domingo, 28 de novembro de 2010

Os dois têm de querer para não ter briga

Por que certos países preferem brigar em vez de cooperar e todos terem os recursos que necessitam, sobretudo a água sem a qual ninguém sobrevive?
Para nós brasileiros que vivemos evitando atrito, parece mesmo difícil entender o porquê de outros preferirem a briga.
A resposta à pergunta dos dois leitores exige um grão de filosofia porque o conflito e a cooperação hídrica são processos sociais baseados em um emaranhado cultural intrincadíssimo. A sociedade é o produto de uma longa jornada evolutiva na qual mudanças e adaptações constantes foram possíveis graças às forças motoras da inteligência e da organização social que nos dão o poder mental de transcender o mundo tangível, de sobreviver em qualquer ambiente, de resolver problemas. Entre os quais, o de conviver com pessoas que não falam a mesma língua.
Apesar disto, tem sempre mais problemas para resolver em um ambiente social do que em ambientes naturais por causa das nossas emoções e mudanças de humor e de vontades que aproximam nossos semelhantes ou os ameaçam e agridem. E apesar da dinâmica pessoal, nossas percepções, sensibilidades, acabam resultando dos parâmetros da herança familiar, social, religiosa, e embora não sejamos marionetes passivas que repetem programas culturais tradicionais, também não somos totalmente livres.
Para sobreviver, conciliamos nossa realidade individual com a dos demais, mas mesmo assim, continuamos olhando mais ou menos os outros e o mundo com a ótica dos princípios morais que adquirimos. Portanto, o processo entre conflito e cooperação nunca se resume a um cálculo econômico, confrontações ideológicas ou disputas legais. E a cooperação está sempre ligada a noções de aceitação, respeito e reconhecimento mútuo de direitos e obrigações calcados na ética da justiça e da equidade.
Esta é a teoria básica. Na prática, cada lado está imbuído de noções éticas emotivas e uma visão estratégica, social e econômica egoísta. Desconfiança, pendências e inimizades são os maiores obstáculos à solução de um conflito. E quando ele dura, a solução às vezes chega pelo cansaço, mas para vingar ela tem de ser apresentada como uma vitória de ambas as partes.
Com raríssimas exceções, ninguém muda de opinião da noite para o dia em relação a decisões cruciais. Quando digo da noite para o dia, na dimensão de um conflito, quero dizer mês ou ano, dependendo da tradição e do “benefício” novo ao qual se adere por querer ou por ser obrigado.
O processo de mudança é gradual e cumulativo. Começa com a rejeição do antigo, passa para o ajustamento estrutural ao que é noviço até chegar à re-organização das idéias na qual se integra os novos conceitos até chegar a praticá-los em harmonia com o que se assimilou e nos modifica.
Em alguns casos as contingências sociais e históricas facilitam a difusão e assimilação de ideais chave e estas formam os alicerces das mudanças sociais. Mas na maioria das vezes o sofrimento e a humilhação a quem se pede (ou exige) uma adaptação inviabilizam qualquer disponibilidade individual de adesão.
Os países industrializados já impõem limites ao crescimento baseados em um sistema de ética e uma noção nacional de justiça. O problema é que quando lidam com outros países perdem de vista este prisma vital.
Uma tentativa de transformar situações de conflito declarado ou potencial é quase vã quando não é acompanhada de mudança social. O fim das hostilidades tem de chegar em ambiente que sustente uma cooperação real entre indivíduos, governos e grupos sociais.
Uma política hídrica coerente depende também de informação permanente sobre o valor da água. Saber que este valor é muito mais alto do que a conta mensal é que gera mudança de atitude e define a fronteira entre o desperdício, o uso responsável e a consciência da necessidade de compartilhá-la com os carentes deste elemento nutritivo básico.
Mas como a questão da água só está na pauta internacional há quarenta anos, faz pouco tempo que se fala no recurso finito e vulnerável da salubridade e do processamento e gestão participativos – do legislador ao planificador até o usuário que é a peça fundamental.
E o assunto é complicado porque atualmente as atividades geradoras de crescimento resultam quase sempre na contaminação dos rios e aquíferos em todos os lados. Se esta situação não mudar de maneira radical, a água disponível estará contaminada demais para ser consumida. O único jeito de reverter o processo é criando ações proativas locais e nacionais para combater a poluição hídrica e recuperar rios poluídos.
Nas cidades, uma rede de saneamento ampla e fiável é crucial para a estabilidade e a segurança urbana. Além de garantir a saúde do usuário, permite o funcionamento de hospitais e de indústrias. O fornecimento seguro e democrático de água é o alicerce de uma cidade realista e sustentável.
Lima, a maior capital situada em zona desértica (mais do que o Cairo), é um caso típico de defasagem entre o “econômetro” de certos organismos internacionais que a consideram uma boa praça de negócios e sua precariedade na distribuição de água, na qual seu “sociômetro” está bem baixo.
Quem já conhece a capital do Peru ou esteve lá de passagem para a Maravilha que é o Machu Picchu e conhece outras cidades altas, sabe que seu clima é mais ameno do que em outras partes. Em Lima chove mais ou menos dez minutos por ano. É um deserto úmido com 8,3 milhões de habitantes. Uma metrópole saturada em que a rede de saneamento é precária e serve os bairros ricos a um custo baixo em relação ao que os menos favorecidos pagam para obtê-la nos caminhões-tanques que chegam à periferia.
A dificuldade da metrópole em que vivem 30% da população peruana é justamente o fluxo migratório que não para. Centenas de pessoas chegam diariamente das montanhas em busca de trabalho e melhores condições de vida e se instalam nos pés das colinas em favelas sem eletricidade e sem água. Esta migração maciça espicha Lima, agrava diariamente o problema da salubridade e de repente a água potável virou um produto de luxo na capital de um país vizinho considerado “bancável”, mas frágil nas bases.
Por enquanto as classes média e alta estão despreocupadas, mas nenhum país está imune a conflitos quando a indigência gangrena a capital. Precisa mudar, mas mudanças importantes só são viáveis quando a causa é claramente identificada e o problema é reconhecido pela maioria das pessoas afetadas para que se encontre os meios de gerar e viabilizar soluções que as satisfaçam. Um caminho simples, em teoria, mas na prática é bem complicado porque o processo racional é paradoxalmente abstrato. No concreto, as idéias são mais ou menos pensadas e mais ou menos bem apresentadas, geradas e traduzidas em atos.
No tocante à água, a decisão pode vir de um ministério e transmitida à população como uma benfeitoria para a nação, ou seja, que amplifique vontades já manifestadas ou prometa um ganho pessoal, social e conômico substancial. E além do ministro responsável pelo saneamento, tem de envolver no processo seus colegas de comunicação, educação, cultura, professores universitários, instituições de pesquisa e ONGs para trabalharem juntos na mobilização, informação e provocar mudanças.
Lima é um exemplo nacional, mas procedente, já que os conflitos internacionais quase sempre nascem de insatisfações locais, nacionais, que atravessam fronteiras por necessidade ou que são maquiadas para fins eleitorais ou de simples popularidade e canalizadas para uma rixa externa que una a população a curto prazo. Depois fica difícil voltar atrás.
Quando as tentativas de apaziguamento se calcam apenas na história, no direito e nas obrigações legais, elas já começam mal. Não é justo, mas é a realidade. Para passar da primeira etapa ou da primeira hora de debate, os argumentos têm de se restringir às vantagens mútuas da cooperação e só depois passar ao direito e à moral.
Embora as mulheres sejam as principais usuárias de água, elas são quase sempre deixadas de lado nos processos de planejamento e decisório. Uma campanha hídrica eficiente seria a que as atingisse porque quer queira quer não, são elas que determinam os valores ensinados às próximas gerações. E é ensinando às crianças princípios morais baseados na partilha de valores humanos fundamentais de justiça e equidade que se construirá um mundo em que, entre todos os bens essenciais de consumo, a água ocupe lugar de destaque e, mais cedo do que tarde, sobrevivência e convivência pacífica e solidária.
Na maioria dos países que vivem em conflito, uma mulher com os pés na terra, com voz ativa, é quase uma utopia. O voto majoritário na Dilma mostrou que no nosso sabemos que é possível. A Marina em um Ministério do Meio-ambiente e Social, responsável pela proteção dos seres vivos de maneira geral mostraria que no campo feminino da política o bom senso predomina.
Mostraria também que a obra de Thomas Moore anunciava um sistema que de tão desenvolvido virou adjetivo, mas que o Brasil, pouco a pouco, com bom senso e olhando para o povo, abraçaria e conseguiria.

Machu Pichu

domingo, 21 de novembro de 2010

A arma da sede na ocupação da Palestina


Desde que comecei este blog não param de perguntar qual é o papel da água no conflito entre Israel e os Territórios palestinos Ocupados. A resposta é simples: a água tem tanta importância quanto a terra.
Já antes da criação de Israel, os sionistas (1) reivindicavam um Estado baseado em critérios religiosos e hídricos: o vale do Litani (no Líbano), o vale do Yarmuk (Jordânia, Síria, Palestina) e toda a margem direita do Jordão.
Em 1947 a ONU entregou ao Estado judeu dois terços da Palestina e recursos hídricos consideráveis, mas aquém do cobiçado. Inconformado, Israel, um ano mais tarde, começou a confiscar e estatizar terras e recursos naturais “liberados” pelos massacres (denunciados até por Einstein) que forçaram os palestinos à diáspora e às centenas de milhares de refugiados. Em seguida atacou o sul do Líbano e no final das disputas acabou ficando com a Galiléia e o Néguev, um deserto que viria a irrigar através de um aqueduto que leva a água de uma à outra área anexada.
Com o passar dos anos as tensões foram aumentando e culminaram na Guerra dos Seis Dias, resultante do bombardeio de instalações hidráulicas sírias no lago Hulé, de cujas águas Israel temia ser destituído. No sétimo dia o exército israelense tirou o Golan da Síria e realizou dois dos sonhos hídricos sionistas: apossou-se da maioria do vale do Yarmuk e de toda a margem direita do Jordão, privando a Cisjordânia da água que lhe cabia.
Assim, a partir de 1967 e da ocupação dos Territórios palestinos, a política de espoliação se estendeu à Cisjordânia e à faixa de Gaza. Em 1993, na assinatura dos acordos de Oslo, 82% das camadas freáticas da Cisjordânia foram parar nas mãos de Israel enquanto o mundo inteiro criticava a “má-vontade” de Yasser Arafat omitindo a armadilha em que havia sido colocado e o sapo com o qual ele engasgava.
A “guerra” hídrica israelense mais recente foi durante a Copa de 2006, quando para apoderar-se da bacia do rio Litani bombardeou o Líbano do sul a Beirute durante 34 dias. Acabou dando com os burros n’água, saindo de mãos vazias e fortalecendo o Hezbollah, cujas bases eram até então movediças.
O choque com o Líbano para em reticências... Passemos ao conflito do dia a dia na Palestina pela água, e mais ainda.
Em 2005, em uma operação mediatizada por Ariel Sharon como um gesto de boa vontade, Israel procedeu à evacuação das instalações militares e das 21 colônias judias em Gaza. Era uma estratégia de guerra (bombardeio e invasão três anos mais tarde) e por terem esgotado o potencial hídrico da Faixa. Na Cisjordânia as colônias israelenses não pararam de se multiplicar e visam, além da ocupação e expansão territorial, os recursos naturais palestinos. Sobretudo a água.
Há duas grandes camadas freáticas em Israel e na Cisjordânia. Esta detém a mais ampla e os dois compartilham três sistemas de água inter-relacionados.
O sistema de subsolo – o Aquífero da Montanha – atravessa a Linha Verde (delimitação da ONU da fronteira entre Israel e a Cisjordânia) e tem 130 quilômetros de comprimento, do monte Carmel ao Negev, e 35 km de largura, do vale do Jordão ao mar Mediterrâneo.
Ele é subdivido em três sub-aquíferos.
O Ocidental, de alta qualidade potável, está quase todo na Cisjordânia, embora Israel se reserve a estocagem completa e o uso de 95% desta água.
O segundo sistema, o Aquífero do Norte, é recarregado e estocado essencialmente na Cisjordânia, mas Israel extrai 70% para uso próprio.
E 37% da água do terceiro sistema, o Aquífero Oriental, inteiro na Cisjordânia, é consumida por Israel, majoritariamente pelos colonos instalados nos Territórios Ocupados.
A média de água que cabe aos palestinos na Cisjordânia é de 70 litros per capita, por dia. Cada colono das 121 colônias israelenses na Cisjordânia desfruta de 1.450 metros cúbicos.
Em apenas 16% das comunidades palestinas (100 de 708), o acesso à água excede 100 litros per capita diários – que é o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde para evitar epidemias. O preço da água fornecida por tanques privados que vendem aos palestinos a água tirada das fontes desviadas são exorbitantes (2).
Apenas 69 comunidades palestinas possuem rede de água potável. As demais contam com chuva, fontes, poços, e para os que conseguem pagar, com esta água cara. O acesso ao Jordão é negado aos palestinos em toda a sua extensão. Até o Mar Morto.
Em Gaza o problema atinge proporções dramáticas por causa de escassez e insalubridade: a média é de 140 litros diários para 1,5 milhões de habitantes (3).
As camadas freáticas acessíveis estão esgotadas e a única água disponível a grandes profundidades é turva ou salgada (4). Apenas 7% da água em Gaza correspondem aos critérios potáveis da OMS e os casos de cólera, disenteria, hepatite, febre amarela e outras doenças correlacionadas são crescentes, sobretudo entre as crianças, mais vulneráveis. Estima-se que dentro de 15 anos, caso não se tome providências imediatas, Gaza não tenha uma gota de água potável (5).

A Anistia Internacional fez um relato minucioso da espoliação progressiva (6) e até o Banco Mundial já comprovou e denunciou a injustiça. Mas ficou por isso (7).
Se as leis internacionais fossem aplicadas, esta expropriação hídrica seria impedida, sancionada e Israel seria obrigado a compensar a Palestina pelo desvio passado e presente de seus recursos hídricos e de suas perdas agrícolas.
Em vez disto, Israel continua negando aos palestinos o direito de cavar cisternas e confiscou muitas destas para seu uso exclusivo. Para outras, estabeleceu quotas para seus proprietários legítimos.
No verão a companhia israelense Mekorot (que assinou um contrato milionário com o governo português no ano passado para entrar na Europa de fininho achando que assim escapa da campanha de boicote dos cidadãos dos outros países mais bem informados) costuma cortar o fornecimento às cidades palestinas para que a seca não afete seus compatriotas em nada. É comum ver na Cisjordânia casas de colonos com piscinas cheias e com jardins sendo irrigados enquanto do lado famílias nativas não dispõem de água potável para suprir necessidades básicas.
E tem o muro, que é da vergonha mas também da água. Ele devora a Linha Verde, divide lavouras, separa os habitantes de seus recursos hídricos e cerca fontes para extraviar a água palestina para Israel e seus colonos nos Territórios Ocupados.
Algumas das maiores colônias israelenses, como Ariel e Qedumin, foram erguidas no Aquífero das montanhas ocidentais, em plena região agrícola da Cisjordânia – é onde o muro invadiu mais terra para anexar fontes vitais aos nativos.
25 postos hídricos e 35 mil metros de encanamento foram destruídos em sua construção. E ele destruiu ou isolou de seus proprietários cerca de 50 fontes e mais de 200 cisternas e tanques, dos quais mais de 120 mil pessoas dependem para uso doméstico e agrícola.
Este é um caso típico da água como arma de guerra e instrumento de subjugação. Porém as leis internacionais parecem não se aplicar à Palestina, um Estado não reconhecido pela ONU cuja população é apátrida em sua própria terra.
A importância da água é tanta nessa região, que os Acordos de Oslo de 1993 (que terminaram com o célebre aperto de mão entre Yasser Arafat e Itzhak Rabin) nasceram em Zurique em 1990 de uma série de encontros privados entre intelectuais israelenses e executivos da OLP organizados por responsáveis locais, do quê? Da água.
Hoje a situação e o problema estão muito mais graves, as colônias em vez de diminuírem multiplicaram, os palestinos vivem encurralados e o próprio ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, ocupa uma bela casa na Cisjordânia e é um racista declarado, com forte odor de fascismo, segundo o jornalista e escritor israelense Uri Avnery (8).
Boa sorte aos intermediários.

1- Partidários da teoria confeccionada por Theodor Herzl em livro publicado em 1895 “O Estado Judeu”, no qual prega o Sionismo, que aplicado ao pé da letra exclui a presença dos palestinos, razão pela qual, em 1975, uma moção da ONU estatuou ‘sionismo = racismo’, revista em 1995 por pressões político-sionistas.

2- Drying up Palestine

3- Procurando água em Gaza


4. http://www.youtube.com/watch?v=ug48wn0yhCg;

5- Aquíferos bloqueados para Gaza

6- Anistia Internacional: Ocupação hídrica  http://bit.ly/1rNuiN


sábado, 13 de novembro de 2010

A água que sufoca é a mesma que hidrata?


Soldados estadunidenses em ação no Iraque
Entre os leitores deste blog há dois fãs declarados das 24h que deram ao Kiefer um nome ao sobrenome famoso do grande Donald Sutherland.
Confesso que este seriado “que tem coragem de mostrar os bastidores da espionagem!”, “cujo realismo é de tirar o fôlego!” segundo os fãs citados, atraiu minha curiosidade na primeira temporada, mas me cansei depressa da novidade e nem vi o final. O horror à violência gratuita e à demência institucionalizada me afastou para longe e só voltei à carga na inauguração da sétima temporada. Assisti ao telefilme “Redenção” porque pensei que um ator como Robert Carlysle, frequente em filmes engajados como Carla’s Song do Ken Loach, não emprestasse seu talento a algo sem sentido social. Fiquei na vontade. Ele também deve ter ficado.
As defesas de Jack Bauer chegaram justamente em uma semana que começa com a liberdade da resistente birmanesa Suu Kyi. Por isto e pela campanha da Anistia Internacional, resolvi falar da tortura, prática que uma e outra também condenam e que é uma constante no programa acima mencionado.
A tortura é um crime abominável. Seja ela usada por criminosos reconhecidos ou institucionalizada.

Este crime está na moda desde 2001 e o ataque dos Estados Unidos pelo Al Qaeda. Mas a “guerra contra o terrorismo” não o desculpa em nada, embora nos cinco continentes seja praticado e esteja quase banalizado. Como se as leis internacionais não significassem realmente nada.
Que o fã de 24 não se iluda, a tortura não é usada para extrair informação, mas sim para estabelecer o terror, calar bocas, punir o torturado pela impotência e pela ignorância do que o verdugo quer saber e não sabe.
O torturador não é um herói televisivo, mas um covarde.
Nenhum fim justifica o recurso a este crime que equivale a assassinato e toda violência física e psicológica grave.

Um terrorista que é torturado para dizer onde pôs uma bomba prestes a explodir é um roteiro cinematográfico repetitivo e improvável. Isto nunca aconteceu na realidade e espero que nunca aconteça, pois se acontecesse o mais provável é que a bomba explodisse antes que o segredo fosse revelado. Está provado e comprovado que a violência física e psicológica faz o torturado revelar mais o que ignora do que o que sabe.
A tortura de um verdadeiro terrorista também faz parte da ficção, embora sirva para banalizar e justificar este crime injustificável. Na realidade, as vítimas da tortura são vítimas mesmo; suspeitos, marginais, prisioneiros comuns, oponentes políticos, intelectuais.

A idéia de que a tortura é eficiente para obter informações rápidas e vitais é uma miragem.
A idéia de que a tortura protege o mundo do terrorismo é tão inverossímil quanto Jack Bauer.
A idéia de que a tortura é praticada por verdugos bonzinhos contra terroristas malvados é uma falsidade ideológica lamentável.
O Brasil sabe disso. Durante 20 anos ela foi aplicada em resistentes à ditadura. Nossa presidente foi uma das que resistiu então e seria bom que ela tivesse o poder de fazer tudo para o Brasil sair da lista dos 61 países que recorrem a este vergonhoso exercício.
A lista inclui os Estados Unidos e Israel. Aliás, este último também já tortura desde o século passado. Até meninos. Não seus próprios cidadãos como no Brasil dos militares, mas dos vizinhos do lado.


A Anistia Internacional sempre disse que a tortura é a única forma de violência que um Estado negará exercer sem jamais ousar justificar.

Há algum tempo Eitan Felner, diretor da ONG israelense de direitos humanos B’TSELEM, desmentiu esta premissa declarando indignado e compungido que seu país era o único que admitia a tortura legal e verbalmente http://www.btselem.org/english/torture/interrogation_regime.asp.
Os depoimentos sobre tortura são raros. Bem aquém do quanto é aplicada. Talvez porque os torturadores não façam muita publicidade, porque levem o torturado à morte física, mental e emocional, ou porque o assunto repugne tanto o leitor quanto o jornalista que o trata.

Na Palestina, desde a ocupação em 1967, mais de 650.000 cidadãos foram detidos em Israel e embora os jornais lhes dêem pouco ou nenhum espaço, muitos dos torturados falam. O número de reclamações foi tão alto e as consequências tão graves que em 1999 a Alta Corte Internacional de Justiça foi obrigada a excluir publicamente quatro tipos de torturas usadas contra os palestinos sequestrados: o direito de “sacudir” uma pessoa, de conservá-la na posição de “shabach” (amarrada/algemada em uma cadeira pregada no chão) e de “quambaz” (de sapo) durante horas de interrogatório e privação de sono. São algumas das “técnicas” denunciadas pela B’TSELEM como correntes nos porões nacionais.

Em vez de banidas elas foram aperfeiçoadas e exportadas para os quatro cantos do planeta e continuam a ser usadas contra palestinos de todas as idades. Os relatos/relatórios mais terríveis são de meninos entre 13 e 18 anos, presos por jogarem pedras ou como um de 15 anos que foi detido durante seis meses por porte de “explosivo”, que no caso específico era um traque. Com a etiqueta de terroristas, os meninos sofrem tratamentos psicológicos e físicos desumanos, há denúncias até de estupros, até “confessarem” e serem levados a uma delegacia regular para repetirem a “confissão” e esta ser usada em tribunal.

Como a água é um dos nossos temas chave, heresia das heresias, a fonte de vida que irriga o cérebro do homo sapiens protagoniza uma tortura muito antiga que foi usada à vontade no Camboja pelos Kmers Vermelhos e que voltou à moda em 2005 quando os Estados Unidos passaram a usá-la no Iraque, em Guantánamo e alhures, disseminando a prática.
Está ilustrada acima e se chama water boarding.
Não vale a pena traduzir porque é sempre aplicada na íntegra, em versão original e acompanhada de humilhações verbais.
Embora provoque um estrago inimaginável, o water boarding é barato, só pede um capuz e um pouco d’água. A sensação é de um afogamento que não acaba, ou melhor, acaba quando se afoga, literalmente, em um balde d’água.
Na maioria das vezes a vítima é imobilizada, deitada, encapuzada, amordaçada e recebe água na cara. Mesmo sabendo que não está na água, a sensação de estar imerso e incapaz de subir à tona porque se está preso é nítida e incontrolável http://www.youtube.com/watch?v=4LPubUCJv58. Os torturadores apressados imobilizam a vítima, a encapuzam, amordaçam e jogam água na cara até o torturado pedir arrego ou desmaiar.
Como todas as torturas, suas sequelas são indeléveis. Sobretudo nos meninos e nos adolescentes, pois o objetivo da tortura é roubar a dignidade, destruir a coragem, fabricar covardes, párias da sociedade. Quando não um verdugo a mais.
Os homens têm uma imaginação às vezes fértil demais.
Vide Oppenheimer.
Conseguem transformar tudo em arma.
Até a água. 

 http://www.democracynow.org/2008/7/7/award_winning_palestinian_journalist_mohammed_omer
  

Democracy Now: A Debate on Torture
Legal Architect of CIA Secret Prisons, Renditions vs Human Rights Attorney.
I

II
III

domingo, 7 de novembro de 2010

O Mar Morto nos passos do Aral


Não é que não tenha gostado, mas por que cargas d’água falar sobre teatro em um blog especializado?!
Esta pergunta chegou por email ontem e me lembrou o que o "seu" Oscar (Niemeyer) me falou sobre a deficiência do sistema universitário que prepara profissionais cada vez mais especializados, porém, sem nenhuma cultura geral e achando que isto é normal.
Eu faço parte de uma minoria que acha a cultura necessária inclusive para enxergar o que não dá na vista e analisar o porquê de um semelhante nosso oprimir, torturar e esquartejar sem que a consciência pese.
Entre Jack Bauer e suas 24 horas de coreografia que legitima a tortura e a banaliza junto ao aficionado e aos GIs e mercenários, e os horrores do filme Saló de Pier Paolo Pasolini, em que mostra a face perserva e degradante do fascismo a fim de provocar o asco que esta ideologia representa, fico com a realidade do poeta italiano assassinado.
Aliás, Pasolini nos legou três frases que eu assinaria embaixo. A primeira é de ser cristã dos três primeiros séculos em que o cristianismo era praticado na íntegra com soldados jogando as armas fora, os abastados compartilhando víveres e os ofendidos dando a outra face. A segunda é que "o verdadeiro pecado não é fazer o mal, mas sim não fazer o bem ou não fazer nada". E o terceiro é que "a cultura é uma resistência à distração".
O caro leitor que se deu ao trabalho de me escrever (e os outros tantos não citados) agradeço pela assiduidade e explico que para conseguir entender melhor o mundo, a vida, a natureza dos conflitos, preciso ler não apenas livros especializadíssimos e encarar o mal in loco, mas também observar a vida e aproveitar a inteligência criativa do artista ou autor comprometido com o mundo em que vive. É em uma reflexão pluri-disciplinar e proativa que consigo enxergar melhor o mal sob todos os prismas e analisar com mais acuidade as pessoas que o fazem e o por quê disto.
A cultura é o motor da humanidade, no sentido próprio e figurado, e a hidropolítica e a geopolítica fazem parte deste meio cultural amplo e irrestrito. Todas as disciplinas estão interligadas e uma enriquece a outra e quem as põe em prática. Veja só o Mar Morto. Aparece na Bíblia, em guias turísticos, em livros de geopolítica e na hidropolítica. O mesmo sítio pode ser abordado sob quatro óticas à primeira vista distintas e se eu só pensasse e só soubesse de geopolítica e hidropolítica, minha abordagem seria manca e nesta crônica de uma morte anunciada faltaria a liga adequada.
No início de agosto falei sobre o mar Aral que conheci ainda com água e segui seu esgotamento rápido entre o Uzbequistão e o Kazaquistão até virar uma cratera desértica, contaminada e fétida. E embora o Aral esteja distante da nossa América, fiquei impressionada com o interesse demonstrado pela matéria que escrevi mais como um desabafo indignado.
O de hoje também é um desabafo que envolve o Oriente Médio, o rio Jordão e o Mar Morto (em árabe; em hebraico o nome é Mar Salgado). Caso o problema de exaustão de suas águas não seja remediado, dentro de quarenta anos estará seco como o Aral.
O Mar Morto se situa entre a Jordânia na margem oriental e na ocidental em Israel e na Cisjordânia. É alimentado pelo rio Jordão e está 422 metros abaixo do nível do mar, o que faz dele o ponto mais baixo do planeta. Na década de 60, estava a 395. A perda hídrica de um terço nos últimos cinquenta anos se deve um pouquinho às mudanças climáticas e muitíssimo aos desvios e à exploração desenfreada das águas para alimentar as indústrias e a agricultura de Síria, Jordânia e Israel – os dois últimos explorando a fundo a indústria turística com complexos hoteleiros imensos em suas margens. Quase totalmente privado de água, o Jordão virou também um esgoto das colônias israelenses ao longo de suas margens.
Em 1950, 1.3 bilhões de metros cúbicos de água corriam para o Mar Morto. Hoje em dia, apenas 300 milhões escapam até lá. A primeira vez que vi o Jordão, vi um rio, pequeno, mas um rio. Depois virou um riacho e hoje não passa de um córrego que perdeu 25 metros de superfície.
Noventa e cinco por cento do fluxo do rio Jordão são captados para fins agrícolas e industriais. A poluição do rio é tão grande que o peregrino cristão que quiser se banhar perto de Jericó, onde Jesus foi batizado, corre o risco de ser contaminado com o lixo industrial e o esgoto em que tem virado.
A Jordânia, preocupada com a morte da galinha de ovos de ouro e sob pressão de ONGs ecológicas, propôs a Israel e à Palestina a construção de um canal para levar água do Mar Vermelho ao Morto para recarregá-lo. Os três aprovaram, mas a Palestina está à míngua e além do mais, seus habitantes não desfrutam nem do Jordão nem das delícias flutuantes do mar de água tão pesada que só dá para boiar. Israel concordou, mas não quer pôr a mão no bolso e o projeto que já tinha sido batizado precipitadamente de Canal da Paz só está sendo bancado pela Jordânia. Por etapas.
Se for levado a cabo, o projeto ambicioso deve quebrar o equilíbrio do Mar Morto que embora viva, perderá suas propriedades e será outro mar. Os hebraicos terão de rebatizá-lo com o nome de Mar Doce, se for o caso. Mas como naquela região sempre aparece um fanático para envolver a religião onde ela não tem lugar e não é chamada, já ouvi até dizerem que está dito em algum escrito religioso que o mar salgado um dia ia adoçar...
Qualquer que seja o desfecho deste Mar faz anos que ele está morto e enterrado para os palestinos, embora detenham uma boa parte. Israel, além de ocupar militarmente o Jordão de cima embaixo, construiu colônias judias ao longo de sua margem na Cisjordânia e a entrada de palestinos é vedada, assim como o aproveitamento de seus recursos naturais.
Aliás, como falei em boicote cidadão e solidário duas semanas atrás, aproveito para passar às leitoras o lembrete de uma israelense militante da Coalizão das Mulheres pela Paz (http://coalitionofwomen.org/home/english). Ao comprar seus cosméticos faciais lembre-se que a empresa Ahava Mar Morto está instalada em uma destas colônias ilegais, portanto além de não ser nada ecológica, infringe as leis internacionais. Aliás, em Paris houve um protesto na loja Sephora dos Champs Elysées no ano passado contra a venda de produtos Ahava (http://vimeo.com/11985419). Cinquenta por cento das vendas desta linha de produtos são feitas em 25 países estrangeiros. Olhe bem a etiqueta no Brasil, antes de comprar. Como dizem as militantes do movimento feminino pela paz, Code Pink: Ahava = negócio enlameado, como mostra o vídeo abaixo.
Voltando ao Mar Morto, sua morte concreta seria um desastre turístico e quebraria o equilíbrio hídrico regional, o que levou organizações européias e norte-americanas a propor fundos a ONGs jordanianas para que tentem um diálogo com Israel. Mas aí veio à tona uma questão elementar: Quem vai representar os palestinos e quanta água lhes será deixada?
Os financiadores fugiram do assunto e as ONGs puseram na balança de um lado sobrevivência e do outro finanças. Não precisaram pensar muito. A sobrevivência hoje não envolve projetos com Israel que descarta toda possibilidade de evacuação das colônias judias que contaminam e desperdiçam a água à qual não têm direito legal. Portanto, o Canal da Paz está longe de merecer o nome com o qual foi batizado.
E se quiser flutuar nas águas do Mar Morto compre logo sua passagem para Amman e se hospede do lado da Jordânia. Assim você contribui ao financiamento das obras do canal e exerce seu direito de boicotar o que você já sabe.
Mar morto

Who profits from Israeli occupation of Palestine?

Salo, o le 120 giornarte di Sodoma (legendado)