quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O sistema chinês no controle das águas

O papel da China no mundo da água suscitou curiosidade. Para esclarecê-lo um pouco, resolvi abordá-lo pelos rios e represas que compõem a personagem. Começando pelos mais imponentes.
A Barrragem das Três Gargantas no rio Yangtze (o terceiro do mundo após o Amazonas e o Nilo) na província de Ubei, é o segundo maior complexo hidrelétrico do planeta (Itaipu é o primeiro).
Este reservatório de 1.084 km² com capacidade de 18.200 megawatts é a realização de um sonho que durou 80 anos, de Sun Yat-Sen em 1919, Mao Tse-Tung, Teng Xiao-Ping, até o presidente Jiang Zemin decidir a construção em 1992 com 1767 votos a favor, 177 contra e 664 abstenções sem precedentes no Congresso Nacional do Povo (CNP). A controvérsia levantada pelas previsões negativas dividiu o voto, mas o sistema autoritário é que teve voz ativa.
O projeto começou mal. Problemas tecnológicos, praga de corrupção, custos mirabolantes financiados por investidores privados – o Banco Mundial negou crédito logo que viu a longa lista de irregularidades: 13 cidades, 140 cidadezinhas e 1.350 vilarejos inundados, 1.2 milhões de pessoas desalojadas com grande dificuldade de realojamento, 600 km² de florestas e terras agrícolas inundadas, e um impacto ambiental igualmente desmesurado.
Além destas catástrofes inaugurais, hoje constata-se a sedimentação galopante do reservatório, perda de milhares de espécies em vias de extinção, recuo do delta do rio, elevação do sal à superfície e outras ocorrências perigosas. Mas a bem da verdade, o açude passou em um teste (além do fornecimento energético previsto) importante ao resistir estoicamente à enxurrada avassaladora da inundação de maio protegendo muitas vidas.
Em contrapartida, a submersão de centenas de fábricas, minas e descargas de lixo, assim como a proliferação de centros industriais agregados, jogaram no rio a poluição que os cientistas temiam e contaminaram as águas até na superfície, coberta de detritos. Como as consequências são visíveis, até cientistas locais e membros do governo vêm manifestando preocupação com o impacto social e ambiental das Três Gargantas.
A erosão nos reservatórios tem provocado resvalamentos e ameaçado o ecossistema mais rico do leste do mar da China, mas a preocupação maior dos especialistas é que o peso da água provoque também uma indução sísmica – como o terremoto em Sichuan, em 2008, causado pela construção da represa de Zipingpu no planalto tibetano.
Fala-se a meia-voz na Europa que a Barragem das Três Gargantas é um modelo de desastre permanente e evitável, mas ninguém levanta a voz para impedir a China de replicá-lo em casa e fora.
Pequim tem uma cascada de projetos unilaterais de usinas em algumas de suas bacias mais biodiversas e prístinas, como no rio Mekong (que é o segundo do mundo em piscosidade, após o Amazonas) que compartilha com Birmânia, Thailândia, Laos, Cambodia e Vietnã, no rio Nu que compartilha com a Thailândia e a Birmânia e no Yangtze e afluentes próximos da nascente.
Este ano Birmânia, Camboja, Laos, Thailândia e Vietnam sofreram com a maior seca dos últimos 50 anos, que deixou milhões de pessoas sem água. E apesar de estudos científicos mostrarem que ela foi causada por um volume reduzido de chuvas, estes cinco países em reunião em Bangkok para discutir sobre as causas e consequências do desastre, apontaram o gigante de cima. Para eles a China é a culpada e não adiantou nada o representante do CNP negar e levantar o argumento de um simples fenômeno natural.
No final, os Estados afetados lhe solicitaram mais informação, mais cooperação, e mais coordenação nas construções de obras hidráulicas no Mekong. Desde então a China começou uma campanha para tentar mudar a percepção de que seus açudes estão sequestrando água. Ainda não conseguiram convencer ninguém. Continuam tentando e ao mesmo tempo tocando mais de 80 obras hidrelétricas no Mekong e seus afluentes, com a mesma política.
Agora que o gigante asiático aprendeu o milionário caminho das águas, não recusa nenhum contrato. Os Governos e companhias internacionais (inclusive brasileiras) o ajudou a custear e construir a Barragem das Três Gargantas e Xangai aprendeu a lição direitinho. O país não para de oferecer seus préstimos alhures sem nenhuma preocupação com o impacto social ou ambiental dos projetos. Seus bancos e empresas estão envolvidos na construção de 257 barragens em 59 países africanos e do sudeste asiático. Incluindo os projetos polêmicos de Kamchay, no Camboja, de Mphanda Nkuwa, em Moçambique e Merowe, no Sudão (com o qual, além de tecnologia, o gigante asiático coopera com soldados e armas para o Darfur).
Nada freia sua capitalização das riquezas planetárias, mesmo sabendo que em vários casos há melhores soluções do que desapropriar, inundar cidades e revolucionar o ecossistema.
Irrelevam a Comissão Mundial de Barragens (World Comission on Dams, WCD www.dams.org/) criada pelo Banco Mundial e o IUNC (International Union for Conservation of Nature http://www.iucn.org/) para estudar durante dois anos todos os aspectos da questão hidrelétrica e hidráulica (mil projetos em 79 países).
“Embora as barragens contribuam para o desenvolvimento humano, em demasiados casos o preço para garantir lucros têm sido altos demais para as populações desalojadas, para os cidadãos que as custeiam e para o meio-ambiente.” Foi o veredito final da WCD.
A estatística mostra que a construção das usinas ativas no mundo desapropriaram entre 40 a 80 milhões de pessoas e muitas destas nunca recuperaram uma moradia comparável ou aceitável. E em inúmeros casos as usinas levaram a perdas irreversíveis de espécies, ecossistemas, e os esforços para amenizar estes impactos têm sido infrutíferos.
Para prevenir o irremediável a WCD apresentou ideias inovadoras para a planificação de barragens e normas que sugerem a avaliação dos direitos e dos riscos de todas as partes interessadas antes de iniciar uma obra hídrica. A Comissão estabeleceu sete prioridades estratégicas e 26 guias de ação durante cinco etapas importantes do processo decisório de construção. Várias instituições internacionais ratificaram estas recomendações. O Banco Mundial e outros investidores internacionais as seguem à risca. Daí terem se retirado das obras de Iluli na Turquia.
A China parece não ter lido nem a primeira linha. As empresas brasileiras especializadas já devem ter cópia e espera-se que pesem os danos ecológicos, os prejuízos humanos e insistam na aplicação das diretivas da WCD antes de embarcarem em obras hidrelétricas na nossa América e pelo mundo afora.
A minha amiga versada em ecologia de campo e de estudo, leu todas as regras e apresentou três propostas que para um leigo parecem óbvias: Construir açudes em menor quantidade e de melhor qualidade; focalizar recursos em melhores soluções de desenvolvimento; derrubar barragens que estejam causando danos irremediáveis.

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