Vítimas da chacina de Srebrenica |
O jornalismo, como todas as profissões "respeitáveis", se aprende na faculdade. E como todos os profissionais fiáveis, o peso do jornalista é o da bagagem. É a história quotidiana que se grava e com a qual se pontua a atualidade, de preferência, contribuindo para que o mundo avance no bom sentido.
No meu caso, entre estágio e exercício da profissão diplomada, faz um pouquinho mais de três décadas que estou na praça. Internacional, um pouquinho menos. Nestes anos de trabalho e aprendizado do mundo, das ambições e vontades, entre todos os conflitos, massacres e atos bárbaros dos quais homens “normais” se mostraram capazes em surtos, curtos ou prolongados, de ódio, ambição, ou algo que prefiro chamar de insanidade, três horrores povoam meus pesadelos acima de todos os demais.
Dois deles tiveram, direta ou indiretamente, as mesmas vítimas e os mesmos carrascos.
Sabra e Shatila, rua após o massacre; Ariel Sharon encarte |
Uma das dezenas de famílias gazauís bombardeadas |
General Ratko Mladić |
Não vou desfiar a história da guerra chamada da Iugoslávia, que durou anos, com episódios vergonhosos, inclusive de estupros sistemáticos para deixar as mulheres com a humilhação insuportável de engravidarem dos assassinos de irmãos, maridos e pais.
Entre tantos massacres, um deles é indelével, apesar de outros tantos inaceitáveis - talvez pela mesma semelhança de curral, de pessoas serem trucidadas como animais sem terem para quem apelar e nem como escapar do sítio macabro. A cidade se chama Srebrenica. O ano foi 1995. O mês, julho.
No dia 11, cerca de vinte mil refugiados se espremiam em Potočari procurando proteção na base da ONU. Os que cabiam entraram e os outros se espalharam por campos e fábricas. A maioria era de mulheres, crianças, deficientes e idosos apavorados que se agarravam aos soldados holandeses como se estes fossem uma bóia que os salvaria do naufrágio. A comida e a água eram escassas e as Forças da ONU tinham ordens de não pegar em armas; mas o que não se sabia é que tinha muitos sérvios infiltrados entre os refugiados.
Enquanto isto, do lado, durante a noite, na iminência do ataque das milícias sérvias, começou a evacuação de Srebrenica do restante das mulheres, crianças e homens válidos para apoiar os exilados.
À meia-noite, cerca de dez mil pessoas cobriam a estrada em coluna, a fim de evitar as minas, em direção de Tuzla. Andavam depressa para cobrir os 50 quilômetros a salvo. Os homens armados puxavam a marcha para abrir caminho, apressados, sem saber que o fim da fila estava sendo atacada pela milícia inimiga que tinha acabado de penetrar na cidade desprotegida.
No dia 12, nas barbas dos soldados da ONU em Potočari, apareceram dezenas de cadáveres de homens, mulheres e crianças esfaqueados ou com a garganta cortada.
Em seguida, dentro de Srebrenica, invadida pelo batalhão sérvio, os cadáveres seriam contados por milhares – 8.752 é a conta exata.
Este genocídio, como os dois outros, também tem responsáveis. A diferença é que os responsáveis deste crime atroz foram capturados. Um deles era o presidente da Sérbia, Slobodan Milosevic, cujos dias foram encurtados por um suicídio providencial no centro de detenção da Háguia.
O outro é o general encarregado das Forças Armadas, Ratko Mladić. Este está sendo julgado. Dezesseis anos após os crimes pelos quais todos esperam que seja condenado.
O terrível sobre Mladić é que não é um monstro. Como não são Ehud Barak, Ehud Olmert, Ariel Sharon, George W. Bush, Tony Blair, Benyamin Netanyau e outros mais do mesmo naipe que têm sim, algo em comum com Napoleão - a arrogância e a presunção de serem intocáveis.
Mladić nasceu em 1942 na então Iugoslávia, no leste do enclave chamado Bósnia-Herzegovina com população majoritária convertida ao islamismo durante o império otomano. Mladić nasceu em plena campanha nazista de exterminação que durou um ano. Estima-se que cerca de 1.7 milhões de iugoslavos da região, de religiões diferentes (sérvios cristão-ortodoxos, croatas católicos e muçulmanos bósnios) tenham sido assassinados. Devido à conjuntura da época, seu pai, resistente ao nazismo (morto no campo de batalha), o batizou de Guerra e Paz. É o que seu nome significa.
Mladić cresceu, estudou e entrou no exército do presidente Tito, herói nacional que foi o mais liberal dos líderes comunistas e um grande estrategista que conseguiu promover a união das três comunidades. Devido à origem de sua família, Mladić virou um perfeito iugoslavo.
A morte de Tito fragmentou o espírito unitário, com o fim do comunismo foi-se o espírito solidário, e em 1991 começou o conflito entre as comunidades com o exército – soldados e oficiais – se dividindo em três lados, mas os sérvios conservando o arsenal militar da ex-Iugoslávia.
Mladić voltou a ser sérvio, passou a considerar todos os demais, civis e militares, como inimigos e em 1992 assumiu o comando do Exército bósnio-sérvio e não hesitou a ordenar o bombardeio de Sarajevo quando viu que seus compatriotas estavam sendo assassinados por soldados bósnios.
A partir daí ficou obcecado com a sua “causa” pela qual ordenou e participou, como no caso de Srebrenica, de inúmeras matanças. Como Napoleão, em suas campanhas militares, ele se achava um grande homem que agia por "altos propósitos, acima da moral convencional". E em seu rastro, só deixou destruição.
Hoje o homem que nasceu 69 anos atrás durante um genocídio, está sendo julgado pelo mesmo crime contra o qual o pai lutou e o havia prevenido lhe dando o nome de uma obra literária humanista, sobre quão aleatória é a história e quão volúvel é a glória, do grande Lev Nicolaievitch Tolstoi.
Guerra e Paz poderia ter sido o título do blog deste domingo, mas optei por Crime e Castigo, outra obra prima da literatura russa do século XIX, porque nela Fiodor Mikhailovich Dostoievski pôs na boca de seu protagonista, Rodion Ramonovitch Raskolnikov uma frase que revela, quem sabe, a motivação de Mladić e dos outros homens citados acima: Se um dia! Napoleão não tivesse “tido coragem” de metralhar uma multidão desarmada, teria passado despercebido e teria sido um desconhecido.
Qual é mesmo a moral da estória?
Raskolnikov premedita e comete um crime a sangue frio tentando convencer-se que tem razão de cometê-lo porque mata uma velha maldosa, agiota implacável, para roubá-la e sair da pobreza em que se degrada. Ele se inspira em Napoleão, na impunidade do homicídio (quando é em massa) para esperar imunidade. Só que Raskolnikov, ao contrário dos líderes internacionais acima citados encabeçados por Mladić, tem uma consciência que o oprime e que o transforma em um morto-vivo que inconscientemente quer ser preso, julgado e punido para obter redenção pelo passo em falso.
Os livros de Dostoievski banhavam na ética cristã que o inspirou também neste ensaio memorável de crime e castigo.
Recuando mais na história greco-romano-cristã que é a nossa base, busco outra frase popular: A César o que é de César, que, no planeta Terra, megalomanias à parte, é a Organização das Nações Unidas. E a justiça desta é da alçada do Tribunal da Háguia, que tem, ou teria, de punir quem mata dezenas, centenas, milhares de pessoas indefesas com a mesma severidade que se pune um estudante que mata uma velha agiota detestável.
Pintura de Adolph Northern (séc. XIX): Napoleão em retirada de Moscou. |
"Much unhappiness has come into the world because of bewilderment and things left unsaid."
Fiodor Mikhailovich Dostoievski
Ação do BDS em Paris contra Veolia: http://youtu.be/B_lqoTwD-3A;
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