Por que certos países preferem brigar em vez de cooperar e todos terem os recursos que necessitam, sobretudo a água sem a qual ninguém sobrevive?
Para nós brasileiros que vivemos evitando atrito, parece mesmo difícil entender o porquê de outros preferirem a briga.
A resposta à pergunta dos dois leitores exige um grão de filosofia porque o conflito e a cooperação hídrica são processos sociais baseados em um emaranhado cultural intrincadíssimo. A sociedade é o produto de uma longa jornada evolutiva na qual mudanças e adaptações constantes foram possíveis graças às forças motoras da inteligência e da organização social que nos dão o poder mental de transcender o mundo tangível, de sobreviver em qualquer ambiente, de resolver problemas. Entre os quais, o de conviver com pessoas que não falam a mesma língua.
Apesar disto, tem sempre mais problemas para resolver em um ambiente social do que em ambientes naturais por causa das nossas emoções e mudanças de humor e de vontades que aproximam nossos semelhantes ou os ameaçam e agridem. E apesar da dinâmica pessoal, nossas percepções, sensibilidades, acabam resultando dos parâmetros da herança familiar, social, religiosa, e embora não sejamos marionetes passivas que repetem programas culturais tradicionais, também não somos totalmente livres.
Para sobreviver, conciliamos nossa realidade individual com a dos demais, mas mesmo assim, continuamos olhando mais ou menos os outros e o mundo com a ótica dos princípios morais que adquirimos. Portanto, o processo entre conflito e cooperação nunca se resume a um cálculo econômico, confrontações ideológicas ou disputas legais. E a cooperação está sempre ligada a noções de aceitação, respeito e reconhecimento mútuo de direitos e obrigações calcados na ética da justiça e da equidade.
Esta é a teoria básica. Na prática, cada lado está imbuído de noções éticas emotivas e uma visão estratégica, social e econômica egoísta. Desconfiança, pendências e inimizades são os maiores obstáculos à solução de um conflito. E quando ele dura, a solução às vezes chega pelo cansaço, mas para vingar ela tem de ser apresentada como uma vitória de ambas as partes.
Com raríssimas exceções, ninguém muda de opinião da noite para o dia em relação a decisões cruciais. Quando digo da noite para o dia, na dimensão de um conflito, quero dizer mês ou ano, dependendo da tradição e do “benefício” novo ao qual se adere por querer ou por ser obrigado.
O processo de mudança é gradual e cumulativo. Começa com a rejeição do antigo, passa para o ajustamento estrutural ao que é noviço até chegar à re-organização das idéias na qual se integra os novos conceitos até chegar a praticá-los em harmonia com o que se assimilou e nos modifica.
Em alguns casos as contingências sociais e históricas facilitam a difusão e assimilação de ideais chave e estas formam os alicerces das mudanças sociais. Mas na maioria das vezes o sofrimento e a humilhação a quem se pede (ou exige) uma adaptação inviabilizam qualquer disponibilidade individual de adesão.
Os países industrializados já impõem limites ao crescimento baseados em um sistema de ética e uma noção nacional de justiça. O problema é que quando lidam com outros países perdem de vista este prisma vital.
Uma tentativa de transformar situações de conflito declarado ou potencial é quase vã quando não é acompanhada de mudança social. O fim das hostilidades tem de chegar em ambiente que sustente uma cooperação real entre indivíduos, governos e grupos sociais.
Uma política hídrica coerente depende também de informação permanente sobre o valor da água. Saber que este valor é muito mais alto do que a conta mensal é que gera mudança de atitude e define a fronteira entre o desperdício, o uso responsável e a consciência da necessidade de compartilhá-la com os carentes deste elemento nutritivo básico.
Mas como a questão da água só está na pauta internacional há quarenta anos, faz pouco tempo que se fala no recurso finito e vulnerável da salubridade e do processamento e gestão participativos – do legislador ao planificador até o usuário que é a peça fundamental.
E o assunto é complicado porque atualmente as atividades geradoras de crescimento resultam quase sempre na contaminação dos rios e aquíferos em todos os lados. Se esta situação não mudar de maneira radical, a água disponível estará contaminada demais para ser consumida. O único jeito de reverter o processo é criando ações proativas locais e nacionais para combater a poluição hídrica e recuperar rios poluídos.
Nas cidades, uma rede de saneamento ampla e fiável é crucial para a estabilidade e a segurança urbana. Além de garantir a saúde do usuário, permite o funcionamento de hospitais e de indústrias. O fornecimento seguro e democrático de água é o alicerce de uma cidade realista e sustentável.
Lima, a maior capital situada em zona desértica (mais do que o Cairo), é um caso típico de defasagem entre o “econômetro” de certos organismos internacionais que a consideram uma boa praça de negócios e sua precariedade na distribuição de água, na qual seu “sociômetro” está bem baixo.
Quem já conhece a capital do Peru ou esteve lá de passagem para a Maravilha que é o Machu Picchu e conhece outras cidades altas, sabe que seu clima é mais ameno do que em outras partes. Em Lima chove mais ou menos dez minutos por ano. É um deserto úmido com 8,3 milhões de habitantes. Uma metrópole saturada em que a rede de saneamento é precária e serve os bairros ricos a um custo baixo em relação ao que os menos favorecidos pagam para obtê-la nos caminhões-tanques que chegam à periferia.
A dificuldade da metrópole em que vivem 30% da população peruana é justamente o fluxo migratório que não para. Centenas de pessoas chegam diariamente das montanhas em busca de trabalho e melhores condições de vida e se instalam nos pés das colinas em favelas sem eletricidade e sem água. Esta migração maciça espicha Lima, agrava diariamente o problema da salubridade e de repente a água potável virou um produto de luxo na capital de um país vizinho considerado “bancável”, mas frágil nas bases.
Por enquanto as classes média e alta estão despreocupadas, mas nenhum país está imune a conflitos quando a indigência gangrena a capital. Precisa mudar, mas mudanças importantes só são viáveis quando a causa é claramente identificada e o problema é reconhecido pela maioria das pessoas afetadas para que se encontre os meios de gerar e viabilizar soluções que as satisfaçam. Um caminho simples, em teoria, mas na prática é bem complicado porque o processo racional é paradoxalmente abstrato. No concreto, as idéias são mais ou menos pensadas e mais ou menos bem apresentadas, geradas e traduzidas em atos.
No tocante à água, a decisão pode vir de um ministério e transmitida à população como uma benfeitoria para a nação, ou seja, que amplifique vontades já manifestadas ou prometa um ganho pessoal, social e conômico substancial. E além do ministro responsável pelo saneamento, tem de envolver no processo seus colegas de comunicação, educação, cultura, professores universitários, instituições de pesquisa e ONGs para trabalharem juntos na mobilização, informação e provocar mudanças.
Lima é um exemplo nacional, mas procedente, já que os conflitos internacionais quase sempre nascem de insatisfações locais, nacionais, que atravessam fronteiras por necessidade ou que são maquiadas para fins eleitorais ou de simples popularidade e canalizadas para uma rixa externa que una a população a curto prazo. Depois fica difícil voltar atrás.
Quando as tentativas de apaziguamento se calcam apenas na história, no direito e nas obrigações legais, elas já começam mal. Não é justo, mas é a realidade. Para passar da primeira etapa ou da primeira hora de debate, os argumentos têm de se restringir às vantagens mútuas da cooperação e só depois passar ao direito e à moral.
Embora as mulheres sejam as principais usuárias de água, elas são quase sempre deixadas de lado nos processos de planejamento e decisório. Uma campanha hídrica eficiente seria a que as atingisse porque quer queira quer não, são elas que determinam os valores ensinados às próximas gerações. E é ensinando às crianças princípios morais baseados na partilha de valores humanos fundamentais de justiça e equidade que se construirá um mundo em que, entre todos os bens essenciais de consumo, a água ocupe lugar de destaque e, mais cedo do que tarde, sobrevivência e convivência pacífica e solidária.
Na maioria dos países que vivem em conflito, uma mulher com os pés na terra, com voz ativa, é quase uma utopia. O voto majoritário na Dilma mostrou que no nosso sabemos que é possível. A Marina em um Ministério do Meio-ambiente e Social, responsável pela proteção dos seres vivos de maneira geral mostraria que no campo feminino da política o bom senso predomina.
Mostraria também que a obra de Thomas Moore anunciava um sistema que de tão desenvolvido virou adjetivo, mas que o Brasil, pouco a pouco, com bom senso e olhando para o povo, abraçaria e conseguiria.
Machu Pichu
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