domingo, 18 de março de 2012

Comunicação política: "Hasbara" a serviço da Ocupação


A comunicação política, já dizia George Orwell, foi inventada para que as mentiras pareçam verdade e para dar ao vento aparência de solidariedade.
"Este incidente é chocante e trágico, e não representa o caráter extraordinário dos nossos soldados e o respeito que os Estados Unidos têm pelo povo do Afeganistão."
Foi a declaração de Barak Obama após o sargento estadunidense ter assassinado à queima-roupa 16 civis, sendo 9 deles crianças, em uma casa de Kandahar.
Como no ano passado quando o loirão norueguês atirou em compatriotas jovens liberais como se fosse tiro ao alvo e as autoridades e a mídia disseram que tinha pirado, volto a dizer: Basta! de má-fé, ignorância ou coisa que a valha.
Por que em vez de perverso terrorista extremista, o sargento é um pobre coitado, vítima do estresse que os longos meses de serviço no Iraque e no Afeganistão causaram?
Porque perverso terrorista é o afegão que foi bombardeado em 2001 por causa de um tal Ossama Ben Laden e desde então tem de viver sob tutela dos EUA e seus aliadosde bico calado.
Ao ver de parte da mídia que não enxerga além de um palmo.

Aliás, quem ainda se lembra dos GIs "enlouquecidos" que massacraram 24 homens, mulheres e crianças iraquianos desarmados em Haditha em 2005?
E de Baruch Goldstein, o judeu "insano" que massacrou 29 palestinos e feriu 125 em Hebron, na Cisjordânia, em 1994?
Que as autoridades responsáveis pelo status quo dos países ocupados e da normalidade física e psíquica de seus soldados usem estes adjetivos de demência a três por quatro, ainda é compreensível, pois estão aí para desinformar de cara lavada, sobretudo em ano eleitoral.
Mas colegas jornalistas aderirem à nomenclatura que desculpa um ato bárbaro antes deste ser devidamente investigado e o criminoso julgado, por ignorância ou sectarismo primário, é barra-pesada.
Coitado do sargento! Tinha visto um colega de armas perder as pernas e por isto a barbaridade de invadir uma casa de família e atirar até a munição esgotar é compreensível, e até justificável...
E a versão afgã? Alguém leu em alguma parte?
"O que aconteceu em Kandahar foi desumano", disse Habidullah, um local. Eles (a OTAN) entraram aqui e continuam a crueldade. Este ato só pode ser descrito como desumano. Nosso presidente e o parlamento têm de tomar providências contra estes atos. Não é a primeira vez que isto acontece. É repetitivo. O governo tem de agir, o que o povo faz não adianta nada. Os protestos contra o incêndio do Alcorão não deram em nada. Se eles gastam tanto dinheiro aqui e ficam, mesmo vendo seus soldados morrerem todos os dias, é porque devem ter vantagens que eles e o governo sabem e nós não. Se não ganhassem ficando, já teriam partido.
O Alcorão diz que os muçulmanos são irmãos. Se os afegãos se unirem e deixarem de lado noções de Pashtun, Hazara e Tajik, se Deus quiser nosso país vai ficar de pé sozinho. Vai ser uma nação de verdade, com direitos e fará o que achar melhor e não o que os estrangeiros mandam."
Esta é só uma declaração, das mais moderadas, na região.
Acontece que hoje em dia, depois do "incidente" do incêndio do Alcorão a coisa que já estava preta no Afeganistão está escura como breu.
Os funcionários e os militares da OTAN não podem confiar em mais ninguém. Nem nos antigos cúmplices, a começar pelo presidente que eles mesmos instalaram em Kabul.
A situação está tão crítica que no fim de fevereiro o general John Allen, comandante das tropas estadunidenses, lançou apelo de calma aos GIs, para que não retaliassem após a morte de dois deles, junto com mais quatro europeus.
Pediu para as suas tropas, que teoricamente e publicamente estão lá para proteger os civis e ajudar o governo a pôr ordem na casa, não retaliarem. 
Tem algo errado.
Será que no Vietnã foi igual?
Será que foi assim que os "bons meninos" dos Estados Unidos chegaram a cometer tantos massacres indiscrimados?
Quando esqueceram que estavam lá para ajudar, cuidar, proteger, treinar, "civilizar" e em vez disso começaram a "enlouquecer" de raiva dos cidadãos locais e a fazer bobagem?
Se o processo tiver sido este, está passando da hora de fazer as malas, devolver as chaves e voltar para a própria casa.
Nós jornalistas ouvimos desculpas esfarrapadas, como a dos franceses terem sido piores na Argélia, chegando ao ponto de desaparecerem com duas mil pessoas em seis meses.
O que não deixa de ser verdade... mas ter de buscar exemplo nos horrores da colonização é ou não desespero de causa?
Quer queiram admitir quer não, a verdade continua a mesma e irrefutável.
Faz anos que a OTAN perdeu esta "guerra" no Afeganistão.
Qualquer que seja o número de soldados que puserem lá, por mais que o arsenal das tropas ocidentais seja sofisticado em terra e ar, quaisquer que sejam os esforços diplomáticos, é tarde, a Inês é morta e não tem como ressuscitar. A pau então, nem se fala.
Quanto mais cedo a Casa Branca e o Pentágono reconhecerem que ocupação não leva a nada e que o american way of life só cabe em seus cinquenta estados, mais vidas Obama vai salvar. De ambos os lados.
É melhor que caiam na real mais cedo do que tarde, pois quando um comandante tem de acalmar soldados e oficiais para que não virem homicidas banais, a perda de humanidade está por um fio.
E todo reservista que foi longe demais sabe e diz, com voz quebrada, que se tem uma coisa irrecuperável é esta coisa preciosa que nos separa dos animais: a humanidade.
É por isto que muitos reservistas israelenses estão se "confessando" publicamente. Em busca de redenção pelos pecados que lhes tiram a paz, o sono e lhes escureceram a alma.
Por isto, diga lá! É o soldado - que aperta o gatilho, faz coisas infames por falta de limite, por despreparo, lavagem cerebral ou obedecendo ordens - que deveria ser processado por crimes de guerra, ou os Obama e Netanyahu - que os empurram para a armadilha - que deveriam ser julgados?

Ora no mesmo registro do Afeganistão, mas no Oriente Médio, no dia 09 de março, a IDF (Forças Armadas de Israel) assassinou Zuhair al-Qaissi, o líder do Comitê Popular de Resistência em Gaza e deixou outro militante do grupo com ferimentos graves.
Não será que este ataque vem sendo premeditado desde a libertação do soldado Gilad Shalit, só pelo capricho de "lavar a honra" por, apesar de todo o aparato de vigilança tecnológica e de zepelins, câmeras por toda parte, o Shabak ter sido incapaz de resgatar o soldado preso mais de cinco anos na Faixa de Gaza?
Só para lembrar, Shalit foi libertado no ano passado em troca de 1.027 prisioneiros palestinos.
Shalit é um rapaz franco-israelense que aos 18 anos resolveu alistar-se no exército israelense de ocupação em vez de servir a França. Era um soldado. E como tal foi capturado.
Se Israel respeitasse as leis internacionais que limitam a atividade das Forças Armadas e a moradia dos compatriotas às fronteiras oficiais de seu próprio Estado, Shalit jamais teria sido encarcerado.
Aliás, não haveria nem razão para sua captura e nem razão para a existência de grupos de resistência armada na Faixa de Gaza para cometer ato de guerra.
Pois os dois países viveriam e conviveriam em paz, como os países civilizados.
Mas não, Israel ocupa civil e militarmente a Palestina há décadas, e desde 1967 suas cadeias já enjaularam 650 mil homens, mulheres e crianças de até 12 anos, presas aleatoriamente, muitos deles torturados, e sem julgamento que os condene, absolva, ou até mesmo que saibam por que cargas d'água encontram-se atrás das grades.
Em outubro de 2001 os presídios israelenses detinham 5.300 palestinos, dos quais 229 são "prisioneiros administrativos",  37 são mulheres, 211 menores (39 deles com menos de 16 anos), 15 são deputados eleitos.
Todos foram detidos em checkpoints, ou sequestrados na rua ou em casa.
Shalit foi capturado durante missão militar.
É o risco que corre todo soldado baseado em ou próximo a território adversário.
Em um mundo em que todos os países são submetidos às mesmas leis, obrigações e vantagens, a Palestina seria um Estado, as tropas da ONU já teriam evacuado as colônias da Cisjordânia - consideradas ilegais pelo Conselho de Segurança-, já teriam escoltado os soldados da IDF até a Linha de separação traçada nas instâncias internacionais, e suas tropas estariam há anos na Linha Verde garantindo a segurança dos dois Estados.
Shalit talvez estivesse inclusive em Paris levando a vida normal de um jovem da sua idade.
Mas não.
No mundo em que vivemos tem o país acima que impõe sua vontade e tem o seu afilhado que não respeita nenhuma lei internacional e ainda ri na cara dos otários que a consideram o esteio do mundo civilizado.
Neste mundo da realpolitika e não da política utilitária, só falando nos últimos acontecimentos e sem mencionar a ameaça que paira sobre Teerã (voltarei a esta mais tarde), Israel é um país rogue.
Traduzido em nossa língua, fora-da-lei ou que só respeita uma lei, a própria.
E dá-se ao direito de, não satisfeito em receber seu soldado são e salvo, após reiterar na matemática que a vida de um israelense vale mil vezes mais do que a do animal que espezinha na terra ao lado, assassinar o comandante da operação militar da qual Shalit foi alvo e em seguida, voltar a bombardear a Faixa para punir todos os gazauís aleatoriamente. Porque pode. Porque os Estados Unidos lhe dão imunidade. Porque vê os palestinos como vermes cuja vida não vale nada.
Disseram que o assassinato foi preventivo, e não de vingança tacanha pelo mico que pagaram com o longo sequestro de Shalit; que al-Qassi estava arquitetando outro ataque de infiltração como o de agosto de 2011 na península do Sinai que causou 48 vítimas, oito delas fatais, e que seu grupo estava transferindo fundos do Hezbollah para outros grupos armados em Gaza.
É informação ou "comunicação política"?
Al-Qaissi, conhecido como Abu Ibrahim, é o líder mais importante assassinado em Gaza desde que Kamal Nairab, seu predecessor, foi morto há sete meses do mesmo jeito.
A IDF sabe que estas execuções com graves efeitos colaterais são vãs. Que o problema não é um homem, mas a ocupação que estrangula e produz centenas de líderes potenciais.
No mesmo dia em que matou Abu Ibrahim, a IDF fez um limpa em todos os grupos para-militares da Faixa. Quatorze combatentes de seu grupo, do Jihad Islamita e da Brigada Al-Quds.
Estes responderam com aqueles foguetes que fazem mais barulho do que danos reais.
Dispararam cerca de 300, por volta de 170 cairam em solo israelense e o resto na própria Faixa ou foram destruídos pelos anti-mísseis da nona potência militar do planeta.
As escolas suspenderam as aulas nas cidades próximas da cerca de arame farpado que os separa, oito israelenses foram feridos e até a trégua, 23 civis gazauís foram mortos e há dezenas de feridos mais ou menos graves.
Como sempre, na onda da hasbara, Israel declarou só visar "terroristas", mas desta vez foi pego com a mão na botija. Um diplomata francês, a mulher e a filha foram feridos em casa, durante um dos bombardeios - o "acidente"' foi minimizado e varrido pra baixo do tapete; afinal, é ano eleitoral.

O Hamas tentou acalmar os ânimos e seu porta-voz Fawzi Barhoum disse, para quem quisesse ouvir, que este ataque de Israel era premeditado para provocar uma nova escalada.
Mas como fala no vazio,  Hillary Clinton condenou com veemência "os foguetes lançados por terroristas contra Israel"... esquecendo quem tinha atirado primeiro e com que resultado.
Na velha estória dos dois pesos e das duas medidas - aquela do Terrorismo de Estado ser considerado direito de defesa através de ataque que provoque resistência e "justifique" a violência da IDF, e dos grupos de resistência armada serem rotulados de terroristas por lutarem militarmente por cidadania e liberdade que as instâncias internacionais não impõem como deviam - os líderes políticos palestinos, sobretudo do Hamas, ficam apertados.
Mas a tática do Divide ut regnes continua a mesma, embora Israel saiba o preço alto que no final todos pagam.
O Hamas e o Fatah fazendo as pazes e engajados de braço-dado na luta político-diplomática, falta desculpa para a violência militar e aí Tel Aviv tem de inventar munição para a comunicação política com os EUA e a mídia internacional.
Por isto vêm fabricando novos inimigos armados que nem o Fatah nem o Hamas consigam controlar.
E a história se repetirá.
O Fatah era o inimigo máximo que na OLP virou parceiro da paz.
Aí o Hamas virou o inimigo máximo até decidir parar a ação militar em 2005 e deixar Israel sem argumento para a agressão física e psicológica quotidiana dos palestinos pelos colonos judeus e os soldados da IDF.
A partir de 2005 a Ocupação tinha de fabricar outros monstros espiatórios para que os EUA pudessem justificar o apoio cego e incondicional inexplicável.
Um líder do Jihad Islamita deu a resposta que Netanyahu esperava: "Este é um aviso para os líderes do inimigo que estão testando nossa paciência. Ela tem limite e vai ser transformada em fogo."
A pergunta que os moderados fazem é se o Hamas vai conseguir controlar estes militantes afoitos, que, o rumor corre, são sobreviventes inconformados de famílias dos 1.400 gazauís massacrados pelos israelenses nos ataques de 2008-9 e de outros que acontecem frequentemente, quando a IDF fica com vontade de mostrar quem é o dono do pedaço.
Os próprios analistas do jornal israelense Haaretz admitem que o Hamas está confrontado a uma grande dificuldade, "não apenas ideológica - já que tentar parar os foguetes parece à maioria dos gazauís capitulação - mas também prática. Com ajuda financeira do Irã, o Jihad Islamita expandiu-se em uma organização mil vezes mais forte. Não é fácil para o Hamas impor autoridade, sobretudo para não parecer conivente com Israel."

Trocando em miúdos, digam o que disserem em Tel Aviv e Washington, para bom entendedor, em ambos os casos acima retratados e outros similares, o vilão é o mesmo e não deixa dúvida nenhuma a quem tem olhos na cara. OCUPAÇÃO.
É ela que despoja material e moralmente, desonra, esmaga, revolta o ocupado, e induz a resistência.
Ter estrangeiro pilhando e dando as cartas na sua pátria, invadindo a sua casa a qualquer hora, aterrorizando sua família, ocupando seu espaço durante dias, semanas, servindo-se à vontade, você precisando de autorização até para ir ao banheiro e quando os hooligans vão embora fazer a mesma coisa com seu compatriota, sua casa e seus bens estão depredados, e você finalmente pode sair do cômodo ao qual foi confinado, passa em um checkpoint para ir trabalhar e acaba ajoelhado e algemado durante horas só porque o garotão de farda não foi com o seu jeito, a sua cara ou apenas pelo prazer de rebaixá-lo ainda mais e você não tem ninguém para quem apelar, porque quem poderia, não sanciona esta arbitrariedade,... francamente, dá para aguentar?


PS. Para não perder de vista quem são as verdadeiras vítimas e quem são os algozes nesta história em que a comunicação política ou hasbara (propaganda em hebraico)  dá aos contraventores aparência de coitados  e à sua ocupação aparência de legalidade, vale lembrar pelo menos duas datas. Vai fazer 11 anos que os afegãos aguentam as tropas estrangeiras em seus campos e cidades.
Os palestinos aguentam a mesma coisa, mais as invasões civis, mais opróbios de toda índole, há muito mais. Oficialmente, desde 1967. Contando desde a Naqba quando viraram apátridas, desde 1948. 64 anos.


You cannot continue to victimize someone else just because you yourself were a victim once—there has to be a limit.
Edward W. Said

Professor Edward Said com a palavra

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