Alexandria é uma pérola rara. Daquelas pérolas verdadeiras, irresistíveis, imperfeitas, modernas e ao mesmo tempo clássicas. A cidade é o retrato da vida que ela foi acumulando e virando uma madrepérola iridescente que envolve os organismos vivos, humanos, que entram nela e a quem há séculos ela vem acolhendo com brilho renovado.
Como se sabe, Alexandria foi criada pelo macedônio Alexandre, o Grande, em 331 AC para logo virar capital do Egito sob a dinastia dos Ptolomeus, terminada em 30 AC com Ptolomeu XVI, o « rei dos reis » filho de Júlio César e Cleópatra.
Ficou na história primeiro pela Grande Biblioteca construída nessa dinastia em 288 AC com um acervo de 400 mil pergaminhos de valor inestimável – todas as obras de Homero (20 exemplares da Odisséia caligrafada!), Sófocles, Eurípedes, as estantes completas de Aristóteles e de outros filósofos e poetas da antiguidade. Foi incendiada em 48 durante a luta entre Cleópatra e um rival, reconstruída por Marco Antônio com duzentos mil volumes levados de Pergamum, pilhada em 389 DC por fanáticos no reinado de Teodosius e finalmente reconstruída em 2003 para ficar.
Alexandria era a cidade culta regional e a cultura está impregnada em seus prédios, ruelas e ruas largas.
Nasceu cosmopolita e sendo a segunda metrópole do império romano, foi muito importante no desenvolvimento do cristianismo. O evangelista Marcos foi o primeiro patriarca da cidade – sua relíquia foi roubada por mercadores venezianos em 828, transportada a Veneza e sobre ela foi construída a Basílica situada na Praça principal da cidade. Até ser restituída ao Egito onde repousa na Catedral de São Marcos no Cairo.
São Marcos repousa no Cairo, mas o berço do Cristianismo egípcio foi Alexandria. Ela abriga o Patriarca da Igreja Copta e é o cartão postal da tolerância que é sua imagem de marca desde os primórdios. Nela convivem pessoas de todas as origens geográficas e religiosas. É uma cidade civilizada, cujas dimensões acanhadas não lhe tiram as características próprias de uma metrópole.
A bomba que explodiu no dia 31 de dezembro na Igreja dos Santos é portanto um ato terrorista covarde, selvagem e tristemente simbólico. Seu objetivo é semear discórdia inter-comunitária, inter-religiosa, atingir os países ocidentais atacando a menina de seus olhos para minar a tolerância em sua base árabe mais sólida.
Os intelectuais e os representantes políticos e religiosos muçulmanos esclarecidos entenderam a mensagem odiosa e reagiram em seguida condenando o atentado e se distanciando de seu propósito. No Egito, bandeiras com a cruz e a lua crescente, símbolo do islamismo, foram ostentadas em vários lugares para buscar a unidade.
Mas infelizmente o espírito unitário é frágil, pois os problemas dos cristãos locais não se resume a este atentado sanguinário. Os cristãos, 10% da população de 80 milhões de habitantes, vêm se sentindo marginalizados embora vivam no país desde antes de ele ser islamizado. Dispõem de 9 parlamentares - dois eleitos e sete nomeados pelo presidente Hosni Mubarak, no poder há 40 anos e que embora pregue uma sociedade láica, de pluralidade religiosa, deixa decisões importantes nas mãos de pessoas com objetivos menos unitários. Há pouco tempo os cristãos foram desautorizados a construir uma igreja no Cairo e nos últimos 25 anos basta andar nas ruas para sentir a islamização ostensiva das cidades.
Em janeiro do ano passado seis cristãos foram assassinados em Nagga Hamadi, onde os evangelhos apócrifos foram encontrados, e o Patriarca Copta Chenuda III não deixou de lembrar na missa natalina de sexta-feira (os Cristãos Ortodóxos celebram o Natal no dia 7 de janeiro) o julgamento próximo dos culpados. O veredito terá valor dobrado.
Mas como todos os males vêm para bem, embora lamente os mortos e os estropiados vítimas deste ato de terror injustificável, a explosão despertou atenção para algo que vem sendo banalisado ou ignorado pelo mundo ocidental. Enquanto o papa Bento XVI defende os direitos de culto dos judeus e dos muçulmanos que vivem em solo europeu e americano, os cristãos de alguns países do Oriente, da Ásia e até da África, vêm sendo cada vez mais discriminados e acuados.
A história realmente não serve para nada.
Entre abril de 1915 e julho de 1916, a Turquia procedeu ao maior genocídio do século provocando a morte de dois terços da população armeniana cristã local – 1.5 milhões de pessoas. A medida, que misturava deportação e massacre, foi planificada e executada nos mínimos detalhes. O «sucesso» foi tamanho que inspirou uma frase célebre de Hitler quando um de seus cúmplices conjeturou sobre o julgamento da história da limpeza étnica que organizava: Quem se lembra dos armenianos?
O terço que sobreviveu ao massacre e que não conseguiu emigrar, se viu obrigado a esconder tanto sua fé cristã que boa parte da geração atual ignora que seus bisavós, avós e a mãe ou o pai antes rezavam o Pai Nosso, fechados no quarto.
A história provou que Hitler estava errado. Levou seu plano a cabo, mas foi e é condenado nos livros de todas as escolas ocidentais. Mas ele acertou na análise: o genocídio armeniano continua fora de todas as páginas.
É por que os armenianos são cristãos e aprenderam a perdoar e dar a outra face?
Por que o mundo ocidental, quer queira quer não, é cristão, e cultiva um mea culpa interminável por causa da Inquisição apesar deste episódio horrível já ter sido reconhecido, reprovado em todas as gerações até a nossa. Já está passando da hora de ser ultrapassado e ficar apenas na História aprendida em casa e na escola.
No caso dos armenianos, até hoje a injustiça não foi corrigida e eles sonham com o Monte Ararat enquanto os turcos penam em reconhecer seus atos, embora a União Européia comece a cobrar que, pelo menos, peçam desculpas (como a França fez pela colaboração) e se dê o caso por encerrado.
A Turquia de hoje merece virar a página e fechar este livro de horrores de seus antepassados.
A Turquia de hoje merece virar a página e fechar este livro de horrores de seus antepassados.
Quem sabe assim envia uma mensagem aos outros países que acham que cristão é um alvo fácil.
É claro que o Egito está longe de pensar em massacrar os oito milhões de cristãos nacionais. A situação é, por enquanto, incomparável. Os filhos de Mubarak (este ditador que suporta os coptas não por tolerância ou afinidade, mas pela consciência de que sem a elite financeiro-intelectual cristã seu país fica sem quadros) participaram da missa natalina em uma marca de solidariedade e em Alexandria, como no Cairo, as igrejas estão fortemente policiadas para evitar novos ataques.
E embora a cidade chore seus mortos como Bagdá chorou e chora suas vítimas de inúmeros atentados (oficiais e oficiosos, aleatórios ou programados), ela resiste e resistirá a ataques, segundo o que se ouve na praça.
Nas calçadas de alexandria também tem aumentado o número de mulheres em hijab - cobertura parcial ou integral do corpo e do rosto - mas ainda mostram a face enquanto os cabelos das cristãs esvoaçam sem arruaça, no calçadão da praia a brisa marítma mexe com saias, a vida continua, e judeus, muçulmanos e cristãos batem papo nos bares.
E embora a cidade chore seus mortos como Bagdá chorou e chora suas vítimas de inúmeros atentados (oficiais e oficiosos, aleatórios ou programados), ela resiste e resistirá a ataques, segundo o que se ouve na praça.
Nas calçadas de alexandria também tem aumentado o número de mulheres em hijab - cobertura parcial ou integral do corpo e do rosto - mas ainda mostram a face enquanto os cabelos das cristãs esvoaçam sem arruaça, no calçadão da praia a brisa marítma mexe com saias, a vida continua, e judeus, muçulmanos e cristãos batem papo nos bares.
Qualquer que tenha sido o objetivo dos terroristas, eles não ganharam.
E se o governo mudar, e os ventos democráticos soprarem no Egito quando o povo decidir derrubar Mubarak, quem quer que ocupe seu lugar vai ter de tolerar os cristãos do mesmo jeito. Pois sem eles, além do Egito virar um país desprovido da cor da mistura que é sua imagem de marca, seria difícil dirigir o país para o desenvolvimento que precisa sem os coptas que são sua base.
E se o governo mudar, e os ventos democráticos soprarem no Egito quando o povo decidir derrubar Mubarak, quem quer que ocupe seu lugar vai ter de tolerar os cristãos do mesmo jeito. Pois sem eles, além do Egito virar um país desprovido da cor da mistura que é sua imagem de marca, seria difícil dirigir o país para o desenvolvimento que precisa sem os coptas que são sua base.
E você, quando for ao Egito mergulhar no Mar Vermelho ou visitar as pirâmides faraônicas, leve na bagagem O Quarteto de Alexandria, o clássico do escritor irlandês Laurence Durrel. A estória impregnada da cidade de Alexandre, Júlio César, Cleópatra, Marco Antônio e São Marcos, vai certamente atrai-lo ao norte. Aí, nos passos dessas personalidades que marcaram a história ocidental você passeará pela cidade que hoje atrai estrangeiros pelas mesmas razões que desagradaram Mark Twain em 1867 – «prédios comerciais imensos, ruas lindas e brilhantes que à noite lembram Paris» – mas em que a história está na particularidade arquitetural e sua preciosidade está no vento de liberdade que soprava e teima em soprar nos dias "santos" das três religiões monoteístas - domingo, sexta e sábado.
Respirando o ar aberto ao passear por aqui e acolá, você apreciará melhor ainda a cultura greco-romana e a riqueza da diversidade.
Além disso, demonstrará solidariedade e mostrará aos terroristas que o nosso ar tupiniquim tolerante e cordial pode soprar em todas as paragens.
Tesouros de Alexandria
Documentário da BBC: In the footsteps of Alexandre (trailer)
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