domingo, 26 de setembro de 2010

O Rio Mãe de filhos ingratos

Região atingida pelas enchentes

O Paquistão acabou de ser atingido por uma enchente cujas proporções chegaram a ser comparadas com as catástrofes monitoradas no Antigo Testamento por um deus vingativo e sanguinário. Mas como no Princípio a água doce era toda potável e a superfície da Terra era coberta de árvores, o Deus do Novo, neste caso (e em outros em que os homens usam o livre arbítrio para fazer escolhas erradas) é mais bode expiatório do que culpado.
Hoje no Paquistão (que já arca com o ônus de acolher um milhão e setecentos mil refugiados afegãos em acampamentos precários) o balanço oficial provisório – no norte as águas se acalmaram, mas no sul continuam a inundar plantações e invadir casas – é de mil setecentos e sessenta mortos e cerca de vinte milhões de desabrigados mal alojados em campos improvisados. Isto se chama catástrofe humanitária.
Chuvas torrenciais que carregam colheitas, moradias e gente na enxurrada são consequências de algo. Dizer que o Rio Mãe, como o Indo é chamado, é a causa, pode ser um julgamento apressado de consciências pesadas. Que rio consegue absorver três, seis, nove vezes o volume de chuvas que não param?
O Indo e seus 2.900 km de comprimento e seu fluxo anual de 270 bilhões de metros cúbicos é um culpado acidental. Sua fonte no Tibete é puríssima e quando escala o Himalaia a água sobe límpida e escorrega macia pela Caxemira indiana e paquistanesa para cruzar a fronteira do Paquistão que ele irriga até o Mar da Arábia.
Para uma goiana acostumada com o Araguaia e Tocantins que formam artérias caudalosas e piscosas em meu estado, ir de Islamabad a Peshawar em janeiro pela Rodovia Nacional do Paquistão, parar na ponte e olhar debaixo o riacho verde oliva deslizar no leito largo de um e outro lado..., o maior provedor de água do Paquistão parece moribundo.
De fato o Indo é um rio esgotado pelos ciclones provenientes do mar da Arábia e por desmatamento extensivo, poluição industrial e aquecimento global que vêm afetando sua biodiversidade.
Mas as chuvas copiosas e ininterruptas que acabaram de fazê-lo transbordar e inundar várias cidades mostram que ele está bem vivo e reclamando dos maus tratos.

Na nascente o sistema do Indo é bem alimentado pela neve e os glaciares do Himalaia.
É um dos poucos rios com macaréu, o fenômeno do encontro de águas fluviais com ondas na maré alta, vista na foz de alguns rios brasileiros e estrangeiros em escala que impressiona mas não tanto quanto a pororoca na potência máxima do Amazonas.
Acanhado de janeiro a março, o Indo só cresce e vira fera na estação das monções de julho a setembro quando transborda por todos os lados. Seu fluxo é determinado também pela volubilidade das estações.
Porém a inconstância de suas águas não lhe tira o mérito de Mãe. Influencia indiretamente a vida de cento e cinquenta milhões de pessoas na China, Índia, Paquistão, e diretamente, de cem milhões. Inclusive um milhão de pescadores. Todos prejudicados de maneira mais ou menos grave pelos recentes alagamentos.
A cachoeira de desastres tinha de levar os cientistas à reflexão sobre as razões de tanta água enlameada, e o maniqueísmo de alguns, à famosa busca do culpado. Mas em vez da mão de Deus, a mão pesada e o imediatismo do homem são os mais prováveis.
Há seis mil anos as águas do Indo eram bem mais abundantes e mais sujeitas a transbordamento do que agora. O esfriamento climático fez com que grande parte da água evaporasse e a área em volta secasse em concomitância com a queda da Civilização Harappa (ou o contrário). Esta se expandiu na Idade do Bronze (2600 a 1900 AC) do vale do Indo e do Punjab ao Paquistão de agora, possuía uma forma de escrita e já usava o algodão. (O sítio arqueológico de Mohenjo-daro pode ser visitado no distrito de Larkana, no Sindh paquistanês onde o islamismo foi introduzido no sul da Ásia séculos mais tarde http://www.youtube.com/watch?v=krJ4J5RWPCE).
Até os Harappa, a natureza era a única que influenciava a mudança climática, e no bom sentido, embora o declínio desta Civilização seja atribuído ao ar frio. Segundo os especialistas, a Monção (período em que o contraste térmico ocasiona ventanias e subsequentes chuvas torrenciais) é sensível à temperatura do Oceano Índico, e com o resfriamento, os ventos passaram a carregar menos unidade, a monção declinou, o volume do rio foi diminuindo e as intempéries cessaram.

Hoje em dia, é o Indo que supre em água, além de casas, a indústria alimentícia e a agricultura no Sindh e no Punjab, províncias que alimentam o Paquistão graças ao sistema de irrigação moderno instalado pelos colonos ingleses em 1850 – eficiente, mas inadaptado às particularidades geológicas locais.
E foi aí que a coisa começou a complicar. O sistema foi calcado nos rios britânicos que acumulam pouca lama e pouca areia enquanto que o Indo é carregado de sedimentos himalaicos. A construção de diques fez com que a médio e longo prazo o leito do rio acumulasse uma quantidade de limo que o expõe a estas inundações que se intensificam quando os diques são quebrados pela força das águas.
Um problema crescente desde o século XIX e agravado nos últimos cinquenta anos com o desmatamento. Como as árvores protegem os mananciais de erosão, com sua derrubada os sedimentos despejados na água aumentaram e os diques não conseguem suportar os desbordamentos. Suspeita-se que o vale do Indo venha a ser vítima de enchentes cada vez mais graves e difíceis de serem previstas. Com as mudanças climáticas é quase impossível avaliar com antecedência o ritmo e a duração das monções atuais, apesar dos cientistas paquistaneses buscarem sistemas e meios de controlar o que parece incontrolável. Enquanto não encontrarem, o futuro do Paquistão e do Rio Mãe (contra as expectativas dos garimpeiros que peneiram seu leito cheios de esperança de opulência e estabilidade) parece fadado a oscilar do esgotamento ao transbordamento de água não-potável.

Nuvens chuvosas em Jiiaju no Tibete
O interessante é que apesar das catástrofes locais e internacionais dos últimos anos, o volume de chuvas no mundo continua o mesmo. O que mudou foram as gotas acumuladas em períodos encurtados. Para o Paquistão isto significa que se o parâmetro deste ano for repetido e banalizado com as alterações climáticas, a curto ou médio prazo, ele está condenado.
Face ao estado em que o Paquistão se encontra e em que o Bangladesh vira e volta naufraga, martelei três cientistas com uma questão simples e complicada: Já que o aquecimento global provoca o inverso do esfriamento, os ventos estão carregando cada vez mais umidade dos oceanos e com os fortes ventos contrários, chuvas aluviais imprevisíveis e incontroláveis acabarão submergindo plantações, gente e cidades pelo menos uma vez por ano. Não apenas no Paquistão, mas também pelo mundo afora até nossas paragens. Enquanto a sede de água potável piora.
Um levantou a sobrancelha, o outro suspirou e o terceiro fez um gesto enigmático.
Impotentes frente às obras hidráulicas que proliferam e aos desmatamentos que exaurem a Terra, asfixiada pelo aquecimento global ao qual contribuímos cada vez que pegamos o carro em vez de metrô, de ônibus, de bicicleta, ou de simplesmente caminharmos desfrutando o privilégio de nossos membros válidos.
Mudança climática



Garimpo no Indo, em francês


Delta do Indo

domingo, 19 de setembro de 2010

O Nilo espremido entre rivalidades


Vale do Nilo
Inspirada por uma amiga que está mergulhando no Mar Vermelho (cujas águas são mesmo é de um azul esverdeado só às vezes avermelhadas por defuntas algas), resolvi percorrer a história de outro rio místico, o Nilo. Seu delta em forma de leque triangulado lembra a letra grega que deu origem a esta designação hidrográfica, o que é quase um poema.
Ao contrário do Danúbio que desemboca no Mar Negro carregado de detritos, o Nilo chega ao Egito pouquíssimo poluído. Mas justamente por isto, ou seja, pela industrialização e urbanismo incipientes dos países da nascente, protagoniza uma cascada de desentendimentos.
Ele é uma dádiva na aridez da África Oriental. Em 460 AC, o historiador grego Heródoto já via o Neilos como Uma fonte profunda entre duas montanhas altas. Quatro séculos mais tarde, Nero, em suas conquistas para o império romano, pôs um grupo de centuriões atrás da nascente do Nilus, mas eles não passaram do impenetrável vale Sud no Egito. Mil e oitocentos anos depois, o inglês John H. Speke achou que o lago vitória fosse o fim da linha e o seu erro só foi corrigido em 1937, quando o explorador alemão Waldekker percorreu seus 6.693 quilômetros até encontrar a fonte no rio Luvironza.
Como aprendemos na escola, o Nilo é o curso de água mais longo do planeta (distância de Londres a Nova Iorque). Irriga Burundi, Etiópia, Quênia, Congo, Ruanda, Eritréia, Tanzânia, Uganda, Sudão e Egito. Este último é o que lhe tira maior proveito e que está disposto a tudo para proteger os direitos que os ingleses lhes conquistaram. Boutros Ghali, secretário geral da ONU de 1992 a 1996, quando ministro das relações exteriores do Egito, disse em 1987 uma frase que marcou época: A próxima guerra nesta região será pelo Nilo. Eco de outra frase célebre pronunciada pelo ex-presidente Anwar Al Sadat logo após assinar um tratado de paz com Israel em 1979: Meu país só voltará à guerra pela água.
Isto porque os alicerces da alimentação e da industrialização do Egito são fincados no Nilo. Nesse continente desértico, suas margens são oásis para os milhões de habitantes que aproveitam de suas águas, e para os demais, um rio místico da antiguidade até nossos dias.
Esta relação visceral entre o Egito e o Nilo data da antiguidade, quando ele e seu delta eram idolatrados como deuses, e diz a lenda que para acalmar seus transbordamentos, os sultãos mandavam oferendas para a nascente na Etiópia. Eram reconhecidos e sábios; 86% das águas que irrigam o solo árido do país procedem da fonte etíope. É uma troca em sentido único. A fonte morre de sede enquanto no recipiente a água transborda.
O Nilo é formado por três rios: o Nilo Branco, o Nilo Azul e o Atbara. O Branco nasce no Burundi passa pelo lago Vitória e corre pelo Sudão até encontrar o Azul que vem do lago Tana na Etiópia. Mais da metade de suas águas procedem do Azul, mas os dois fluem juntos até o norte de Khartum, no Sudão, onde recolhem o Atbara também etíope.
De lá ele desce subindo no mapa até o Egito e o lago artificial Nasser (5.400 km², o segundo maior do mundo depois do Volta, 8.500 km², no Gana) e a controvertida barragem de Assuam. Depois do Cairo ele se bifurca nos rios Rosetta e Daneita. Antigamente havia inúmeros tributários, mas o fluxo lento da água, interferência humana e alta acumulação de limo extinguiram os menores e provocaram a desertificação de uma área larga demais para ser ignorada.
A ambição egípcia de apropriar-se da nascente do Nilo é histórica e envolveu muitos reinados famosos e invasões pouco gloriosas – o Sudão foi invadido várias vezes, inclusive durante o reinado da rainha de Sabá e de Nero, porque os egípcios temiam que um dia a água não chegasse mais às suas casas.
Apesar da natureza ser a responsável, era a Etiópia que levava a fama de ter poderes de controlar o Nilo à vontade. Por causa deste poder imaginário, em 1080, quando o sutão fatimida perseguiu os cooptas por causa da destruição de uma mesquita etíope, a baixa brutal do rio foi atribuída a uma represália da Etiópia e quando esta exigiu que o Egito deixasse os cristãos tranquilos e restaurasse as igrejas destruídas, foi atendida logo. Aliás, os cooptas foram poupados muito tempo no Egito, assim como o cristianismo que praticam, graças ao mito de que a Etiópia os protegia e para isto se servia da água.
Várias vezes na história os etíopes foram responsabilizados por fenômenos climáticos, mas a única verdadeira ameaça registrada e não cumprida, foi no século XVIII quando um rei teria ameaçado bloquear o rio. Ameaça vã, já que não dispunha de meios para pô-la em prática. De fato, nenhum fato concreto justificava o temor egípcio que acabou sendo transmitido aos colonizadores europeus que o invadiram.
A colonização na África não apenas traçou fronteiras arbitrárias que dividiram etnias irmãs e juntaram inimigos irreconciliáveis, como também criou um grave problema com a bacia do Nilo http://waterwiki.net/index.php/Nile. Neste caso, foi a Grã-Bretanha, que ocupava entre outros países o Sudão, o Egito, o Quênia e a Palestina.
No Egito e no Sudão, os ingleses domaram a vegetação da margem do Nilo e ele ficou navegável para grandes barcos. Enquanto isto a Etiópia, libertada da Itália e governada pelo indomável Hailé Salassiê, dona da fonte, fazia caminho a parte.
Após várias discussões entre os colonizadores italianos, franceses e ingleses, estes últimos patrocinaram em 1929 o Acordo das águas do Nilo e trinta anos depois, o Egito e o Sudão assinaram outro Tratado para uma exploração solitária. Ambos os acordos foram bilaterais e excluíam os demais países.
O tratado de 1929 registrou o volume do fluxo anual do rio (84 bilhões de m3) dos quais presenteou o Egito e o Sudão com respectivamente 48 e 4 bilhões de metros cúbicos – os 32 bilhões restantes sobraram para os oito vizinhos da nascente do rio. Países que o Egito não precisaria consultar para realizar obras hidráulicas e cujos projetos poderia vetar, caso seus interesses fossem contrários. E para completar, no período da seca, do dia 29 de janeiro a 15 de julho, o Suldão foi proibido de utilizar as águas do Nilo. No final das contas o tratado de 1929 assegurou ao Egito 60% do fluxo do Nilo.
Veio a Segunda Guerra, a Europa precisou das colônias africanas para parar os alemães na África, e no final, foi pagando bem que mal as suas dívidas. Os britânicos deram aos judeus mais de dois terços da Palestina para que criassem Israel (fazendo dos palestinos cidadãos apátridas), e perderam uma atrás da outra as colônias africanas. Começando pelo Egito em 1952 e o Sudão em 1956.
Nessa época a guerra fria entre a União Soviética e os Estados Unidos e seus aliados já tinha substituído a guerra de armas. Portanto, ao decidir construir a barragem de Assuam, o rei Nasser apoiou-se em Moscou para nacionalizar o Canal de Suez e assim financiar um pouco do custo com a cobrança de pedágio.
Em 1959 o general Abbud, ditador sudanês da época, negociou com Nasser outro tratado para garantir sua parte em Assuam e os dois países aumentaram seus recursos em 32 bilhões de metros cúbicos. O Egito ficou com mais 7.5 bilhões de m3 (passando a um total de 55.5 bilhões) e o Sudão com mais 18 (passando a 22 bilhões) – os dez bilhões restantes se perdem em evaporação. E juntos determinaram que as necessidades combinadas dos outros oito países não excederiam um a dois bilhões de metros cúbicos anuais e quaisquer reclamações seriam confrontadas a uma resposta egípcio-sudanesa unida, na forma de uma comissão técnica criada para defender seus interesses e negociar com os vizinhos a criação de uma Comissão sobre a bacia do Nilo.
E o Hidromed foi criado pela UNDP (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas http://www.undp.org/) só com a participação das ex-colônias britânicas – a Etiópia impôs como condição a revogação do Tratado de 1929. Burundi, Congo e Uganda se juntaram ao Quênia, à Tanzânia, ao Sudão, ao Egito e a Uganda em 1970, e em 1974, uma inundação no lago Vitória acelerou o processo para uma decisão comum. A Etiópia acabou aceitando participar como observadora e houve várias trocas de dados com a Comissão do rio Mekong.
Em 1994 emergiu um plano de ação para um programa de cooperação legal CFA (Cooperation Framework Agreement), e o Banco Mundial e outras instituições financeiras e governos investiram na criação de um fundo para a Iniciativa da Bacia do Nilo http://www.nilebasin.org/.
Desde então, a Etiópia vem construindo barragens em todos os rios possíveis. Obras que preocupam o Egito e deixam ecologistas e ONGs sociais na defensiva. Dentro de dez anos a energia deve ultrapassar o café e ser o primeiro produto de exportação do país. Os escândalos com as barragens – de licitação inexistente a danos humanos e ecológicos graves – não param. Vira e mexe o Banco Mundial é obrigado a afastar-se de um e outro projeto por desrespeitarem o ecossistema e as normas sociais às quais deveriam ser obrigados, mas não os veta. E com os préstimos do gigante italiano Santini e dos chineses, as obras se proliferam no rio Gibe e ameaçam populações inteiras de perder seus meios de subsistência, como os quenianos que vivem às margens do lago Turkana.
E a Etiópia, apesar de ter uma topografia montanhosa inadaptada à agricultura, está com projetos dispendiosos de irrigação intensiva, sendo que se os países da região se entendessem de maneira produtiva, ninguém precisaria prejudicar o outro e nem a biodiversidade. Bastaria que o Egito, que já explora toda sua área cultivável, aceitasse a partilha equilibrada da água; o Sudão, que possui terras virgens e férteis propícias à produção de cereais e a pastos, as utilizasse para uso próprio e para exportá-la; Quênia e Uganda produzissem trigo e cana de açúcar à vontade. Ninguém passaria fome e o Nilo serviria a todos de maneira pragmática.
Mas esta solução solidária ainda está longe de ser conjeturada. Em vez disso, a Tanzânia lançou um projeto de exploração do lago Vitória http://www.bujagali-energy.com/default.htm, Uganda também está construindo barragens e com o referendum pela autodeterminação do Sudão do Sul em 2011, a bacia pode passar de dez a onze, com um novo ator com idéias individuais.
No ponto de vista de cada um separado, os argumentos parecem válidos. Mas no cada um contra o outro, todos saem lesados. O Nilo é grande mas só tem um braço que não pode ser cortado. Para conservá-lo são e salvo, a hipótese plausível seria que todos assinassem o CFA para uma cooperação global e um uso responsável e solidário das águas. Porém, a hipótese provável é os sete países dos lagos equatoriais a assinarem deixando o Egito e o Sudão de lado. Como o Egito vai reagir, só ele sabe.

Viagem pelo Nilo


Barragem na Etiópia


sábado, 11 de setembro de 2010

E o Danúbio valsa na politicagem

  

Eis um rio diferente dos outros. Ele faz sonhar acordado até quem nunca percorreu suas margens. Talvez por ter inspirado poetas como o romano Ovídio na Antiguidade, por ter sido herói de romance contemporâneo de Claudio Magris, por despertar emoções em todos os salões em que a valsa de Johann Strauss é tocada.
E ele encanta quem navega seus 2.850 quilômetros da Alemanha onde ele nasce na Floresta Negra, desce à Áustria e embeleza Viena antes de cortar a Eslováquia e Bratislava para banhar a Hungria – Buda e Pesta – separar a Croácia da Sérvia e regar Novi Sad para chegar a Belgrado, às Carpatas romenas e à península balcânica antes de traçar a fronteira entre a Romênia e a Bulgária e os três braços de seu delta se unirem para aflorar a Moldávia, a Ucrânia e desembocar no sombrio Mar Negro.
O Danúbio é o segundo rio da Europa, após o Volga, banha dez países e no total, dezessete são diretamente ligados a suas águas tempestuosas.
Tiberius, que governou Roma até 37 DC, foi o primeiro a contratar engenheiros para proteger o Império dos caprichos do rio que matava a sede e de vez em quando inundava. Mas foi só no século XX que a energia se uniu à tecnologia necessária para domá-lo.
Em 1951 a União Soviética elaborou projetos para a construção de uma série de barragens na Hungria e na Tchecoslováquia para regularizar seu fluxo que perturbava o transporte de produtos para a Europa do Leste.
Nessa época não se falava em ecologia, ecossistema menos ainda, e a água parecia placidamente inesgotável. Portanto ninguém questionou a “correção” da natureza pelos técnicos moscovitas quando decretaram que um rio como o Danúbio precisava de não apenas uma, mas de várias barragens. Caso contrário, diziam, acumulará sedimentos, a navegação será perturbada, suas margens se degradarão e suas pontes desabarão com facilidade.
Era claro que três meses por ano as águas baixavam prejudicando a flora e deixando centenas de barcos encalhados por 250 quilômetros.
Por isto, vinte anos mais tarde as finanças e a tecnologia se encontraram e em setembro de 1977, a Hungria e a Tchecoslováquia assinaram um tratado, hoje inválido, para a construção do complexo hidráulico de Gabcikovo-Nagymaros. Mas foi na época do “choque do petróleo” e este deu à barragem a função de produzir também eletricidade.
Um açude imenso seria construído entre os dois países e dele sairia um canal de 17 quilômetros que desviaria cerca de 95% das águas do Danúbio para um complexo hidrelétrico em Gabcikovo, na Tchecoslováquia, e para outro a uma centena de quilômetros rio abaixo em Nagymaros, na Hungria. O objetivo era regularizar o fluxo do rio. As plantas foram feitas por engenheiros austríacos, húngaros e tchecos. No campo técnico a concórdia reinava. No campo político, a discórdia não tardaria a mostrar a cara.
No fim da década de oitenta, em um ataque indireto ao Kremlin, passeatas se multiplicaram nas ruas de Budapeste contra a construção da barragem. Lembro que quem estivesse implicado no projeto ou defendesse sua utilidade era logo tratado de stalinista e repudiado. A pressão da opinião pública foi tão forte que quando a direita tomou o poder em 1990, o presidente simplesmente revogou o tratado sem nenhuma consulta bilateral.
E as águas do Danúbio se turvaram.
A retaliação de Praga foi imediata. Ignorando a decisão de Budapeste, resolveu, também de maneira unilateral, prosseguir as obras desviando 25 quilômetros do Danúbio para seu território para construir outra barragem menos potente para substituir a interditada. Houve protestos como na Hungria, mas o país já estava dividido, e em 1993, Bratislava erigiu Gabcikovo como símbolo da Eslováquia.
O Danúbio em Budapeste
No ano anterior o leito principal do Danúbio na Hungria havia perdido da noite para o dia mais de 90% de suas águas.
Os postes indicadores de nível secaram, as camadas freáticas perderam três metros em poucos dias, a queda do fluxo foi tão brutal que os peixes morreram asfixiados na lama na qual o Danúbio foi subitamente atolado.
Os húngaros ficaram estupefatos, extremistas ameaçaram explodir a barragem, e a Comunidade Européia interveio para evitar a carnificina anunciada.
Um presidente de esquerda foi eleito na Hungria e o caso foi levado à Corte de Justiça da Háguia para ser julgado. Era a primeira vez que a Corte legislava sobre um conflito hídrico e o resultado foi ambíguo. O tratado de 1977 foi validado e as duas partes foram repreendidas. A Hungria por tê-lo rompido e a Eslováquia por ter continuado as obras.
Após o tapinha nas mãos, a Corte pediu que negociassem. Sem nenhuma vontade de se entenderem, mas sonhando com um lugar na União Européia, ambos concordaram a meia-voz para mostrar aos vizinhos ocidentais abastados que eles também eram civilizados.
Após discussões intermináveis, decidiram continuar o projeto comum e resolver os problemas ambientais mais graves.
A Europa respirou aliviada, mas a direita húngara fez uma aliança improvável com o partido verde para organizar mais passeatas para intimidar seus adversários, e acabou conseguindo que o governo recuasse uma vez mais.
Em 1998 o partido socialista foi derrotado nas eleições legislativas por uma direita que prometia curar o Danúbio de todos os males.
Quatro anos depois o estado do Danúbio havia piorado e milhões de dólares haviam sido gastos para destruir a barragem inacabada.
O resultado desta querela politiqueira é que de um lado a Eslováquia prosperava, do outro, a Hungria se cobria de mato, e no meio, as águas do Danúbio escorregavam.
Treze anos depois da decisão da Háguia, a discórdia ainda reina, nas rédeas da União Européia que não quer um conflito dentro de casa.
Danúbio invernal em Viena
A situação do Danúbio entre estes dois vizinhos representa um conflito hídrico clássico.
A ciência pode fornecer fundamentos objetivos para as tomadas de decisão, mas estas quase sempre se baseiam em julgamentos subjetivos e atendem interesses sócio-político-econômicos imediatos que extrapolam fronteiras e negligenciam a proteção dos recursos naturais.
Estima-se a trezentos o número de bacias fronteiriças de água doce no mundo. O crescimento demográfico, a poluição e a degradação constante aumentam o risco de conflitos ligados à água nestas regiões precárias.
O Danúbio, cuja bacia abrange 817 mil km² de oeste a leste até o mar Negro, constitui o recurso econômico essencial dos dezessete países que percorre e que seus afluentes molham.
A bacia do Danúbio é a mais fragmentada do mundo em relação às fronteiras políticas. E tirando contendas como a que vimos acima, os países ribeirinhos vêm experimentando instrumentos de gestão comum para proteger o rio, sobretudo no tocante à qualidade da água. Pois no final das contas a preocupação é a mesma do resto do mundo: água potável.
O Tratado de Paris de 1856 havia instituído uma Comissão Européia do Danúbio que garantia liberdade de navegação por todos os países que ele atravessava, mas em 1948, a Convenção de Belgrado substituiu a noção de “liberdade de navegação” por “navegação controlada”. A dialética aplicada à água.
Esperava-se que as transformações geopolíticas da região danubiana apaziguassem as rivalidades por maiores porções de água, mas o fim do Comunismo acentuou o nacionalismo e reanimou conflitos étnicos que dormiam. Nos últimos vinte anos, várias comissões foram reunidas para acalmar ânimos alterados.
Em 1985, a declaração de Bucareste, visando melhorar a qualidade da água, foi assinada; dois anos mais tarde a Alemanha e a Áustria assinaram um acordo de gestão comum das águas e em 1991, a Comunidade Européia financiou, com outras entidades, um programa ambiental para a Bacia danificada.
Poluição de metais no Danúbio
A Convenção de Belgrado caducou com o Comunismo e em 1994 um acordo de cooperação e uso durável do Danúbio foi assinada em Sofia e quatro anos mais tarde uma comissão internacional foi instalada (http://www.icpdr.org/).
Desde então a qualidade da água tem melhorado embora ainda haja problema rio abaixo.
Cinquenta a oitenta por cento das águas do Danúbio estão em bom estado ecológico no ponto de vista químico e biológico, mas apenas 40% no tocante à hidro-morfologia. Leia-se estações hídricas obsoletas nos países do Leste e certas obras poluidoras alemãs e austríacas rio acima.
No início do milênio um plano financeiro caro e arrojado foi lançado para reduzir a eutroficação, ou seja, o aumento de nutrientes na água do Danúbio e do Mar Negro. Apesar disto, o Conselho da Europa teve de intervir dois anos atrás para evitar um desastre ecológico: o Danúbio despeja no mar 280 toneladas de Cádmio, 60 de mercúrio, 4.500 de chumbo, seis mil de zinco, mil de cromo e 50 mil de hidrocarbonetos.
Por isto, em 2009 representantes de quatorze países ligados pelo Danúbio se reuniram para tomar medidas de contenção de enchentes, e em fevereiro deste ano, reiteraram em Viena a “Declaração do Danúbio” após avaliarem os progressos na proteção durável das águas e outros recursos ecológicos que estão sendo aplicados.
No final adotaram um “Plano administrativo da bacia do Danúbio” com medidas concretas para melhorar sua salubridade até 2015. Ou seja, infra-estruturas de tratamento de detritos que reduzam a poluição orgânica que intoxica o mar e maltrata o rio celebrizado.
(Como se sabe, na busca de eficiência de lavagem e amaciamento da água, é comum usar fosfatos nos detergentes domésticos e industriais; embora estes mesmos produtos que nos dão conforto imediato aumentem os nutrientes e reduzam a biodiversidade. Um custo alto que não precisa mais ser provado.)
Aqui paro. E os vídeos de hoje são sem conflito. Têm a doçura lúdica que este rio inspira em todos os nomes que origina; de Donau a Dunaj, Duna, Dunav, Dunărea a Дунай, até Tuna na Turquia, versões linguísticas do latim Danubius, o deus romano dos rios. O Irã o chama de dānu que em farsi significa algo como água corrente. Em grego, ele é conhecido pelo nome de Ἴστρος Istros, uma das 25 crias da união entre Tétis e Oceano, citados por Hésiodo na Teogonia onde relata a criação do mundo.
O Nosso Amazonas, que vive um ano fatídico em que suas águas baixaram mais de cinquenta centímetros, merecia fazer parte desta lista na qual o próprio Hesíodo dizia faltar no mínimo três mil rios. Proteger a mata, proteger suas águas, é vital. Nós sabemos disto. Aí não há conflito geopolíto – só desmatamento e cobiça. Com determinação política, ambos podem ser contidos.
Enquanto isto, despeço-me do Danubius lhe desejando pronto restabelecimento e uma beleza perene que continue inspirando obras artísticas, literárias e os românticos de hoje e de sempre.

Para os românticos

Para os experimentalistas

Para os melômanos

domingo, 5 de setembro de 2010

A Ásia Central ferve pelos Daria


Há três semanas mencionei o Syr Daria e o Amu Daria como coadjuvantes ativos do abastecimento do exaurido Mar Aral. Já sabemos porque suas águas não chegam ao Aral, mas sua exploração conflituosa não para na irrigação desmesurada das plantações de algodão. Estes rios abastecedores da Ásia Central são também protagonistas acidentais de uma disputa crescente na região. http://www.lamiradaaleste.com/2008/08/
O Syr Daria tem 3.078 km de comprimento, nasce nos montes Tian Shan no Quirguistão e banha também Casaquistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, com uma população ribeirinha de 13.4 milhões.
O Amu Daria tem 2.620 km de comprimento, nasce no norde do Hindu Kush no Afeganistão e banha também Tadjiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, com uma população ribeirinha de 15.5 milhões.
No período soviético, ou seja, antes da independência das repúblicas da região em 1991, além de passarmos de um lado para o outro como no Brasil se atravessa um estado, os bens naturais circulavam como as pessoas de diversas origens que iam e vinham e se instalavam onde encontravam uma boa oportunidade. No tocante à água, Moscou fornecia os meios financeiros e técnicos para a construção e manutenção das infra-estruturas hidráulicas, assegurava salubridade, e na superfície, a paz reinava.
Em seguida as cinco nações recém-formadas concordaram com a manutenção do sistema de quotas soviético, mas a Guerra civil no Tadjiquistão, a decadência econômica do Quirguistão e o nacionalismo exacerbado de todos os lados fizeram que a água logo virasse fonte de conflito e instrumento de chantagem.
Casaquistão, Turcomenistão e Uzbequistão, países mais desenvolvidos, precisam de água para o setor agrícola (a produção pesada de algodão que secou o Aral) e para uso doméstico de uma população crescente. Porém eles se encontram rio abaixo. Rio acima, o Quirguistão e o Tadjiquistão tentam controlar seus recursos para usá-los na agricultura emergente e em energia.
Em 1992 a ICWC (Comissão de Coordenação de Água Inter-estados) foi criada para administrar o potencial hídrico, e as rivalidades. Porém ela nasceu vedada às organizações não-governamentais e controlada por executivos uzbeques suspeitados de privilegiar os interesses nacionais. Insatisfeitos, os demais países interessados se afastaram e a falta de verba tornou seu funcionamento bastante precário.
O escândalo do Aral gerou doações de vários organismos internacionais, mas nenhum deles releva os obstáculos políticos que entravam quaisquer soluções apresentadas. Começando pela má-vontade de cooperação dos e entre os Estados, que estão sempre se acusando de exceder as quotas que lhes cabem, negociadas em 2001 após anos de ataques e retaliações que a médio prazo prejudicavam todas as partes.
Na prática, cada um continua tentando apropriar-se do máximo de recursos de maneira unilateral e todos acabam de alguma forma lesados. Por enquanto o único país alheio à batalha hídrica que inflama os demais é o Afeganistão, que desde 2001 consome muito pouca água do Amu Darya, já que sua agricultura foi quase toda substituída pelo cultivo de papaver (60% da área cultivável) usado na fabricação triplicada de heroína.
As tensões criadas pela água e a energia por ela gerada têm desestabilizado a Ásia Central e o clima entre os governos e as populações envolvidas vive carregado. A carência de água potável e a competição pelo Ouro Azul acirra os ânimos e têm estimulado contendas étnicas entre uzbeques e quiguises no vale de Fergana onde vivem sete milhões de pessoas de diversas nacionalidades. Nesta planície onde Alexandre teria construído sua Alexandria Eschate no século II AC, os russos criaram em 1876 um oásis aluvial que mais tarde seria multiracial e um celeiro fértil. Hoje é palco de combates mortíferos por causa de água.
Apesar da abertura dos beligerantes a soluções e prestações tecnológicas e técnicas de empresas e organismos internacionais, os cinco países rejeitam interferência estrangeira na instalação e manutenção de quotas. Na falta de solução política, um dia ou outro, um deles, ou dois, três, quatro ou todos eles, pegarão em armas. Manobras militares uzbeques têm levantado suspeitas no Quiguistão, que teme pela segurança de seu reservatório no rio Naryn, o Toktogul, o maior da região, mas cujo volume também tem baixado.
Falando nisso e para fechar esta matéria lembrando obras hidrográficas mal pensadas, mal administradas e relevando o valor da água potável, vamos dar uma parada no Quirguistão, que viveu recentemente um golpe de estado e que até 2008 estava na lista dos vinte países com mais alto nível de corrupção do planeta.
Este país de apenas 199.9 mil km² e uma população de 5.48 milhões de almas está espremido entre o Casaquistão, a China, o Uzbequistão e o Tadjistão, mas Moscou lhe deixou um precioso legado: Toktogul, usina da qual tira sua energia e conforme a vontade, utiliza como arma fluvial. Durante o inverno o uso intensivo da hidrelétrica provoca o escoamento de uma água inutilisável e nessa depressão desértica se forma um lago estéril de 200 km de comprimento, 30 km de largura, com 16 km cúbicos de uma água que teria ido para o Aral. Ele já está esgotado, mas ainda é possível salvar o oásis de Bukara que hoje está ameaçado.
Mal-acostumado com a abundância da era soviética em que todos os bens essenciais de consumo eram gratuitos, e sem o freio da educação sobre a preciosidade da água, o país vive em constante desperdício e a negligência das contruções hidráulicas soviéticas está em toda parte. Moscou deixou para trás obras monumentais cuja manutenção foi quase toda abandonada e parece que tudo vaza: encamentos, barragens, e o Grande Canal turcomeno perde no deserto de Karakum a mesma quantidade de água que fornece à irrigação local.
Alguns habitantes da região começam a tomar consciência do perigo a médio prazo de carência de água para a agricultura e sobretudo de água potável, mas coletivamente pouca coisa tem sido feita em sentido contrário. ONGs locais temem que a falta de uma política hídrica comum e responsável na Ásia Central faça com que a água vire realmente uma arma. Como quando os conquistadores mongóis Gengis Khan (século XIII) desviou o Amu Daria para inundar cidades e Tamerlão (século XV) extinguiu oásis quebrando canalizações com o mesmo objetivo de subjugar o inimigo.
Os próprios russos em 1868 só conseguiram conter uma batalha na guerra milenar entre os emirados Uzbek e Kokand pelo rio Zeravchan cortando a água da cidade de Bukara. Mais tarde os soviéticos dividiram a região em pequenas repúblicas desiguais. Umas montanhosas cheias de água como o Quirguistão e o Tadjistão e outras mais fertéis e mais poderosas como o Cazaquistão, o Uzbequistão e o Turcomenistão, mas menos bem dotadas em água. Para paliar as desigualdades, Moscou construiu barragens nas fronteiras para que o potencial hídrico local fosse compartilhado. E é aí que na política do cada um por si que hoje vigora, a água escasseia, ferve e pode queimar todo o percurso do Syr e do Amu Daria. E então, em vez de correr de inundações políticas monitoradas, todos corram atrás de água potável.