domingo, 24 de fevereiro de 2013

Oscars 2013: Oriente Médio perde para o insólito


Hollywood e os grandes estúdios cinematográficos estadunidenses, são ostensivamente anti-palestinos.
Porém, na Academia dos Oscars, esta estatueta que faz sonhar artistas e "cartolas" do cinema nos Estados Unidos e mundo afora, a história vem evoluindo positiva e paulatinamente.
Talvez pela mudança do perfil dos seis mil "eleitores" das 15 áreas que compõem a cinematografia.
A maior evolução tem sido na categoria de documentário.
Sem dúvida graças aos novos membros - inclusive o documentarista Michael Moore - que vêm integrando o grupo de eleitores nos últimos anos.
Aliás, foi graças a Michael Moore e a uma artilharia de advogados que o palestino Emad Burnat, co-diretor de um dos documentários em competição, conseguiu entrar nos Estados Unidos com a mulher Soraya e o filho Jibril de oito anos. No dia 17 de fevereiro, a caminho de Los Angeles, a família foi barrada no aeroporto por oficiais de imigração desconfiados.
Palestino?
"É terrorista, na certa!" pensaram os gringos ignorantes e bitolados.
Não, Emad Burnat não é terrorista. É um documentarista talentoso. Casado com uma palestino-brasileira, por falar nisso. A família toda adora o Brasil, a casa ostenta a nossa bandeira e é cheia de lembranças tupiniquins. Um pouco como a minha em Paris. Coisa de brasileiro que mora fora, mas que conhece o mundo, sabe da sorte de ter nascido no PaTropi e tem realmente orgulho de ser brasileiro.

Pois bem, este ano a Academia de seis mil membros que selecionam e elegem a obra e o obreiro que ficarão para a história, selecionou dois documentários políticos que revelam bem o Oriente Médio e o conflito Israelo-Palestino.
Um deles é de um diretor israelense. O outro é de direção mixta, israelo-palestino.
Vou começar pelo documentário israelense: The Gatekeepers. Literalmente, Os Porteiros.
O diretor do Gatekeepers é Dror Moreh.
Dror faz parte da "turma" de Ari Folman (Valsa com Bashir) e de Hagai Levy (In Treatment).
Seu último documentário foi sobre o general ex-primeiro ministro Ariel Sharon. Esta é outra história que faz parte da mesma História - que saltamos hoje justamente para abordar o Conflito de outra forma.
The Gatekeepers - mostra o lado "secreto" do conflito, através de entrevistas com seis ex-diretores do Shin Bet ou Shabak (como é conhecido inernamente), o serviço secreto israelense "doméstico".
Visualmente, o documentário passa das entrevistas ao desenho animado.
No conteúdo, revela a opinião dos últimos chefes do Shin-Bet sobre a evolução do conflito. São homens que falam de peito aberto dos horrores que cometem porque se sabem ao abrigo das punições internacionais que merecem. A montagem não é duvidosa como outros - aliás, nem Dror, nem ninguém, é bobo de fazer inimigo nesta área.
Apesar da verdade que sai da boca desses homens do Estado, encarregados de proteger Israel de qualquer jeito, a qualquer preço e toda hora, Dror foi muito criticado em seu país. Pela ala dura ligada a Netanyahu e pela extrema mais direita ainda. Alegaram que Dror estava fazendo uma má publicidade de Israel.
O documentário não é má publicidade de ninguém nem de nada. Revela os fatos vistos e decididos pelos sucessivos governos israelenses de 1980 a 2011.
A meu ver, o documentário peca por uma omissão compreensível para pessoas como Dror Moreh, Ari Folman, Hagai Levy. Insatisfeitos e até indignados com a situação de ocupação, cheios de boas intenções éticas, porém, intelectualmente asseptisados pela bolha intelecto-liberal em que vivem em Tel Aviv. Longe dos fatos e das consequência reais dos atos destes homens sobre outros homens, mulheres e crianças de carne, osso e sangue que os entrevistados derramam à vontade.
Embora Dror interpele seus compatriotas de vez em quando, de trás e na frente da câmera, para que o espectador escute bem o que esses homens estão contando, acho que o público internacional, sobretudo estadunidense, vai ter dificuldade em compreender esta nuância.
O pecadilho que o Gatekeepers comete é a ausência de perspectiva palestina.
Nele, os palestinos são reduzidos a entidade étnica abstrata em um cenário de bomba-relógio. E no final, temo que a mensagem que Dror tenta passar seja entendida errado. Ou seja, que quem não conhece a realidade saia do cinema com a imagem dos palestinos arquitetos de terrorismo em vez de resistentes que defendem sua terra e sua identidade.
Por exemplo, no capítulo de Ami Ayalon (1996-2000), ele cita uma frase supostamente dita por Jabril Rajoub, da Autoridade Palestina: "Vitória é vê-los sofrer", resumindo grosseiramente a luta da resistência palestina. O paradoxo disto é ele dizer em seguida que foi ouvindo esta suposta frase de Jabril que ele começou a empatizar com a luta palestina.
A alma humana é um mistério absoluto.
O documentário tinha tudo para ganhar o Oscar. O assunto é bem atual. As entrevistas são "furos" jornalísticos. Enfim, vê-se que a produção dispôs de toda grana que precisava e a montagem é um fogo de artifício intercalado de palavras.
O contrário do documentário palestino. Que prima pela sobriedade ditada pela simplicidade das imagens.
Para mim, deu empate.

O documentário feito do lado oriental da Linha Verde se chama 5 Broken Cameras - 5 câmeras quebradas.
Foi feito pelo israelense Guy Davidi e pelo palestino Emad Burnat.
A filmagem começou em 2005. No fim da Segunda Intifada. Com a primeira câmera de segunda mão. Presenteada por um cinegrafista estrangeiro para quem ela não tinha mais serventia.
Emad era um dos centenas de camponeses cisjordanianos que têm suas lavouras desapropriadas para a construção de invasões judias ou são separados de suas hortas por checkpoints, muros e arames farpados.
Começou a filmar o nascimento do filho Gibril e terminou documentando o dia a dia em sua cidadezinha. O combate diário dos habitantes contra um muro que os israelenses teimavam e teimam em construir.
(Já virou tradição. Todas as sextas-feiras, desde 2005, Bil'in vira palco de manifestações que reuniões palestinos e estrangeiros engajados em Direitos Humano. A cidade virou um símbolo da resistência palestina pacífica ao Muro da Vergonha que vem devorando terras dos nativos ao longo da Cisjordânia.)
"As Cinco Câmeras" é um condensado de emoção, riso, e revelação da alma palestina e do palestino. Longe das manchetes de jornais e do coletivo. O documentário mostra os indivíduos, a vida, as expectativas, a coragem, a luta do Golias anão contra o gigante David que trocou o estilingue por aviões de combate, drones e caterpillars armados e fusis de gatilho facílimo.
Como no documentário da brasileira Julia Bacha "Budrus", o espectador segue a realidade da vida. Nua e crua. É a emoção emotiva e a emoção da expectativa que envolve o público do início ao fim; que não termina.
Para o brasileiro tem ainda esta identificação com Emad através de sua mulher Soraya. Nossa compatriota. Palestina filha de pais refugiados na nossa pátria da qual ela tem saudade, mas que não era dela. A dela, de seus ancestrais, é a Palestina. Está em sua cara e em suas lágrimas.
Além dela, tem Jibril. Que vemos nascer e crescer ao longo dos anos e das câmeras que os soldados israelenses destroem uma atrás da outra e que é substituída por outra que continua a filmar inexoravelmente.
Uma marca da resistência. Uma é quebrada, outra aparece. Como na sociedade palestina e seus líderes.
Para quem é seguidor deste blog e da História do conflito israelo-palestino, assistir o Cinco Câmeras Quebradas é como conhecer pessoalmente alguém em quem se ouviu falar. Pôr cara em nome e concretizar o abstrato. Pois vemos e ouvimos pessoas reais que vivem, conversam, a quem acabamos nos apegando simplesmente pelo fato de eles e nós sermos humanos.
Já o Gatekeepers completa a informação deste blog pelo outro lado. O dos comandantes dos atentados israelenses contra os palestinos que encontramos ao longo da história do conflito. Relatam em detalhes como realizaram o assassinato de personagens legendárias da resistência.

Alguém me perguntou se estes documentários terão algum efeito na opinião pública israelense e fui obrigada a responder com o ceticismo de sempre.
O Gatekeepers foi recebido com indiferença até em Tel Aviv. Só afetou os que já são convencidos que a ocupação e a opressão são um mau caminho.
Quanto ao 5 Broken Cameras, Guy Davidi vem penando para conseguir mostrá-lo nas escolas de seu país. Pelo menos em Haifa e Tel Aviv, cidades mais liberais e com habitantes mais instruídos. Nas dominadas pelos ultra-sionistas, corre até perigo.
Porém, há esperança que cumpram seu objetivo, se forem assistidos e compreendidos no exterior, onde a real-política é realmente decidida e a opinião pública tem poder sobre o que os presidentes decidem.
Os dois documentários concorrem com dois outros de alta qualidade.
E nos filmes, sabe-se que Argo (http://mariangelaberquo.blogspot.fr/2013/02/argo-historia-e-estoria-do-ira.html) sempre foi o favorito do público internacional.

POST-SCRIPTUM
No final das contas, o documentário vitorioso do Oscar não foi nem  The Gatekeepers, nem 5 Broken Cameras, nem The Invisible War (mencionado no blog da semana passada). Três obras potiticamente engajadas e sim Searching for Sugar Man, uma obra de igual qualidade, mas sem controvérsia que atrapalhasse a festa holywoodiana.
O protagonista de Sugar Man é um ilustre desconhecido nos Estados Unidos que fez um sucesso extraordinário na África do Sul no período do apartheid.
O cantor-compositor Sixto Rodriguez. Lançou dois discos em 1970 e 1971 de música folk-rock de alta categoria, mas, talvez por ser latino, a imprensa e o público estadunidense ignoraram totalmente.
Quem esteve na África do Sul na década de 80 ainda deve ter ouvido nas rádios as músicas do primeiro disco Cold Fact que entrou no país em uma bagagem e pouco a pouco chegou no primeiro lugar das paradas.
I wonder, por exemplo, tocava em todas as rádios e casas. E por isso ficou na cabeça dos estrangeiros atentos, que pisaram em terras "apartheidianas" até a mudança do regime.
O documentário do sueco Malik Bendjelloul é ótimo. Mereceu, como qualquer um dos três acima, ser premiado na roleta russa do Oscar.   
E vai certamente dar a Sixto a oportunidade que não teve quando era jovem.
Além disso, é sempre bom lembrar, à geração atual, as origens do apartheid que vem sendo aplicado na Palestina. Embora este não seja o foco do documentário.


Documentário de Dror Moreh: The Gatekeepers
Íntegra: http://www.teledocumentales.com/the-gatekeepers/
Trailer
"The settlements are the biggest obstacle to peace. If there is something that will prevent peace, it's the settlements and the settlers. I think this is the largest and most influential and most powerful group in Israeli politics. They're basically dictating the policy of Israel in the last years. I think that definitely for the Palestinians, the settlements are the worst enemy in their way to the homeland. When they see everywhere, in Judea and Samaria now, the settlements that are built like mushrooms after rain, they see how their country is shrinking."  Dror Moreh
Entrevista com Dror Moreh

Documentário de Guy Davidi e Emad Burnat: 5 Broken Cameras
English subtitles
Subtitulado en español

"Durante as duas primeiras semanas de filmagem, senti o peso crescer no meu estômago, inchar, pronto para explodir em um ato violento. Entendi que a violência dos homens aqui na Palestina não é uma pulsão mortífera. É uma explosão que cresce paulatinamente, alimentada pela frustração. Mas nunca baixei a câmera para usar meus punhos. Continuei a filmar até quando meu irmão foi preso. As imagens têm mais impacto. A câmera é a única realidade do meu engajamento. Ela quase causou minha morte. É um escudo moral, mas também uma ameaça física, pois ela chama a atenção do atirador sobre quem quer testemunhar a realidade no terreno."
Emad Burnat

Trailer do documentário da brasileira Júlia Bacha: Budrus

Al Jazeera, Riz Khan : The story of Budrus

Trailer do coumentário sueco-britânico de Malik Bendjelloul : Searching for Sugar Man


domingo, 17 de fevereiro de 2013

São Valentino, amor, amizade, mulheres


O dia 14 de fevereiro é o dia de São Valentino. Dia dos namorados e dos entes queridos em muitas partes do mundo.
A pintura acima, do pintor holandês do século XVII David Teniers III, mostra o monge Valentino de Terni  ajoelhado diante de Nossa Senhora, pedindo sua bênção. Quadro que pode ser interpretado como um sinal de respeito à mãe de Jesus e também ao gênero feminino que ela representa. 
Neste 14 de fevereiro de 2013 mulheres de todos os países do planeta dançaram pelo bilhão de mulheres que pelo menos uma vez na vida serã vítimas de violência sexual e física.
São Valentino padeceu de morte extremamente violenta.
Por fé e insubmissão.
Sua vida foi dedicada à afeição, à amizade, ao amor.
Monge cristão do século III - quando o Cristianismo era ilegal e os cristãos eram perseguidos e enxotados de Jerusalém e de Roma - Valentino chamou a atenção de Claudius II por causa de seus feitos.
Diz a lenda histórica que um dos informantes do imperador romano contou-lhe que havia um homem, de túnica branca, ouvindo e aconselhando jovens nas catacumbas, além de unir muitos deles matrimônio, em nome de Cristo. Este subversivo que os poderosos da época combatiam.
Claudius II ordenou sua prisão e Valentino foi capturado rapidamente. Pois sua clandestinidade era mais do que relativa, já que todos sabiam a que vinha e muitos conheciam seu paradeiro. Tanto nos subterrâneos da capital do império quanto no bairro cristão em que residia. 
Sua casa, como as dos demais seguidores do crucificado chamado de Cristo, arborava o desenho discreto de um peixe. E neste, o acrônimo de Jesus, em grego ΙΧΘΥΣ - ichtus.   
Preso, Valentino é julgado por Asterius, que questiona sua fé cristã e pede que lhe prove o poder do santo homem que inspira as ações do monge e dá-lhe força e confiança para não temer nem o poder do César.
No recinto estava Júlia, filha do guarda da presídio. Uma menina cega que há dias servia o prisioneiro que, a seu pedido, lhe descrevia o mundo e a transportava ao caminho de bondade que ele seguia desde a juventude, nas pegadas do homem que através dele, o tribunal romano julgava.
O juiz apontou para Júlia e prometeu então a Valentino o que ele quisesse em troca de uma prova da onipotência do tal Jesus Cristo. "Restabeleça sua visão", teria desafiado, "e em troca lhe darei o que quiser, para si mesmo ou para quem escolher".
Valentino rezou o Pai Nosso, tocou os olhos da menina, uma luz penetrou por todas as janelas e frestras da sala de julgamento..., e ao abrir os olhos Júlia estava enxergando. Cega, nunca mais.
O milagre convenceu mais do que os Evangelhos que Valentino tentara inculcar nos pagãos que zombavam das histórias e dos ensinamentos do Homem que ele representava.
Entusiasmado, o juiz Asterius não tardou a ser batizado junto com a família e mais quarenta pessoas.
Enquanto isto, Júlia celebrava com o pai a vista recuperada e a notícia do milagre e do batizado de altas personalidades romanas era propagada pelos quatro cantos de Roma até o palácio imperial. Lá, Claudius II não gostou nem um pouco de saber que o cristão que prendera estava solto e que provara ter poderes superiores aos dele.
Despeitado, o imperador ordenou que voltasse a ser preso.
Questionou-o pessoalmente, forçou-o a renegar Jesus Cristo, e diante da fé inabalável do monge, sentenciou-o ao flagelamento e à pena de morte quando seu corpo tivesse sofrido as dores do chicote.
A execução foi levada a cabo no dia 14 de fevereiro do Ano Dominus 269.
Valentino foi retirado de sua cela, chicoteado por vários legionários e em seguida, decapitado na Via Flamínia, na capital do império.
Valentino morreu nos primóridos do Cristianismo. No período da clandestinidade, da fé que movia montanhas e transformava quem a abraçasse. Época em que os cristãos se recusavam a servir Exército, a pegar em armas, a tirar vidas, a ferir e enganar o próximo, qualquer que fosse sua raça, credo e nacionalidade.
As mulheres eram então tratadas por estes judeus e pagãos convertidos à doutrina do Cristo com a deferência devida às duas Marias de sua vida, a Madalena e a Virgem.
Hoje o mundo é outro.
Os cristãos ainda são a religião monoteísta dominante com seus dois bilhões, dos quais 1.2 bilhões de católicos. Porém, o respeito às mulheres não é mais lei nem nos países ocidentais em que os ensinamentos de Jesus deveriam ditar os atos.
Quanto mais fora deles, onde as mulheres são muitas vezes consideradas cidadãs de segunda classe. Sem palavra. Sem direitos. Sem defesa da brutalidade.
Nós no Brasil temos delegacias que recebem e defendem as que criam coragem de denunciar. Mas mesmo assim, quantas sofrem caladas, como se as criminosas fossem elas e não os degenerados que as atacam?

A maioria dos países não tem a sorte que temos de aceder à lei com facilidade, embora esta não possa evitar os ataques.
No ano passado uma pesquisa internacional revelou cifras alarmantes nos Estados Unidos. Uma mulher sobre cinco que nascem em solo estadunidense está condenada a ser estuprada pelo menos uma vez durante sua vida.
E pior ainda do que esta estatística é saber que 80 por cento destas mulheres são agredidas por conhecidos.
A estatística mundial é pior ainda. Uma sobre três mulheres, em um ou outro momento da vida, será estuprada ou espancada pelo simples fato de ser do sexo femínimo.
No fim de 2012 e no início de 2013, dos milhões de casos não denunciados ou não punidos, três casos de violência foram bastante mediatizados e despertaram atenção até masculina para o problema.
Primeiro em Los Engeles, nos EUA, onde uma jovem de 20 anos foi estuprada em um transporte público. Depois em Delhi, na India, onde uma moça de 23 anos sofreu estupro coletivo.
E em janeiro deste ano, na capital dos Estados Unidos, o estupro de uma moça foi filmado pelas câmeras do estacionamento em que o crime foi cometido.
Nos Estados Unidos as escolas enfrentam problemas graves de agressões sexuais. Atualmente, dois estudantes menores, jogadores de futebol americano da escola, vão ser julgados em março por estuprarem uma colega de 16 anos. E o pior da tragédia é que tiveram a ousadia de filmar, fazer comentários e postar em redes sociais. 
E não são os únicos a postarem comentários degradantes e misóginos em seus twitters e outras redes sociais, impunemente. 

No Exército as soldadas também são alvos de perseguições e de estupros tanto nos quarteis quanto nos campos de batalha. 
Na Inglaterra, já houve 86 denúncias de agressões sexuais. 
Nos Estados Unidos, 20 por cento das soldadas já reclamaram de terem sido estupradas por soldados ou oficiais.
Este número só engloba as que ousam denunciar. Pois o temor de serem marginalizadas impera e a maioria prefere ficar calada, pois um dos raros casos que chegaram a julgamento terminou em humilhação pública para a soldada que ousou dar queixa do superior hierárquico. Andrea Werner no final acabou sendo acusada de adultério embora fosse solteira e seu agressor casado...
Uma ironia, se o problema não fosse tão grave.
Com estes exemplos é compreensível que as soldadas se submetam às agressões caladas.
E nos campos de combate... Enfim, nas guerras é pior ainda. As mulheres são sempre as maiores vítimas. 
O estupro é uma arma suja usada por todos os soldados do mundo. 
Há uns mais civilizados, mas globalmente, é raro o batalhão que não abrigue pelo menos um estuprador, que, no final das contas, os militares acabam defendendo mesmo quando condenam o ato.
É como se a guerra revelasse a besta, o animal selvagem adormecido quando está em família, no país de origem.
Em terras estrangeiras, quantas destas ovelhas se desgarram e viram lobos à cata de presa feminina que sacie o quê, quem sabe?
É como se certos homens vivessem inseguros de sua virilidade, e além de matar os adversáriosno campo de batalha, precisarem estuprar, humilhar, dominar a mãe, irmã, esposa do defunto ou do prisioneiro.
Talvez este procedimento só acabe quando o mundo e os homens forem realmente civilizados. Bem, mas aí nem guerra vai ter mais.

O estuprador "social", que em uma festa, em uma ruela, em um carro, estupra uma conhecida, uma colega, não é pior do que o soldado que estupra a mulhera, a filha, a mãe alheia. 
Mas este que comete o crime em casa pode ser preso, julgado, punido pelo mal que faz.
Este blog de hoje é para o homem que já levantou a mão contra uma mulher, que não parou sua investida sexual quando ouviu um Não, que acha que mulher de saia, de bem com a vida está em busca de perigo, de arruaça, enfim, de ser estuprada.
Que pense duas vezes na mulher que o pôs no mundo. E se o alvo fosse ela?
E se o alvo fosse ele?
Que São Valentino e Nossa Senhora iluminem os caminhos destes predadores para que respeitem as mulheres que amam e que este respeito atinja todas nós e nos proteja dos maus instintos deles. 
Um abraço nos outros homens, certamente leitores deste blog, que valorizam a mulher e sabem que somos seu esteio e só queremos ser felizes, e a felicidade deles.

Al Jazeera: Sexual violence in the US Army
ABC Network: Sexual Assault in the Military

Trailer do Documentário: The Invisible War

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Israel vs Palestina: História de um conflito - XXVIII (06 2002)


O mês de junho de 2002 foi cheio de explosões de cá e de lá da Linha Verde.
O dia primeiro chegou com o estardalhaço de bastões de dinamite em um santuário.
Desta vez, o alvo da IDF foi a antiga igreja cristã ortodoxa Santa Bárbara. Após ter acolhido fiéis durante séculos, foi reduzida a um monte de pedras esmigalhadas.
A igreja jamais seria restaurada, mas o pedregulho esparramado viraria fonte de pedras miúdas que abasteceriam jovens cristãos e emuçulmanos durante a Intifada.
No dia 03, em sinal de boa vontade, a Autoridade Palestina anunciou que Ahmad Saadat, chefe da FPLP (Frente Popular de Libertação da Palestina), seria mantido preso em Jericó, sob tutela internacional. Embora dois dias antes o Supremo Tribunal local tivesse autorizado sua liberdade.
Este esforço impopular de Yasser Arafat não serviu para nada.
No dia 04, a IDF resolveu terrorizar os hebronitas com repressão debroda. O objetivo era pressionar ainda mais o líder palestino.
O centro autônomo da maior cidade do sul da Cisjordânia foi re-tomado por dezenas de soldados que impuseram toque de recolher e foram de loja em loja fechando comércio e forçando os habitantes a trancar-se em casa ou esvaziá-la para que a IDF a ocupasse à vontade.
Hebron não foi a única a sofrer com a nova onda de assaltos do início de junho.
Jenin e Nablus, re-invadidas uns dias antes, continuavam sob toque de recolher e com as ruas dominadas por veículos militares.
No dia 05, a resposta das forças de resistência foi contundente. Um carro-bomba explodiu contra um ônibus militar perto do presídio de Meggido - cidade israelense próxima da Linha Verde, e de Jenin. Dezessete pessoas morreram, na maioria soldados, e cerca de trinta civis e militares foram feridos.
No dia seguinte, a IDF pegou pesado para vingar-se.
Durante a noite, suas tropas invadiram Ramallah com cerca de 50 tanques e caterpillars armados enquanto Apaches voltavam a torpedear a Mukata'a, assistidos pelos veículos de solo.
A equipe de segurança do líder palestino estava reduzida, sem munição suficiente para defender-se e no final do ataque surpresa, sete pessoas tinham sido atingidas em cheio e dois guarda-costas de Arafat jaziam sem vida.
O líder palestino saiu desta fisicamente ileso. Mas partes da Mukata'a, cuja restauração mal começara, mas já progredira bastante, vieram de novo abaixo e o prejuízo foi grande.
Ariel Sharon queria infligir pena humana. Mas concomitantemente à humilhação e sofrimento, queria causar danos materiais e aniquilar o moral do presidente da Autoridade Palestina e dos seus concidadãos.

O general israelense estava à vontade para agir porque sabia que contava com o apoio dos Estados Unidos - no dia 08, George W. Bush, ao receber o presidente do Egito Hosni Mubarak, declarou não estar pronto para estabelecer nenhum calendário para a criação do Estado da Palestina, com o qual seu embaixador na ONU concordara previamente. Para completar, insistiu na necessidade de reformas institucionais que "devolvessem esperança ao povo palestino e declarassem ao mundo a possibilidade de vencer o terror e viver em paz."
No mesmo dia, houve uma passeata em Genebra condenando o retrocesso inclusive no discurso. Centenas de pessoas foram às ruas manifestar solidariedade com o povo palestino e tentar mostrar ao presidente dos Estados Unidos que além de condenar os atos violentos da resistência, tinha de condenar também o terror de Estado que os resistentes palestinos combatiam através de seus atentados suicidas artesanais.
Em Ramallah, pressionado por Bush, Yasser Arafat remanejou seu governo no dia 10. Foi a primeira etapa de um projeto de reformas destinadas a demonstrar aos aliados de Israel que ele estava pronto a tudo para seu povo viver livre e em paz.
Diminuiu o número de ministros de 31 a 21. O que não era mal. Mas no processo de conciliação forçada, teve de engolir dois sapos. Um passável e outro intragável.
Entregou o Ministério do Interior ao general Abdelrazak Yahiya, ex-negociador com Israel. E o da Economia a Salam Fayad, então diretor do banco da Palestina e ex-representante local do Fundo Monetário Internacional.
Dobrou-se à exigência de moderar seu governo nomeando candidatos "sugeridos" pelos mediadores ocidentais que não satisfaziam nem o Fatah inteiro. Quem dirá a FPLP, o Jihad islamita e o Hamas. Estes três grupos declararam logo sua insatisfação e o prosseguimento da luta armada.
Quanto a W. Bush, ao receber pela sexta vez Ariel Sharon na Casa Branca, declarou que ninguém confiava no governo palestino recém-nomeado... Pois, o que ambos queriam mesmo era livrar-se de Yasser Arafat.
Trocando em miúdos, Arafat se indispôs com seus aliados nacionais para nada.
Para nada, não. Este passo claudicado tornaria mais fácil a manobra de W. Bush e Sharon para isolá-lo.
No dia seguinte, Sharon não cedia em nada. Ramallah continuava sitiada, sob toque de recolher ainda mais restrito e a Mukata'a estava cercada de tanques enquanto caterpillars armados demoliam estruturas vizinhas para facilitar suas operações militares.
No campo de refugiados de Am'ari, nos arredores da cidade, a investida da IDF terminou com uma morte e vários feridos. E suas incursões intimidativas não se limitavam a Ramallah, Hebron, Jenin e Nablus, recentemente reocupadas. Em Turkarm, os tanques entraram pelo norte da cidade impondo toque de recolher aos cem mil habitantes e como sempre, causando grandes estragos materiais.

No dia 12, um bomba-suicida explodiu levando consigo outro homem e deixando para trás quatroze feridos em Herzliya, perto de Tel Aviv. No fim da estadia de Ariel Sharon em Washington.
Yasser Arafat condenou o atentado em território israelense dizendo que "forneciam ao governo israelense pretexto para agredir nosso povo e prosseguir seus planos de ocupação".
Entretanto, não emitiu nenhuma reprovação aos atos militares da resistência dentro dos territórios ocupados...
No mesmo dia, mais cinco palestinos foram mortos - um deles tinha oito anos. E duas crianças foram feridas junto com vários adultos atingidos no mesmo bombardeio do bairro Mughraqa.
E cinco gazauís foram abatidos pela IDF perto da colônia Netzarim, no centro da Faixa de Gaza. "Antes que cometessem um atentado". O ataque retaliativo frustrado foi reivindicado por dois grupos resistentes ligados ao Fatah. A FDLP (Frente Democrática de Libertação da Palestina) e as Brigadas Al-Aqsa.
De Londres, Tony Blair pediu ao general Ariel sharon que relançasse "depressa o processo político"... 
Em resposta ao Primeiro Ministro britânico, a IDF sequestrou dois próximos de Arafat em minuciosas operações militares.
Abdelrahim Mallouh, vice-líder da FPLP e membro do comitê executivo da OLP, em plena Ramallah. Abdelbassat Chawabkeh, secretário geral do partido em El-Bireh, nesta cidade vizinha de Ramallah. 
Nesse mesmo dia tumultuado, o jornal árabo-ocidental Al-Hayat publicou uma entrevista com Colin Powell. Nesta, o Secretário de Estado dos EUA dizia que W. Bush seria favorável à criação de um "Estado Palestino temporário", como etapa transitória para o estabelecimento de um Estado de fato. Este eventual Estado, segundo Powell, "provisório" ou " interino", teria de comportar uma estrutura, insitutuições, algo que unisse o território mesmo sem este ser definitivamente definido".
A afirmação era mais do que ambigua e soou aos palestinos como mais uma armadilha.
Soou mal não apenas aos palestinos.
No dia 13, a Anistia Internacional entrou em cena. Mas não contra Israel diretamente. Contra a Autoridade Palestina. Exigia que esta libertasse o chefe da FPLP Ahmad Saadat e que Israel não o executasse sumariamente, em sua saída da prisão.
Pois estava preso também para sua proteção. Israel suspeitava que fosse o mandante do assassinato do ministro israelense do turismo Rehavam Zeevi; por isso, solto, sua vida não valia grande coisa, com os agentes israelenses à espreita para aplicar logo de cara a pena de morte.
Saëb Erakat, negociador de paz desde os Acordos de Oslo, aproveitou a deixa para pedir que a comunidade internacional inerviesse junto a Israel para que soltassem Abdelrahim Mallouh.
Mas seu apelo caiu em ouvidos moucos.
As autoridades estrangeiras continuavam quietas ou pressionando Arafat enquanto a IDF continuava a devastar as cidades palestinas com a desculpa de "procurar terroristas" e os danos humanos e materiais se acumulavam.
A impotência diplomática fez com que a resistência voltasse à carga. Mas dentro de seu território ocupado.
No dia 15, um bomba-suicida explodiu na colônia judia Dugit, na Faixa de Gaza, levando consigo duas pessoas.
No mesmo dia, os palestinos receberam mais uma má notícia.
Entre bombardeios dos Apaches e dos F16 e demolições dos caterpillars D9, a situação socio-econômica estava crítica. Mesmo assim, a União Europeia bloqueara a subvenção de 18.7 milhões de euros prometida. "Até a Autoridade Palestina explicar direitinho em que seria investida".
Enquanto os fundos palestinos tinham de ser conferidos até o último centavo para não serem "desviados" em armas que garantissem sua defesa, Israel recebia patrocínio ilimitado dos Estados Unidos para continuar suas campanhas de sítios e bombardeios.
O dia seguinte seria uma data fatídica. 
No Knesset, duas comissões parlamentares renovaram o Estado de Emergência em que Israel vivia desde sua criação unilateral 54 anos antes.
O Estado de Emergência é uma medida tática que permite ao governo prerrogativas de impor, nos Territórios Palestinos, quaisquer medidas institucionais que julgar "urgentes". Desde o toque de recolher a sequestros, detenções administrativas, sem nenhuma garantia judiciária. Do seu lado da Linha Verde, permite a requisição de grevistas nos setores julgados vitais e outorga aos governantes poderes absolutos.
Mas a renovação do Estado de Emergência não foi o pior desse dia.
Isto é, foi graças a ele que o pior aconteceu sem que ninguém reagisse.
Foi nesse dia, 16 de junho de 2002, que Israel começou a construir o muro da vergonha. Chamado em Israel de Muro de Defesa e na Palestina de muro de separação.
Qualquer que fosse o nome do muro, em princípio, deveria ser traçado em cima da Linha Verde, que separa Israel da Cisjordânia.
Só que a primeira etapa de 130 quilômetros já abocanhava grande extensão de terras do outro lado.
No mesmo dia, durante troca de tiros entre a resistência e soldados perto da colônia de Dugit, no norte da Faixa de Gaza, dois soldados morreram e quatro foram feridos.
No dia 17, a IDF abateu mais um expoente da OLP e Saëb Erekat, que era também ministro dos municípios, lamentou mais este assassinato "da campanha de eliminação dos ativistas palestinos".
Mas o acontecimento do dia foi o governo de Israel reconhecer nas entrelinhas que seu objetivo era "descartar" o presidente palestino Arafat eliminando todos os seus homens de confiança da OLP e do Fatah. Segundo Sharon, "para que novas lideranças emergissem".
O assassinato de Walid Sbeih - um dos líderes das Brigadas Al-Aqsa assassinado aos 39 anos por um sniper da IDF perto de Belém - foi "vingado" junto com os de outros dirigentes da OLP em uma onda de atentados sucessivos dos dias 18 ao 22 de junho.
A resistência agiu segundo a praxe nas organizações ligadas ao Fatah, que em suas ações militares visavam civis e soldados que ocupavam suas terras na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
Em 72 horas, levaram a cabo ataques coordenados em colônias judias de Jerusalém e próxima de Nablus cujos moradores azucrinavam os nabluenses noite e dia. Trinta e um israelenses perderam a vida.
No dia 19, enquanto cerca de cinquenta intelectuais palestinos, dentre eles a deputada Hanan Ashrawi (foto ao lado), próxima de Yasser Arafat, publicavam um Abaixo Assinado no jornal Al Quds, no qual solicitavam que as células de resistência parassem os ataques contra os civis israelenses.
Enquanto isso, Ariel Sharon anunciava outra Operação militar retumbante contra os palestinos.
Esta foi chamada de מבצע דרך נחושהDetermined Path. Que poderia ser traduzido como "Via Determinada".
A ODP deveria restringir-se ao norte da Cisjordânia, mas acabou descendo até Hebron, como se o quotidiano insuportável em que os hebronitas viviam e vivem não bastasse.
Mas a população israelense ainda ignorava o que acontecia em Hebron, não acreditava nas notícias da selvageria da IDF em Nablus, Jenin e outros lugares, e só se preocupava com os caixões dos compatriotas mortos que velavam.
Neste estado de choque pelas imagens dos atentados palestinos que a televisão mostrava sem parar, a popularidade de Sharon alcançou índices assustadores - 80% de aprovação a esta nova Operação de ataque.
O processo de convocação de reservistas foi relâmpago. A justificativa foi que após a ODS, a resistência tinha atacado 64 vezes provocando a morte de 83 israelenses.
Além deste argumento vingativo, o Hamas, o "monstro" que o próprio Israel criara, começava a preocupar bastante, e muita gente.
O Shin Bet (Serviço de Inteligência de Israel)disse que proeminentes ativistas do partido tinham "escapado" da Faixa de Gaza para a Cisjordânia e lá estavam fabricando explosivos - como se o Fatah não tivesse ninguém especializado nisso.
E com esta desculpa voltaram a investir Nablus e Jenin.
A estratégia da ODP foi a mesma da ODS, com uma variante mínima. À destruição invasiva foi dado um objetivo: "capturar dez bombas-suicidas potenciais".
Cento e cinquenta pessoas foram presas, quatorze "lugares suspeitos" foram demolidos e Belém, Jenin, Nablus, Qalqylia, Ramalhah, Tulkarm voltaram ao estado de sítio e à presença imponente de soldados e tanques por todos os lados.

No dia 20, a sede da FDLP (Frente Democrática de Libertação da Palestina) em Jenin foi posta abaixo.
No dia 21, a Autoridade Palestina voltou a insistir com os Estados Unidos e os países ocidentais que agissem junto a Israel para que se retirasse de seus territórios ocupados. E o negociador palestino Saëb Erakat voltou a solicitar observadores internacionais na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. A fim de testemunharem os fatos reais, que as bombas que caíam do alto e os caterpillars armados causavam muito dano, de fato. Em vez de aterem-se apenas aos atentados, mortíferos mas artesanais, que as televisões veiculavam com estardalhaço.
No dia deste apelo a IDF matou mais cinco adultos e cinco crianças em Jenin. E na cidadezinha de Huwara, perto de Nablus, uma moça de 22 anos foi assassinada de maneira bárbara - segundo os colonos judeus que a deixaram desfigurada, o linchamento da jovem palestina era para vingar a morte de cinco moradores da colônia judia de Itamar, na Cisjordânia, por um membro das Brigadas Abu Ali Mustafá.
As Brigadas em questão haviam organizado a operação em resposta à decisão da IDF de considerar as 150 colônias judias na Cisjordânia "zonas militares" de acesso exclusivo aos israelenses. Inclusive nas imediações. Só os palestinos com passes especiais poderiam circular nas estradas limítrofes ou aceder às suas lavouras adjacentes às terras invadidas. Após horas de espera nos checkpoints.
Yasser Arafat voltou ao palco para condenar os ataques aos civis israelenses e para acusar "forças estrangeiras" de explorar o desespero de seus compatriotas. Sua denúncia fazia sentido, mas no ocidente, foi uma prova a mais que ele tinha de ser calado.

A resposta de George W. Bush chegou no dia 24. Foi mais longe do que Collin Powel. Em um discurso na Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos condicionou a criação do Estado da Palestina a várias reformas obrigatórias. Começando por uma "direção palestina nova e diferente" - leia-se, sem Yasser Arafat.
Exigiu "verdadeiras reformas que necessitarão instituições políticas e econômicas inteiramente renovadas, fundadas na democracia, economia de mercado e de ações corretas contra o terrorismo".
Para bom entendedor, Bush condiciou claramente a viabilidade do Estado da Palestina ao afastamento de Yasser Arafat.

Enquanto W. Bush dava lição de moral, os apaches israelenses bombardeavam Rafah, no sul da Faixa de Gaza, causando uma hecatombe de feridos e queimados graves.
E os caterpillars armados continuavam a demolir casa atrás de casa, apesar das tentativas de obstrução dos ativistas estrangeiros do ISM (International Solidarity Movement).
No dia 25, Yasser Arafat rejeitou a "sugestão" do presidente dos Estados Unidos, e enquanto falava, a IDF reocupava Hebron com espalhafato.
Das oito grandes cidades às quais os Acordos de Oslo assegurava autonomia, Hebron foi a sétima a ser retomada na mesma semana. As casas foram invadidas, reviradas, e cerca de 180 hebronitas foram levados aos trancos e barrancos para trás das grades.
Em Gaza, um ativista do Jihad reagiu jogando uma granada em um posto militar israelense e foi metralhado.
No dia 26, a Autoridade Palestina anunciou eleições legistativas e presidenciais entre os dias 10 e 20 de janeiro do ano seguinte. E na mesma leva de anúncio, apresentou um plano de reformas nas áreas exigidas pela Casa Branca - economia, justiça e segurança.
Mas não era bem isso que W. Bush queria. Queria mesmo era que Arafat cedesse o lugar a alguém menos influente e mais maleável e por isto continuou a pressionar.
Quase na hora em que o discurso do líder palestino estava sendo divulgado, soldados da IDF, brincando de tiro ao alvo, mataram um menino e feriram outro grave.
E os ânimos voltaram a exaltar-se.

No dia 27, a IDF invadiu e saqueou o escritório da Autoridade Palestina em Hebron, e enquanto estava com a mão na massa, W. Bush empurrava Arafat para que cedesse o cargo - sem saber ou sem se preocupar que no campo de refugiados de Balata um tanque israelense metralhava um jovem de 17 anos e na vizinha Nablus, a IDF ocupava o quartel da Força 17, guarda presidencial de Yasser Arafat.
Os vinte guardas presentes foram evacuados do prédio de mãos amarradas, olhos vendados e todas as armas foram confiscadas.
A intenção era deixar Yasser Arafat desprotegido e humilhado.
Ministros de 57 países membros da OCI (Organização da Conferência Islamita) se reuniram no Sudão, e de Khartum, exprimiram apoio a Arafat, figura emblemática que o presidente dos EUA queria apagar da cena política palestina e internacional.
No mesmo dia, a Assembleia parlamentar do Conselho da Europa apelou para que israelenses e palestinos parassem com a violência e as hostilidade. Sem mencionar em nenhuma linha do comunicado a ocupação geradora de todos os males.
Em vez disso, quase todas as recriminações da Assembleia foram dirigidas aos palestinos. E no final, rejeitaram o pedido de Arafat de uma investigação internacional no terreno. Os deputados ocidentais se contentaram em pedir a Tel Aviv que investigasse seus próprios crimes.
As únicas exigências que fizeram a Israel foi que contivesse a expansão das invasões judias e que parasse de destruir sistematicamente as delegacias de polícia palestinas.
Não é que estivessem dando uma colher de chá a Arafat. É que entendiam a incoerência óbvia de exigirem que Arafat mantivesse a ordem e evitasse os atentados sem policiamento adequado. No mais, não pareciam não incomodar Sharon em nada.
Tanto que no fim da reunião de cúpula do G8 no Canadá, o Primeiro Ministro israelense parecia um pavão cinzento. Sua satisfação era visível quando disse que tinha certeza que sua "causa" fora ouvida e que o afastamento de Arafat estava garantido.
Por ouvida ele se referia aos Estados Unidos.
A Rússia, o Canadá e a Comunidade Europeia não apoiavam o afastamento de Arafat, cuja autoridade era a única incontestada por todas as facções palestinas. Era ele quem "dava a liga" entre todos os partidos e sua presença era fundamental à coesão nacional.
Mas era isso mesmo que os Estados Unidos e Israel não queriam. Queriam era ver a Palestina dividida... Divide ut Regnes, como haviam patrocinado na Faixa de Gaza.

Na madrugada do dia 27, Ariel Sharon demonstrou à Europa e ao Canadá que pouco ou nada se preocupava com a opinião dos países que o protegiam. Contanto que o país que o armava continuasse lhe dando corda, corda, cada vez mais grossa e sem parar. 
A prova disso foi a ordem que deu de explodir a Mukata'a de Hebron como se fosse descartável.  Usada anteriormente pelos ingleses durante o Mandato Britânico, ela acolhia inclusive uma prisão, além dos escritórios onde os funcionários públicos trabalhavam.
A IDF se vangloriou de ter precisado usar duas toneladas de explosivos para destruir o imenso complexo administrativo.
Até os jornalistas ficaram chocados com a notícia de mais esta perda histórica e material que custaria caro para ser reconstruída e com a ousadia de Sharon.
Ele realmente se achava intocável. Não via nenhum obstáculo às suas investidas. Sabia contar com o apoio de Washington e com sua pesada artilharia.

No último dia do mês de junho, Yasser Arafat botou a boca no trombone. Denunciou que vários atentados além da Linha Verde, não reivindicados, não tinham sido realizados por nenhum grupo de resistência palestino e sim por forças e grupos desconhecidos, baseados fora da Palestina. E reiterou sua vontade de encontrar George W. Bush para conversarem.
Mas o presidente dos EUA não queria conversa. Só queria atender o pedido de Ariel Sharon de livrar-se do único líder respeitado na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Queria ver o Fatah e o Hamas se engalfinharem em todas as cidades.
Ou W. Bush ignorava que o plano de Ariel Sharon era dividir para reinar?
Por ignorância ou por maldade, W. Bush deu o golpe fatal em Arafat quando declarou ter cortado todo contato com o líder palestino. No fim deste discurso bem ensaiado rasgou o verbo: exigia a demissão de Arafat no ato.
Enquanto isso, a IDF assassinava Muhammad Taher, chefe das Brigadas Ezzsedine al-Qassan no norte da Cisjordânia.
O ministro da defesa israelense Ben Eliezer, justificou a execução dizendo que o rapaz de 26 anos estava diretamente implicado no atentado de Netanya, no dia 27 de março, que custara a vida de 29 israelenses.
Nesse dia, lembro-me de ter conjeturado com um colega se nas cidades ocidentais, nos bares e nos jantares em que humanistas e humanitários consertam o mundo com frases, se alguém levantava a questão de como um rapaz inteligente, de classe média, simpático, de 26 anos - idade em que os jovens de nossas nações devidamente legalizadas estão engatinhando no mundo do trabalho, após o diploma universitário - já  era chefe de uma brigada de resistência militar. Será que se perguntavam quantos anos tinham os jovens que ele liderava? Com que idade a vida dele/s tinha virado de cabeça para baixo, dado uma virada de 360°, parado? Foi quando a casa foi demolida? Quando um familiar foi assassinado? Quando soldados da IDF ocuparam sua moradia e trancaram a família em um quarto enquanto desfrutavam dos demais cômodos, da comida e dos bens que os pais haviam adquirido com dificuldade sofrendo a humilhação diária em checkpoints a caminho do trabalho? Foi a gota d'água de um ultraje a mais do ocupante civil ou militar que fizera o copo da resistência pacífica transbordar? Vira e mexe um destes jovens palestinos sem perspectiva, de futuros amputados, me leva a questionar o quanto a vida é aleatória e quanto depende da sorte de nascimento. Podia ser eu, lá. Se tivesse nascido em Gaza ou Ramallah. Em vez de ser jornalista, brasileira, desfrutar de independência e liberdade de ir, vir, ser e fazer o que tivesse vontade e coragem, estaria lá, em linhas demarcadas, sendo humilhada todos os dias por estrangeiros que chamam e tratam de e como animal; tolhida em atos, passos, com os dias contados.
Lá, na Palestina, em junho de 2002 (fevereiro de 2013 não muda nada), o futuro de todos os recém nascidos estava traçado. Nacionalidade: apátrida. Origem: cidade ocupada.
E por isto o mês terminou com as Brigadas que Taher dirigia ameaçando Israel de novos atentados.
Yasser Arafat estava apertado. Dentro e fora de casa. Seu tempo estava contado. 

Documentário Journeyman: Women in Black 
Israeli women taking a stand over Palestine 

Reservista da IDF, Forças israelenses de ocupação
Shovrim Shtika - Breaking the Silence - Hebron

"They want us to enact a constitution? No problem!
I shall ask Israel to send me a copy of theirs and copy it word for word!" disse Yasser Arafat com seu sentido de humor sagaz. Israel não tem constituição.
"There will be no Palestinian Hamid Karzai," disse ele, aludindo ao presidente fantoche que os estadunidenses haviam posto no Afeganistão.
"The PLO stands above the Palestinian Authority, and I am the head of the PLO [OLP- Organização de Libertação da Palestina]. The PLO represents all the parts of the Palestinian people, while the PA was elected only by the inhabitants of the West Bank (including East Jerusalem) and the Gaza Strip."

Reservista da IDF, Forças israelenses de ocupação
Shovrim Shtika - Breaking the Silence
"The first time we were involved in serious fighting, I think, was in Operation Defensive Shield. Our whole crew there got into the thick of things
Where were you?
In Defensive Shield, we began at Tul Karm.
And what did you do there?
There was this new procedure at the time there, of passing through walls. First we tried hammers, but that didn't work. I mean, pretty soon you realize it's no good because as soon as you enter the older areas, the houses are built of stone and a hammer doesn't do it. So you place a 5-kg explosive charge, even twice, and only then do you get a small hole in the wall and pass on to the next house. That's it. Essentially destruction there was going on at an insane level, huge. I think it spared a lot of lives, perhaps soldiers' too, because we had no contact with the enemy, you know. We saw all kinds of explosive charges through the windows and we were going through the walls, but it was sad on a personal level to see that each house you entered would be totally destroyed from the blast, nothing would remain intact. You only saw the street you searched, but you knew that it was the same throughout the town."  
Global BdS Movement: http://www.bdsmovement.net/

domingo, 3 de fevereiro de 2013

ARGO: estória e história de um resgate no Irã revolucionário


Em 1953, a CIA e o MI6 (serviço secreto britânico) orquestraram um golpe de estado no Irã para tirar o presidente Mohammad Mosaddegh, eleito democraticamente, e substituí-lo por uma monarquia militarizada dirigida pelo Xá Mohammad Reza Pajlavi.
O regime ditatorial é duro e esmaga a oposição intelectual e religiosa violenta e indiscriminadamente.
Em 1979, as rebeliões populares contra o regime se proliferam e no dia 22 de outubro de 1979, o Xá do Irã Mohammad Reza Pahlavi é hospitalizado em Nova Iorque. Foi tratar do câncer que o mataria no dia 27 de julho de 1980, no Egito. Após longa agonia.
O Irã, em plena revolução islâmica, exige que os Estados Unidos extradite o Xá para que pague por seus numerosos crimes - Há anos Pahlav fazia reinar o terror contra os religiosos, intelectuais, enfim, seus oponentes de forma geral.
O então presidente Jimmy Carter nega a demanda do Ayatollah Ruhollah Khomeini - que ainda se lembrava da Operação Ajax usada pelos EUA para destruir a democracia no Irã reinstalando o Xá (Blog19/02/2012 http://mariangelaberquo.blogspot.fr/2012/02/ira-armacao-ou-perigo-embasado.html ). 
No dia 04 de novembro, em um ato de retaliação à proteção gringa ao ditador fugido, dezenas de estudantes iranianos invadem a embaixada estadunidense em Teerã exigindo justiça.
Durante as duas horas de sítio os funcionários queimam arquivos e buscam uma saída quase impossível, sob o olhar das câmeras de televisão que mostram as imagens em direto para o mundo.
Os jovens acabam penetrando no recinto diplomático e dos noventa funcionários, 66 estão na linha de mira dos revolucionários - 53 viram reféns no local, três são detidos no Ministério das Relações Exteriores, e seis escapam para as embaixadas da Suécia e do Canadá.
Duas semanas mais tarde, treze dos 66 reféns são libertados. Um outro será solto em 1980.
Foi o início de um longo pesadelo para Jimmy Carter. Pesadelo que duraria 444 noites e que terminaria no dia 20 de janeiro de 1981. Após ele deixar o governo e lamentar vários fracassos em tentativas de resgate.

Nesse ínterim, o governo do Canadá dá apoio total aos funcionários estadunidenses acolhidos na embaixada. Dois ficam na casa do embaixador Ken Taylor e sua esposa Pat. Quatro ficam na casa de John e Zena Sheardown, inclusive o que tinha fugido para a embaixada da Suécia .
John Sheardown é o principal representante de imigração canadense no Irã e é com ele que os EUA se comunicam primeiro.
O governo canadense - impecável do início ao fim deste evento histórico, ou seja, desta revolução que nos primeiros meses caçou e executou bruxas e fadas - oferece seus préstimos inclusive a todo ocidental que estivesse com problema com os revolucionários exaltados.
A estadia dos hóspedes compulsórios nas residências dos dois diplomatas deveria ser curta, mas acaba durando muito mais do que se esperava. De uma a duas semanas, passa a meses. E com a extensão do tempo, aumenta a insegurança e a possibilidade dos funcionários serem descobertos.
Vários planos de resgate são elaborados. Cada um mais improvável - como mostra bem o filme "Argo".
No dia 12 de novembro os EUA expulsam do país dezenas de iranianos, bloqueia US$8 bilhões de bens da nova República Islâmica, e continua garantindo a segurança do Xá.
As pressões sobre os iranianos aumentam, mas estes também não entregam os pontos.
Continuam exigindo o retorno do Xá e alguns gestos diplomáticos. Dentre estes, desculpas pelo golpe que os Estados Unidos patrocinaram para derrubar o Primeiro Ministro Mohammed Mossadegh em 1953 para pôr o tirano em seu lugar. Assim como a promessa de nunca mais interferir  nas questões domésticas iranianas.
Enfim, solicitam a promessa de não-ingerência gringa, com que todos os países do planeta sonham.
O que é pedir demais a um país pragmático que vive da potência militar e de parasitismo de recursos humanos e naturais alheios.
A resposta da Casa Branca não muda. Em vez de desculpar-se e prometer ficar quietinho em casa, Jimmy Carter autoriza as tais operações vergonhosas.

A dos "hóspedes" canadenses, contada no filme Argo, foi a única bem sucedida. Graças ao Canadá, e a dois latinos: Antonio Joseph Mendez, representado por Ben Affleck. E "Júlio", até hoje um ilustre desconhecido que nem aparece no filme.
Outras operações seguiram à Argo do pôster original acima conservado pela CIA.
Mas nenhuma foi bem sucedida.
A Operação Eagle Claw, cujas fotos do fracasso estão abaixo, foi a mais humilhante para os Estados Unidos.
Foi levada a cabo na madrugada do dia 24 para 25 de abril de 1980.
Apesar do nome pomposo, Eagle Claw foi um desastre logo de cara por falta de análise geográfica.
Na primeira parte da operação, aviões de transporte deveriam encontrar nove helicópteros em uma faixa aérea no Grande Deserto do Sal - 1, no leste do Irã, perto de Tabas.
Uma tempestade de areia destruiu dois helicópteros logo na aterrizagem.
A missão foi cancelada, mas o avião voltou a decolar, um helicóptero trombou nele e no choque morreram oito soldados e quatro ficaram feridos.
Os militares estadunidenses foram transportados para Teerã e viraram atração em parada revolucionária. Os destroços dos helicópteros foram expostos à mídia internacional transformando os Estados Unidos em alvo de risadas.
O Secretário de Estado Cyrus Vance demitiu-se e o Pentágono começou a preparar um segundo resgate com a CIA.
Desta vez, com aviões Hércules modificados para aterrizagem e decolagem curtas, em um estádio de futebol.


O programa ultra-secreto foi chamado de Credible Sport.
Entretanto, o que foi mesmo incrível foi o avião ter caído antes da missão começar.
Durante um treino na base militar Eglin, na Flórida, em outubro de 1980, as bombas foram lançadas cedo demais e provocaram um incêndio na aeronave. Como mostra a vídeo acima.
A tripulação saiu ilesa, mas a Casa Branca, e sobretudo Jimmy Carter, sairam queimados.
Com o tempo e novos eventos fronteiriços e internacionais - a morte do Xá Reza Pahlav e a guerra entre o Irã e o Iraque - os iranianos foram ficando mais receptivos a negociar os reféns de maneira produtiva.
Os contatos foram feitos em 1980. Antes das eleições presidencias nos Estados Unidos.
O Irã já estava então mais preocupado com a guerra que estava começando contra o Iraque de Saddam Houssein (financiado pelos Estados Unidos) do que com os reféns estadunidenses, que, no fundo, já estavam lhes dando era trabalho.
Mas Carter foi descartado dos diálogos. Aliás, perderia as eleições, dizem, por causa de seus fracassos neste dossiê iraniano. Quem estabeleceu contato e negociou a libertação dos reféns foi o seu sucessor na Casa Branca: o ex-ator Ronald Reagan.
Logo após as eleições as negociações se intensificaram e estava tudo resolvido antes do fim do ano. Porém, a políticagem tem seu próprio calendário. Os reféns esperariam até o ano seguinte, até o dia 20 de janeiro de 1981, um dia após a posse de Reagan, para retornarem ao lar.
Poderiam ter passado o Natal em casa com a família se não fosse a vontade de Reagan de iniciar o mandato como salvador da pátria.
Um fato vergonhoso, indígno, entretanto, poucas foram as vozes que se levantaram para criticar o oportunismo holywoodiano do novo presidente dos Estados Unidos.
Em troca dos reféns, a Casa Branca descongelou os US$8 bilhões iranianos que Carter sequestrara e garantiu imunidade a todos os participantes da novela dramática.
A Operação Argo só foi revelada ao público em 1997.
Em 2000, com base no Antiterrorism Act - ato institucional que permite que Washington esqueça os direitos democráticos dos cidadãos estadunidenses e faça o que lhe der na telha dentro e fora dos EUA - os reféns e seus familiares tentaram processar o Irã, em tribunal nacional.
Ganharam a causa.
Os iranianos nem se deram ao trabalho de fornecer defesa. Haviam se protegido bem com o ex-presidente Republicano Ronald Reagan. E o de então, George W. Bush, nem se quisesse poderia anular a assinatura de seu colega de partido sem causar um grave incidente diplomático.
Sem contar as represálias iranianas que seguiriam.
Portanto, em vez de apoiar a venalidade dos ex-reféns e familiares que queriam lucrar em cima dos iranianos, Washington tentou obstacular o processo como pôde.
No final, o Tribunal Federal declarou o óbvio. Que nada podia ser feito para os oportunistas serem   "indenizados" por causa do acordo assinado por Reagan justamente para que eles fossem libertados.

Desenho do aeroporto Mehrabad.
Feito pelo embaixador canadense Ken Taylor para a operação de resgate.
Agora vou passar ao filme de Ben Affleck. Que é a razão desta matéria que tenta responder às perguntas dos curiosos em história mais do que em estórias cinematográficas.
Para começar, o Argo 2012 presta um pouco da homenagem que o Canadá e Taylor merecem, mas irreleva o papel importante de Sheardown. O que é uma pena. Sem ele, nada teria dado certo.
Quanto ao Tony Mendez que Ben Affleck encarna na tela, conseguiu desaparecer na massa porque era um mexicano típico, bigodudo, que podia passar facilmente por iraniano. Assim como o tal "Júlio".
Os detalhes do filme são impecáveis no tocante à reconstituição das imediações da embaixada dos EUA. Graças às imagens que as televisões do mundo inteiro gravaram e quem tiver paciência de ficar no cinema até o fim dos créditos pode comparar com as imagens de arquivo que Ben Affleck fornece.
No tocante aos fatos, segundo o então Primeiro Ministro iraniano Abolhassan Bani Sadr - que vive atualmente na França, em Versalhes - o Imã Khomeyni concluiu o acordo com Ronald Reagan dois meses antes das eleições para a Casa Branca. E um dos compromissos assumidos por Reagan - em Paris, através de Argel - foi de armar o Irã contra o Iraque de Saddam Houssein.
(A guerra entre Irã e Iraque começou no dia 22 de setembro de 1980, por causa de um conflito territorial que opunha os dois países - a região do Chatt-el-Arab, o delta do Tigre e do Eufrates, e do Khouzistão, que os ingleses denominam Arabistão.)
A reconstituição do filme sobre o clima de tensão no aeroporto Mehrabad nos meses e primeiros anos que seguiram a revolução também são corretos. Até os jornalistas atravessavam o saguão e os controles com o coração batendo acelerado, querendo sair do peito, de medo que algum agente de segurança não fosse com a cara dela ou dele.
O aspecto era sinistro. As perguntas eram incisivas. Enfim, o mesmo que acontece em outros aeroportos, inclusive ocidentais, com personæ non gratæ.  O aeroporto Mehrabad não é uma exceção tão rara. Em vários aeroportos do mundo, inclusive ocidentais, de países que gostam de dar lição de democracia, os jornalistas têm a impressão que os computadores registram cada artigo assinado para jogar na cara do autor que está lá apenas a trabalho.
Como confio na idoneidade ideológica de Ben Affleck, acho que os pecados do filme se devem mais a recursos de dramatização holywoodiana do que à vontade de desinformar.
Ele até se esforça, na introdução, em mostrar de soslaio a responsabilidade dos Estados Unidos e do Xá.
Depois comete uns errinhos triviais.
Como por exemplo, os pasdaran - guardas revolucionários - não tinham computadores nessa época. E no Irã não havia cartões de embarque eletrônicos. O país ainda usava bilhetes escritos à mão, com cópia em carbono (que os jovens nem devem saber do que se trata!).
Mas isso é mesmo uma trivialidade.
Como não gosto de picuinha, só vou contar que o desfecho dramático do risco dos "fugitivos" serem detidos pelos pasdaran antes do embarque é imaginário.
Na verdade, embora os iranianos tenham realmente tentado recolar todos os documentos destruídos, não conseguiram descobrir a identidade dos funcionários que faltavam - ao contrário do que o filme mostra. Portanto, não houve nenhuma caça de última hora da parte dos pasdaran. Nem dentro do aeroporto nem na pista de decolagem.
Por outro lado, a embaixada britânica em Teerã não recusou os fugitivos como o filme insinua e os canadenses representaram um papel muito mais importante na libertação dos fugitivos do que a CIA. Na verdade, foram co-protagonistas e não coadjuvantes.
Mas este triunfalismo estadunidense é praxe em Hollywood. Lá, eles adoram reescrever a história sem constrangimento. Tanto neste episódio de resgate (que omite os fracassos que abordei acima) quanto na Segunda Guerra Mundial que tiram dos soviéticos a glória da libertação dos campos de concentração e da tomada de Berlin, quanto em outros mais ou menos graves. A lista é interminável. Enfim, transformam até Jesus Cristo em um panaca em vez do grande revolucionário que mudou a face da Terra e a humanidade.

Tenho grande simpatia por Ben Affleck e sua turma - Brad Pitt, Matt Damon, George Clooney - porque são cheios de boas intenções e fazem muito mais coisas certas do que erradas. Porque são íntegros. Uma raridade.
Portanto, acho que Argo mereceu o Golden Globe de melhor filme assim como os demais prêmios que seguiram na Inglaterra e seguirão em outras partes. 
E acho também que na medida dos limites máximos de um gringo, Ben Affleck e seu produtor George Clooney, embora não tenham apertado, tentaram pôr o dedo em mais uma ferida aberta pelo pragmatismo míope irresponsável dos EUA.
Porém, por melhor que seja um estadunidense, são raríssimos, de contar nos dedos, os que conseguem ser totalmente imparciais ao analisar algo que lhes toca realmente. Noam Chomsky é uma destas poucas exceções à regra. Mas ele, além de grande intelectual, é um sábio.
Ben Aflleck ainda é jovem e pisou um pouquinho na bola. Mas nada que comprometa a história. Apenas omissões aqui e acolá.
Mas no Irã, muitos ficaram indignados e prometem uma resposta cinematográfica que se acontecer, será uma propaganda insuportável, já que o "cineasta" encarregado é um ilustre desconhecido e que a Fundação Nacional Cinematográfica foi recentemente fechada por "servir propósitos anti-nacionais".
Ben Affleck mostrou direitinho o clima de suspeita, vingança e consequente carnificina que reinou no Irã pós-revolucionário - e ainda tem gente deste tipo em Teerã com as rédeas. Vira e mexe um vai para a cadeia ou vira persona non grata. Mas tem também muita gente boa e culta lá. Inclusive entre os aiatolás.

Para mim, as duas cenas mais marcantes do filme são com a empregada do embaixador.
A primeira, quando ela conversa com o compatriota iraniano.
Depois, a última cena em que a moça aparece cruzando a fronteira para o Iraque junto com centenas de refugiados. Ao Deus dará.
Nesta imagem, Ben mostra, sem fazer discurso moralista, o que espera aquele que colabora com o inimigo da pátria. Inimigo que é, noventa e nove por cento das vezes, os EUA ou um de seus aliados.
Foi a empregada iraniana que salvou a vida dos fugitivos. Porém, apesar do papel fundamental na sobrevivência dos funcionários estadunidenses, não recebeu nem passaporte nem passagem de primeira classe em voo de nenhuma companhia ocidental. Nem para uma capital europeia nem para Nova Iorque. Como quase sempre acontece com traidores ou heróis (dependendo da ótica de quem olha) que salvam vidas estrangeiras contra os interesses nacionais. No fim, só lhes resta um papel na rede intrincada dos interesses visíveis e invisíveis que regem os meandros dos conflitos internacionais. De pária.


ARTE France, Documentário de Emilio Paculi
Operation Hollywood: How the Pentagon shapes and censors the movies

Al-Jazeera, Empire: Hollywood calls the shots