Se a história servisse de lição, a exploração bulímica dos Grandes Lagos na América do Norte seria evitada com o exemplo do mar de Aral, que separa o sul do Casaquistão do norte do Uzbequistão.
O nome mar de Aral poderia ser traduzido como Mar das Ilhas, devido às centenas de ilhotas que o vestem, ou vestiam, como um tecido de bolinhas. Ele era alimentado pelos rios Amu Daria (chamado Oxus na Grécia antiga, ele separou os impérios de Ghengis Khan e de Alexandre) e o Syr Daria (onde, em 329 AC Alexandre teria construído a cidade de Alexandria Eschate), que nascem na Cordilheira do Pamir, no Tajistão.
As chuvas na região são raras (20cm por ano), o clima é seco e até 1960, a população local vivia da pesca e da cultura do cannabis sativa, planta nativa com baixo teor psicotrópico, cujas folhas, ricas em fibra, eram usadas tradicionalemente na confecção de tecido, cordagem, construção e alimentação das ovelhas e dos karakuls (raça de ovinos com pelos mais fartos).
O mar Aral era o quarto mar interno do mundo, com uma superfície de 66.900 km² (uma Bélgica). A região em que ele se situa formava um ecosistema de grande biodiversidade. No início da década de 80, fiquei impressionada com a beleza do lugar, embora já desse para sentir uma deterioração e as margens já estarem bem recuadas. Aziz, um filho de pescador reconvertido em cultivador de cannabis sativa, contou, com olhos sonhadores, que quando era menino o mar era cheio de peixe, gente, navios, que era um espetáculo de verde, que tinha água a perder de vista.
Tentei imaginar, e tirando os navios, pensei no nosso Pantanal e em como seria se o esvaziássemos noite e dia... Nem pensar! Retornei à região 10 anos mais tarde e o que vi foi uma natureza devastada, sal enlameado, enfermidades e fome generalizada. O Aziz parecia 30 anos mais velho do que os 10 anos que nos separavam, dois dos 5 filhos estavam enterrados – um morto de tuberculose o outro de anemia, e o sexto, de dois anos, tinha nascido deformado. Alguns meses atrás, a família já não estava. Os sobreviventes haviam migrado para outras paragens, tinha sal por todos os lados e a paisagem desértica deixou meu coração apertado.
Como é que em 40 anos uma região passa da opulência à miséria total? Como um mar perde a metade de sua superfície e três quartos do volume de água?
O paradoxo está justamente na fartura deste mar. No fim da década de 50 a água parecia inesgotável aos chefes supremos da então União Soviética – cujas 15 Repúblicas incluiam os dois países citados acima. Foi quando nasceu o programa “conquista das terras virgens” que foi o certificado de morte da Bacia (e de outros lugares).
Nos 40 anos seguintes, os canais construídos tiraram 60% do débito dos dois rios que a alimentavam para irrigar sete milhões de hectares (1.446.200 alqueires goianos) de algodão (a quarta produção mundial). E o preço foi o Aral, que passou gradualmente de 55 milhões de metros cúbicos anuais em 1960 aos 7 milhões atuais. De repente, o imenso mar virou dois desiguais: o Mar Pequeno ao norte e ao sul o Mar Grande. A salinidade crescente das águas (de 10 gramas por litro em 1960 a 120, no Grande) provocou a extinção das vinte espécies de peixes nativos e já em 1980, já não havia mais atividade aquática.
Hoje, em vez da imensidão das águas e a alegria que este ex-pescador e ex-camponês conheceu na infância é sal, deserto, carcaças e alguns ratos e camelos desgarrados.
O Mar Grande está condenado ou definitivamente reduzido. A água se foi e deixou um grave problema sanitário por causa do abuso de pesticidas e adubos químicos. A concentração de produtos tóxicos nos alimentos, a água insalubre, os ventos que disseminam em quilômetros a areia contaminada, levaram à família do Aziz e a 63% dos adultos e 60% das crianças da região, patologias respiratórias, digestivas e renais, quando não nascem deformados.
Mas talvez os males dessa gente não venham só da exploração selvagem da água. Há algo ainda mais perigoso enterrado em uma de suas ilhas, ironicamente chamada “Ressurreição”, situada na fronteira entre os dois países. Ela abrigou, no época soviética, um laboratório secreto de armas bacteriológicas que testava e estocava células patógenas como o antrax, a peste bubônica, o tifo e a varíola. Tudo isto, segundo o Kremlin, devidamente enterrado e a ilha descontaminada.
Por garantia ou por razões desconhecidas, em 2001 o Uzbequistão assinou um acordo com os EUA para a limpeza da ilha. Não se sabe como esta está sendo realizada porque desde então o acesso à Ressurreição é restrito.
Mas isto é no Mar Grande, diante do qual, o sonho de uma possível reunião de águas com o Pequeno parece improvável e impossível.
Mas no Pequeno, com verba, determinação e perseverança, parece haver esperança e ela tem a cara do Banco Mundial e do governo do Casaquistão. Juntos, financiaram o Kokaral, um açude de 13 quilômetros no Mar Pequeno. Este permitiu a recuperação de 50% da superfície perdida e uma segunda represa em construção no Syl Daria pretende reconquistar mais quatro metros em 2011.
Nas cidadezinhas vizinhas sente-se um retorno à vida. Carpas reaparecem nas águas e os meninos reaprendem a pescar. Mas o verde só vai chegar com o reflorestamento. Uns arbustos chamados saxaul, cujas raízes buscam água em profundidade. Depois é contar com a reciprocidade da natureza para amenizar o frio. Com o desaparecimento do mar, a temperatura no inverno desce a 45° negativos e no verão atinge 50°.
Uma amiga, militante ecologista com certa influência em instâncias internacionais, sonha em levar um dos espoliadores da bacia dos Grandes Lagos ao deserto salgado do Grande, ex Mar, ex Aral. Talvez consiga. Eu lhe disse que se este visitante potencial estivesse em Moscou ou nas imediações nas três últimas semanas, intoxicado pela fumaça dos incêndios imprecedentes que desfalcaram a Rússia e o mundo de quilômetros de árvores (estima-se 100 anos para a reposição das florestas queimadas), em consequência das mudanças climáticas e as negligências ecológicas que as causam, pode ser que ele despertasse para o perigo.
Ao que ela respondeu que, infelizmente, nada e ninguém garante que mesmo que este jovem executivo vá ao Aral via Moscou sobrevoando a imensa zona calcinada, em um ou outro lugar ou em ambos, o que a nossos olhos é devastação nos dele não pareça apenas oportunidade.
Mas quem tem olhos e não é cego, olhando, pode ver e enxergar.
A desertificação do Aral em data e imagem
Documentário Al Jazeera: People of the lake
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