desprovidos de riquezas naturais capitalizáveis, maltratados por uma seca interminável, com a população que morre jovem mas não para de aumentar, e que para sobreviver com fundos internacionais assinam tratados com órgãos como o Ramsar(3) – convenção que controla as terras úmidas do planeta desde 1971, com 160 países membros, 1899 sítios designados que cobrem uma área de 186 milhões 549 mil 794 hectares. Protege o planeta, mas de certa forma estagna nações como estas da África Austral.
Outro dia um amigo insistiu comigo que o patrimônio ecológico universal tem de ser protegido a qualquer preço. Eu também acho... quando estou em cidades em que abro a torneira e sai água potável e em países que beneficiam daquela chuvinha chata, mas que o agricultor agradece porque é a que realmente irriga o solo e garante uma colheita farta. Porém, quando vejo terras que o sol racha todos os dias de manhã e de tarde queimando a vida de homens, mulheres e crianças que definham por falta de água, perco minhas certezas ocidentais bem alimentadas e hidratadas à vontade, com água potável.
Parafraseando livremente o escultor Alberto Giacometti, entre salvar um homem e uma árvore, acho que salvaria o meu semelhante. Digo isto sem saber muito bem onde, em certos casos, está a moral. O que sei é que a Cruz Verde e os demais organismos internacionais têm de encontrar um equilíbrio entre o tudo ou nada que permita a estes países um desenvolvimento sustentável que os salve.
Por enquanto, por onde ando, só vejo um caminho imediato viável. O da cooperação em forma do sistema de troca que levou o Homo de Habilis, a Erectus a Sapiens. Eu não tenho frutas exóticas, matas, animais, acabei com a minha biodiversidade, mas tenho água ou a tecnologia de dessalinizá-la e saneá-la. Você me dá o que você tem e eu lhe dou água potável.
A equação é elementar.
O Brasil é privilegiado pela natureza e por sua maior riqueza – a herança tupiniquim da cordialidade e de outras qualidades humanas que valem à nação um capital de simpatia sem rival. O Pré-sal perto desta dádiva não é nada.
Sabe-se de projetos que o governo e ONGs nacionais vêm desenvolvendo no sertão há alguns anos. Esta tecnologia poderia ser exportada, a preço abordável, com a mensagem implícita que o Brasil quer chegar ao topo da escada sem esmagar ninguém na subida dos degraus.
Doze por cento da água do planeta circulam no nosso país. Além de protegê-la, podemos ajudar os que estão em falta sem perder nada e ainda obtendo algo. Assim tomaremos a frente do BRIC, para começar, no plano moral.
Os EUA já pagaram e vão pagar, até quando não se sabe, o preço de uma hegemonia adquirida com exploração e inimizade. A China, que sem o Tibete – dos “mil montes e dez mil fontes” – fica acuada, se exaure e para, está seguindo seus passos.
O Brasil tem outra história, uma índole solidária e recursos suficientes para manter a alma intacta. Com o reconhecimento do Estado Palestino já deu uma lição de lucidez e humanidade. Não há porquê manchá-la.
Ramsar
Biodiversidade
Okavango
2. Cruz Verde http://www.gci.ch/
3. Ramsar http://www.ramsar.org/cda/es/ramsar-ramsar-movie/main/ramsar
GCI Brasil: http://www.greencrossbrasil.org.br/

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