domingo, 3 de fevereiro de 2013

ARGO: estória e história de um resgate no Irã revolucionário


Em 1953, a CIA e o MI6 (serviço secreto britânico) orquestraram um golpe de estado no Irã para tirar o presidente Mohammad Mosaddegh, eleito democraticamente, e substituí-lo por uma monarquia militarizada dirigida pelo Xá Mohammad Reza Pajlavi.
O regime ditatorial é duro e esmaga a oposição intelectual e religiosa violenta e indiscriminadamente.
Em 1979, as rebeliões populares contra o regime se proliferam e no dia 22 de outubro de 1979, o Xá do Irã Mohammad Reza Pahlavi é hospitalizado em Nova Iorque. Foi tratar do câncer que o mataria no dia 27 de julho de 1980, no Egito. Após longa agonia.
O Irã, em plena revolução islâmica, exige que os Estados Unidos extradite o Xá para que pague por seus numerosos crimes - Há anos Pahlav fazia reinar o terror contra os religiosos, intelectuais, enfim, seus oponentes de forma geral.
O então presidente Jimmy Carter nega a demanda do Ayatollah Ruhollah Khomeini - que ainda se lembrava da Operação Ajax usada pelos EUA para destruir a democracia no Irã reinstalando o Xá (Blog19/02/2012 http://mariangelaberquo.blogspot.fr/2012/02/ira-armacao-ou-perigo-embasado.html ). 
No dia 04 de novembro, em um ato de retaliação à proteção gringa ao ditador fugido, dezenas de estudantes iranianos invadem a embaixada estadunidense em Teerã exigindo justiça.
Durante as duas horas de sítio os funcionários queimam arquivos e buscam uma saída quase impossível, sob o olhar das câmeras de televisão que mostram as imagens em direto para o mundo.
Os jovens acabam penetrando no recinto diplomático e dos noventa funcionários, 66 estão na linha de mira dos revolucionários - 53 viram reféns no local, três são detidos no Ministério das Relações Exteriores, e seis escapam para as embaixadas da Suécia e do Canadá.
Duas semanas mais tarde, treze dos 66 reféns são libertados. Um outro será solto em 1980.
Foi o início de um longo pesadelo para Jimmy Carter. Pesadelo que duraria 444 noites e que terminaria no dia 20 de janeiro de 1981. Após ele deixar o governo e lamentar vários fracassos em tentativas de resgate.

Nesse ínterim, o governo do Canadá dá apoio total aos funcionários estadunidenses acolhidos na embaixada. Dois ficam na casa do embaixador Ken Taylor e sua esposa Pat. Quatro ficam na casa de John e Zena Sheardown, inclusive o que tinha fugido para a embaixada da Suécia .
John Sheardown é o principal representante de imigração canadense no Irã e é com ele que os EUA se comunicam primeiro.
O governo canadense - impecável do início ao fim deste evento histórico, ou seja, desta revolução que nos primeiros meses caçou e executou bruxas e fadas - oferece seus préstimos inclusive a todo ocidental que estivesse com problema com os revolucionários exaltados.
A estadia dos hóspedes compulsórios nas residências dos dois diplomatas deveria ser curta, mas acaba durando muito mais do que se esperava. De uma a duas semanas, passa a meses. E com a extensão do tempo, aumenta a insegurança e a possibilidade dos funcionários serem descobertos.
Vários planos de resgate são elaborados. Cada um mais improvável - como mostra bem o filme "Argo".
No dia 12 de novembro os EUA expulsam do país dezenas de iranianos, bloqueia US$8 bilhões de bens da nova República Islâmica, e continua garantindo a segurança do Xá.
As pressões sobre os iranianos aumentam, mas estes também não entregam os pontos.
Continuam exigindo o retorno do Xá e alguns gestos diplomáticos. Dentre estes, desculpas pelo golpe que os Estados Unidos patrocinaram para derrubar o Primeiro Ministro Mohammed Mossadegh em 1953 para pôr o tirano em seu lugar. Assim como a promessa de nunca mais interferir  nas questões domésticas iranianas.
Enfim, solicitam a promessa de não-ingerência gringa, com que todos os países do planeta sonham.
O que é pedir demais a um país pragmático que vive da potência militar e de parasitismo de recursos humanos e naturais alheios.
A resposta da Casa Branca não muda. Em vez de desculpar-se e prometer ficar quietinho em casa, Jimmy Carter autoriza as tais operações vergonhosas.

A dos "hóspedes" canadenses, contada no filme Argo, foi a única bem sucedida. Graças ao Canadá, e a dois latinos: Antonio Joseph Mendez, representado por Ben Affleck. E "Júlio", até hoje um ilustre desconhecido que nem aparece no filme.
Outras operações seguiram à Argo do pôster original acima conservado pela CIA.
Mas nenhuma foi bem sucedida.
A Operação Eagle Claw, cujas fotos do fracasso estão abaixo, foi a mais humilhante para os Estados Unidos.
Foi levada a cabo na madrugada do dia 24 para 25 de abril de 1980.
Apesar do nome pomposo, Eagle Claw foi um desastre logo de cara por falta de análise geográfica.
Na primeira parte da operação, aviões de transporte deveriam encontrar nove helicópteros em uma faixa aérea no Grande Deserto do Sal - 1, no leste do Irã, perto de Tabas.
Uma tempestade de areia destruiu dois helicópteros logo na aterrizagem.
A missão foi cancelada, mas o avião voltou a decolar, um helicóptero trombou nele e no choque morreram oito soldados e quatro ficaram feridos.
Os militares estadunidenses foram transportados para Teerã e viraram atração em parada revolucionária. Os destroços dos helicópteros foram expostos à mídia internacional transformando os Estados Unidos em alvo de risadas.
O Secretário de Estado Cyrus Vance demitiu-se e o Pentágono começou a preparar um segundo resgate com a CIA.
Desta vez, com aviões Hércules modificados para aterrizagem e decolagem curtas, em um estádio de futebol.


O programa ultra-secreto foi chamado de Credible Sport.
Entretanto, o que foi mesmo incrível foi o avião ter caído antes da missão começar.
Durante um treino na base militar Eglin, na Flórida, em outubro de 1980, as bombas foram lançadas cedo demais e provocaram um incêndio na aeronave. Como mostra a vídeo acima.
A tripulação saiu ilesa, mas a Casa Branca, e sobretudo Jimmy Carter, sairam queimados.
Com o tempo e novos eventos fronteiriços e internacionais - a morte do Xá Reza Pahlav e a guerra entre o Irã e o Iraque - os iranianos foram ficando mais receptivos a negociar os reféns de maneira produtiva.
Os contatos foram feitos em 1980. Antes das eleições presidencias nos Estados Unidos.
O Irã já estava então mais preocupado com a guerra que estava começando contra o Iraque de Saddam Houssein (financiado pelos Estados Unidos) do que com os reféns estadunidenses, que, no fundo, já estavam lhes dando era trabalho.
Mas Carter foi descartado dos diálogos. Aliás, perderia as eleições, dizem, por causa de seus fracassos neste dossiê iraniano. Quem estabeleceu contato e negociou a libertação dos reféns foi o seu sucessor na Casa Branca: o ex-ator Ronald Reagan.
Logo após as eleições as negociações se intensificaram e estava tudo resolvido antes do fim do ano. Porém, a políticagem tem seu próprio calendário. Os reféns esperariam até o ano seguinte, até o dia 20 de janeiro de 1981, um dia após a posse de Reagan, para retornarem ao lar.
Poderiam ter passado o Natal em casa com a família se não fosse a vontade de Reagan de iniciar o mandato como salvador da pátria.
Um fato vergonhoso, indígno, entretanto, poucas foram as vozes que se levantaram para criticar o oportunismo holywoodiano do novo presidente dos Estados Unidos.
Em troca dos reféns, a Casa Branca descongelou os US$8 bilhões iranianos que Carter sequestrara e garantiu imunidade a todos os participantes da novela dramática.
A Operação Argo só foi revelada ao público em 1997.
Em 2000, com base no Antiterrorism Act - ato institucional que permite que Washington esqueça os direitos democráticos dos cidadãos estadunidenses e faça o que lhe der na telha dentro e fora dos EUA - os reféns e seus familiares tentaram processar o Irã, em tribunal nacional.
Ganharam a causa.
Os iranianos nem se deram ao trabalho de fornecer defesa. Haviam se protegido bem com o ex-presidente Republicano Ronald Reagan. E o de então, George W. Bush, nem se quisesse poderia anular a assinatura de seu colega de partido sem causar um grave incidente diplomático.
Sem contar as represálias iranianas que seguiriam.
Portanto, em vez de apoiar a venalidade dos ex-reféns e familiares que queriam lucrar em cima dos iranianos, Washington tentou obstacular o processo como pôde.
No final, o Tribunal Federal declarou o óbvio. Que nada podia ser feito para os oportunistas serem   "indenizados" por causa do acordo assinado por Reagan justamente para que eles fossem libertados.

Desenho do aeroporto Mehrabad.
Feito pelo embaixador canadense Ken Taylor para a operação de resgate.
Agora vou passar ao filme de Ben Affleck. Que é a razão desta matéria que tenta responder às perguntas dos curiosos em história mais do que em estórias cinematográficas.
Para começar, o Argo 2012 presta um pouco da homenagem que o Canadá e Taylor merecem, mas irreleva o papel importante de Sheardown. O que é uma pena. Sem ele, nada teria dado certo.
Quanto ao Tony Mendez que Ben Affleck encarna na tela, conseguiu desaparecer na massa porque era um mexicano típico, bigodudo, que podia passar facilmente por iraniano. Assim como o tal "Júlio".
Os detalhes do filme são impecáveis no tocante à reconstituição das imediações da embaixada dos EUA. Graças às imagens que as televisões do mundo inteiro gravaram e quem tiver paciência de ficar no cinema até o fim dos créditos pode comparar com as imagens de arquivo que Ben Affleck fornece.
No tocante aos fatos, segundo o então Primeiro Ministro iraniano Abolhassan Bani Sadr - que vive atualmente na França, em Versalhes - o Imã Khomeyni concluiu o acordo com Ronald Reagan dois meses antes das eleições para a Casa Branca. E um dos compromissos assumidos por Reagan - em Paris, através de Argel - foi de armar o Irã contra o Iraque de Saddam Houssein.
(A guerra entre Irã e Iraque começou no dia 22 de setembro de 1980, por causa de um conflito territorial que opunha os dois países - a região do Chatt-el-Arab, o delta do Tigre e do Eufrates, e do Khouzistão, que os ingleses denominam Arabistão.)
A reconstituição do filme sobre o clima de tensão no aeroporto Mehrabad nos meses e primeiros anos que seguiram a revolução também são corretos. Até os jornalistas atravessavam o saguão e os controles com o coração batendo acelerado, querendo sair do peito, de medo que algum agente de segurança não fosse com a cara dela ou dele.
O aspecto era sinistro. As perguntas eram incisivas. Enfim, o mesmo que acontece em outros aeroportos, inclusive ocidentais, com personæ non gratæ.  O aeroporto Mehrabad não é uma exceção tão rara. Em vários aeroportos do mundo, inclusive ocidentais, de países que gostam de dar lição de democracia, os jornalistas têm a impressão que os computadores registram cada artigo assinado para jogar na cara do autor que está lá apenas a trabalho.
Como confio na idoneidade ideológica de Ben Affleck, acho que os pecados do filme se devem mais a recursos de dramatização holywoodiana do que à vontade de desinformar.
Ele até se esforça, na introdução, em mostrar de soslaio a responsabilidade dos Estados Unidos e do Xá.
Depois comete uns errinhos triviais.
Como por exemplo, os pasdaran - guardas revolucionários - não tinham computadores nessa época. E no Irã não havia cartões de embarque eletrônicos. O país ainda usava bilhetes escritos à mão, com cópia em carbono (que os jovens nem devem saber do que se trata!).
Mas isso é mesmo uma trivialidade.
Como não gosto de picuinha, só vou contar que o desfecho dramático do risco dos "fugitivos" serem detidos pelos pasdaran antes do embarque é imaginário.
Na verdade, embora os iranianos tenham realmente tentado recolar todos os documentos destruídos, não conseguiram descobrir a identidade dos funcionários que faltavam - ao contrário do que o filme mostra. Portanto, não houve nenhuma caça de última hora da parte dos pasdaran. Nem dentro do aeroporto nem na pista de decolagem.
Por outro lado, a embaixada britânica em Teerã não recusou os fugitivos como o filme insinua e os canadenses representaram um papel muito mais importante na libertação dos fugitivos do que a CIA. Na verdade, foram co-protagonistas e não coadjuvantes.
Mas este triunfalismo estadunidense é praxe em Hollywood. Lá, eles adoram reescrever a história sem constrangimento. Tanto neste episódio de resgate (que omite os fracassos que abordei acima) quanto na Segunda Guerra Mundial que tiram dos soviéticos a glória da libertação dos campos de concentração e da tomada de Berlin, quanto em outros mais ou menos graves. A lista é interminável. Enfim, transformam até Jesus Cristo em um panaca em vez do grande revolucionário que mudou a face da Terra e a humanidade.

Tenho grande simpatia por Ben Affleck e sua turma - Brad Pitt, Matt Damon, George Clooney - porque são cheios de boas intenções e fazem muito mais coisas certas do que erradas. Porque são íntegros. Uma raridade.
Portanto, acho que Argo mereceu o Golden Globe de melhor filme assim como os demais prêmios que seguiram na Inglaterra e seguirão em outras partes. 
E acho também que na medida dos limites máximos de um gringo, Ben Affleck e seu produtor George Clooney, embora não tenham apertado, tentaram pôr o dedo em mais uma ferida aberta pelo pragmatismo míope irresponsável dos EUA.
Porém, por melhor que seja um estadunidense, são raríssimos, de contar nos dedos, os que conseguem ser totalmente imparciais ao analisar algo que lhes toca realmente. Noam Chomsky é uma destas poucas exceções à regra. Mas ele, além de grande intelectual, é um sábio.
Ben Aflleck ainda é jovem e pisou um pouquinho na bola. Mas nada que comprometa a história. Apenas omissões aqui e acolá.
Mas no Irã, muitos ficaram indignados e prometem uma resposta cinematográfica que se acontecer, será uma propaganda insuportável, já que o "cineasta" encarregado é um ilustre desconhecido e que a Fundação Nacional Cinematográfica foi recentemente fechada por "servir propósitos anti-nacionais".
Ben Affleck mostrou direitinho o clima de suspeita, vingança e consequente carnificina que reinou no Irã pós-revolucionário - e ainda tem gente deste tipo em Teerã com as rédeas. Vira e mexe um vai para a cadeia ou vira persona non grata. Mas tem também muita gente boa e culta lá. Inclusive entre os aiatolás.

Para mim, as duas cenas mais marcantes do filme são com a empregada do embaixador.
A primeira, quando ela conversa com o compatriota iraniano.
Depois, a última cena em que a moça aparece cruzando a fronteira para o Iraque junto com centenas de refugiados. Ao Deus dará.
Nesta imagem, Ben mostra, sem fazer discurso moralista, o que espera aquele que colabora com o inimigo da pátria. Inimigo que é, noventa e nove por cento das vezes, os EUA ou um de seus aliados.
Foi a empregada iraniana que salvou a vida dos fugitivos. Porém, apesar do papel fundamental na sobrevivência dos funcionários estadunidenses, não recebeu nem passaporte nem passagem de primeira classe em voo de nenhuma companhia ocidental. Nem para uma capital europeia nem para Nova Iorque. Como quase sempre acontece com traidores ou heróis (dependendo da ótica de quem olha) que salvam vidas estrangeiras contra os interesses nacionais. No fim, só lhes resta um papel na rede intrincada dos interesses visíveis e invisíveis que regem os meandros dos conflitos internacionais. De pária.


ARTE France, Documentário de Emilio Paculi
Operation Hollywood: How the Pentagon shapes and censors the movies

Al-Jazeera, Empire: Hollywood calls the shots


2 comentários:

  1. Estava pesquisando sobre helicopteros, ao lado a coleção de maquetes de aviões, e lembrei que ter visto nos anos 80, no noticiario de tv a queda de aviões no deserto em missão de resgate dos Norteamericanos prisioneiros na embaixada Norteamericana no Irã. Este acontecido polemico se deu nos governos de Jymme Carte e Ronald Reagan, de grande repercusção para mim merece atenção dos estudiosos das guerras, pois ainda sem comentário, quero parabenizar a grandiosa Jornalista Mariângela Berguó, por escrito a respeito do assunto. E sem ter visto o filme ARGO, assim mesmo, quero ser vacinado pelo seu saber.

    Neuzo Mattos
    nmattos20@gmail.com

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  2. Obrigado pelo post, muito completo adorei. Ben Affleck esta impecável no seus filmes. Ele sempre surpreende com os seus papeis, pois se mete de cabeça nas suas atuações e contagia profundamente a todos com as suas emoções. Adoro porque sua atuação não é forçada em absoluto. Suas expressões faciais, movimentos, a maneira como chora, ri, ama, tudo parece puramente genuíno. Seguramente o êxito de A lei da noite filme deve-se a participação dele no filme, porque tem muitos fãs que como eu se sentem atraídos por cada estréia cinematográfica que tem o seu nome exibição.

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